Esperando Jesus, parte 2
Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).
É claro que eu me recusei a participar dos “turnos” da vigília pela madrugada. Se eu bem compreendi na época, muitos dos jovens que participavam das vigílias nos retiros consideravam, não se sabe se simbolicamente ou literalmente, que Jesus poderia aparecer a eles, seja às 3h ou 4h da matina, e dizer algo como:
“Oi, fico feliz que tenham me aguardado, eu finalmente retornei ao mundo!”
O que me pareceu puro absurdo naquela época, entretanto, foi melhor compreendido quando cheguei a conhecer, muitos anos depois, a entrevista de Joseph Campbell, um dos maiores estudiosos de mitologia do século passado, para Bill Moyers. Esta célebre entrevista rendeu um livro e também uma série de vídeos, dentre os quais retirei a passagem abaixo, que trago aqui como forma de ilustrar melhor o que eu quero dizer:
Queremos pensar em Deus. Deus é um pensamento. Deus é uma ideia. Mas a sua referência é algo que transcende o pensamento. Ele existe além da existência... Além da categoria de ser ou não ser. Ele existe ou não? Nem existe, nem não existe. Qualquer deus, qualquer mitologia ou qualquer religião são verdadeiros nesse sentido... Assim como uma metáfora do mistério humano e cósmico.
Quem pensa que sabe, não sabe. Quem sabe que não sabe, este sim, sabe. Há uma velha história que ainda é válida. A história da busca. Da busca espiritual... Que serve para encontrar aquela coisa interior que você basicamente é. Todos os símbolos da mitologia se referem a você. Você renasceu? Você morreu para a sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana?
Na sua mais profunda identidade, você é Deus. Você é um com o ser transcendental.
Portanto, embora muitos dos jovens naquele retiro talvez acreditassem realmente que Jesus poderia chegar na capela durante a madrugada, literalmente em carne e osso, ainda assim esta crença não merece ser alvo do deboche costumeiro dos descrentes (incluindo a mim mesmo, na época).
Pois que, se pensarmos no Cristo como uma metáfora para o nosso eu angélico, que anseia por domesticar seu lado animal (não acho que a crucificação seja necessária, mas enfim) e renascer como um ser mais humano, que deixou de olhar para o pântano dos desejos desenfreados, e agora mira na senda do Paraíso (com ou sem piscinas), então temos que esperar pelo Cristo nas madrugadas é não somente um ritual belíssimo, como potencialmente transformador. Muito mais profundo do que apenas confessar pecados e repetir orações decoradas...
E, se anteriormente tais jovens viviam de crenças literais, não importa tanto assim, pois o importante é a experiência. Da teoria eles podem ler e compreender melhor depois, mas a experiência religiosa é o que conta, e isto eles já estavam tendo desde cedo – neste sentido posso compreender perfeitamente como a prática dos rituais católicos também ajuda a moldar uma alma mais aberta para a luz do Alto, e mais predisposta a ser incendiada pelo Amor. Não vejo porque se ter vergonha de haver participado deste tipo de ritual (embora certamente na época eu pensasse de outra forma).
Na manhã do outro dia fui “carinhosamente” levantado da cama pelas canções religiosas. Eram três jovens percorrendo todos os quartos e acordando todo mundo. Dois deles dedilhavam seus violões, enquanto outra cantava, felizmente, até com bastante afinação. Nem me lembro da hora que acordei – uma das características interessantes desses retiros espirituais é que facilmente perdemos a noção da hora (e, naquela época, vale lembrar, ninguém tinha celular).
Eram canções que se estendiam pelo café da manhã, almoço, e até o início da última tarde de orações na igrejinha. Ainda me lembro de alguns refrãos até hoje...
Eis que faço novas todas as coisas,
Que faço novas todas as coisas,
Que faço novas todas as coisas! [1]
Voa Jesus pequeno pássaro,
Vamos cantar seu louvor,
Aleluia, aleluia, aleluia! [2]
Embora eu tivesse estranhado a proibição de usar a piscina, a estranha obsessão com pecados, e até mesmo o conselho de se tomar banho de água fria para “evitar a vontade da masturbação” [3], foi durante toda aquela cantoria, divina cantoria, que pude compreender um pouco melhor toda a alegria que brota da experiência religiosa genuína.
Eu certamente não entraria para algum grupo católico e dificilmente tão cedo iria participar de outro retiro daquele tipo (e até hoje não participei), mas isto não significa que eu não houvesse compreendido, de alguma forma, o porquê daqueles jovens haverem escolhido aquela doutrina e aquelas práticas religiosas – havia, certamente, uma grande alma em toda aquela música cantada em voz de dentro; e como disse um poeta, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Mas isto não foi tudo. Talvez todo este relato nem merecesse estar aqui se não fosse pelo que presenciei nas orações da última tarde. Ao contrário da tarde anterior, quando houve muitas palestras, esta foi inteiramente dedicada ao ritual e as orações. Eu certamente mal me lembro dos rituais hoje em dia, mas há algo que dificilmente esquecerei: as católicas (sim, porque acredito que eram todas mulheres) que oravam e oravam e oravam, intensamente, até entrarem nalguma espécie de transe e simplesmente desabarem no chão!
Eu vi meninas chaparem, literalmente, a cabeça no chão, após um momento de transe intenso, e serem deixadas ali, deitadas, até que acordassem por conta própria logo depois...
Como observei bem que nenhuma delas se machucou com gravidade, embora certamente fosse o caso de haver pelo menos um certo derramamento de sangue, depois fui perguntar a uma amiga da minha prima sobre como nenhuma delas se machucou. Ela respondeu apenas que:
“A gente não se machuca não. O Espírito Santo segura a gente e nos protege”.
Bem, eu certamente não vi o Espírito Santo amortecer a queda de nenhuma delas, mas certamente foi impressionante ouvir todos aqueles estrondos no piso de madeira da igrejinha e depois não ver nem uma gota de sangue no chão.
De resto, findara a tarde e todos retornamos para o Rio no mesmo ônibus com o qual chegamos em Secretário. Felizmente não fez tanto calor naquele final de tarde, e eu até consegui voltar sentado ao lado de uma das amigas da minha prima em quem eu estava de olho...
Mas não rolou nada, eu era muito tímido, e em todo caso nunca gostei muito de banho de água fria.
***
[1] Refrão da letra de Paulo Roberto. Talvez lhe interesse ouvir para ter uma ideia do tipo de experiência que vivenciamos por lá:
[2] Trecho da música do grupo Canção Nova (com pequenas alterações).
[3] Conselho este que eu nunca segui (independente da masturbação), a não ser quando o chuveiro elétrico pifou, ou durante os apagões.
***
Crédito da foto: Rádio Catedral
Marcadores: catolicismo, contos, contos (91-100), festa estranha, igreja, jesus, Joseph Campbell, mitologia, música, religião
4 comentários:
Maravilha! Tive experiências bem parecidas também em grupos católicos... E foram muito boas! Apesar de não ter seguido por esse caminho lembro bem da atmosfera de amor e partilha que parecia envolver os participantes.
Abs e grato por compartilhar!
a implicação clara dos crentes, sejam estes católicos ou não, no que se refere ao pecado advém ao meu ver do fato de que a vida humana é uma vida de expiação. Não há alma pura na terra e dessas só as merecedoras alcançarão os reinos dos céus. Isto exemplifica de forma muito simples essa insistência nos pecados, pois como bem deixam perceber somos todos pecadores e aqueles que não se acharem é por que estão errados.
independente de Jesus ter vindo ou não para nos redimir, isto não parece fazer muita diferença. Entretanto o pecador é todo aquele que não aceita as práticas e dogmas e isso é uma forma muito simples de angariar ainda mais servos do $enhor.
gostei muito do texto, me anima a continuar os estudos no blog...
Valeu pessoal...
Eu tentei ser o mais honesto possível ao escrever este relato, falando das coisas boas e ruins no meio católico do qual participei, ainda que brevemente :)
Abs
raph
Por essa eu não esperava, esta acabou sendo uma festa estranha de impacto :-)
Eu mesmo nunca participei de retiros, interessante saber o que acontece.
Ótimo texto, obrigado por compartilhar.
Abraço.
Postar um comentário
Toda reflexão é bem-vinda:
Voltar a Home