O ano em que virei editora
É claro que todo escritor sonha em publicar um livro, mas até cerca de um ano atrás tudo o que havia conseguido publicar era um livro com tiragem quase “caseira”, vendido sobretudo entre familiares e amigos, e alguns outros livros de RPG, contos, poemas e artigos antigos deste blog, todos disponibilizados diretamente como PDF para download.
Há cerca de um ano atrás, porém, eu estava angustiado e esperançoso ao mesmo tempo. Angustiado por ter de finalizar meu livro, Ad infinitum, que vinha sendo escrito há cerca de 3 anos, e esperançoso por crer que, após seu lançamento, eu finalmente me veria livre daquele fardo, e poderia me dedicar somente ao blog e aos videogames novamente.
É claro que todo escritor fica feliz e aliviado ao ter seu livro publicado, mas até cerca de um ano atrás eu mal poderia imaginar que, após Ad infinitum, ainda viriam 11 outros livros, a grande maioria de outros autores.
Foi “quase sem querer” que tudo ocorreu... Após haver autopublicado meu livro em formato impresso, através do Clube de Autores, estava eu folheando uma revista na banca de jornais próxima da minha casa quando soube, através de uma matéria de meia página, que a Amazon não somente havia recém chegado no Brasil com o seu leitor de livros digitais, o Kindle, como já era possível a autopublicação de ebooks através do serviço Kindle Direct Publishing.
Como já era cliente da Amazon há muitos anos (inclusive tendo ganhado boas comissões através da venda de livros de RPG através de um site antigo que mantive no final da década de 90), fui testar o serviço... A princípio, bastava enviar um arquivo Word relativamente bem diagramado, uma capa e uma descrição, escolher o preço final de venda, que a Amazon publicava e vendia a obra. O autor ainda ficaria com entre 35% a 70% do valor das vendas – algo imensamente superior aos 5% a 10% do mercado impresso.
Na prática, não era assim tão simples. O arquivo Word do Ad infinitum que enviei não resultou em um ebook que me agradasse, e como sou “relativamente perfeccionista”, precisei estudar um pouco melhor acerca da arte da diagramação de livros digitais... Para minha surpresa, descobri que em seu estado mais essencial, um ebook nada mais é do que html, a mesma linguagem de código que monta as páginas da web, e a mesma linguagem com a qual trabalho profissionalmente há quase uma década!
Apesar de não ter sido algo tão trivial, consegui aprender a montar um epub, que é o formato de livro digital mais utilizado no mundo todo. Com isso, o caminho estava aberto para autopublicação não somente na Amazon, mas também na Kobo, que também havia recém-chegado ao país, em parceria com a Livraria Cultura [1].
Até aqui, tudo certo: ter um livro disponível em impresso e em versão digital, sendo vendido na grande Amazon, já era uma conquista e tanto para quem, até poucos meses antes, não sabia nem se ou quando exatamente conseguiria finalizar o tal livro... Mas isto ainda era somente o início – foi navegando pelas listas de mais vendidos da Amazon brasileira que me deparei com algo bastante intrigante...
Eu não pude deixar de notar que havia diversos livros digitais de Fernando Pessoa com preços muito diferentes uns dos outros. Enquanto muitos eram vendidos a cerca de 15 ou 20 reais, o que seria um preço comum para ebooks, outros custavam 5 reais ou até menos do que isso, e não pareciam dever em nada, na qualidade da capa e da diagramação, aos demais.
Quando fui me informar melhor sobre essa disparidade de preços, acabei compreendendo o que se passava. Ocorre que Fernando Pessoa morreu em 1935, de modo que em 01/01/2006, 70 anos após sua partida, toda a sua obra entrou definitivamente em domínio público no mundo todo. Isto significa, dentre outras coisas, que qualquer um pode editar seus livros como bem entender, sem dever nenhum centavo de direitos autorais aos antigos detentores de seus direitos de publicação.
Ora, isto também significava que eu mesmo poderia publicar minha própria antologia da poesia e da prosa do grande poeta português. E foi exatamente o que fiz a seguir, daí nascendo o ebook Navegar é preciso, que até hoje é muito bem sucedido em vendas, principalmente na Amazon.
Mal podia suspeitar, há um ano atrás, que me tornaria não somente um escritor publicado na Amazon, mas um editor, um tradutor e, porque não, uma editora!
Após Pessoa, que não necessitava de tradução alguma, fui atrás dos melhores autores e livros que li na vida, buscando a viabilidade da autopublicação dos mesmos. Com isso, logo na sequência encontrei uma rara tradução de Friedrich Nietzsche que já se encontrava em domínio público e, com a ajuda de meu amigo Frater Sinésio, que ajudou na revisão do texto, publiquei o célebre Assim falou Zaratustra pelo preço de um café expresso (ou menos) na Amazon Brasil. Até hoje, é de longe o ebook mais vendido das Edições Textos para Reflexão, sendo que raramente sai da lista dos 100 mais vendidos.
Depois, entre traduções e edições, algumas com a estimada ajuda de Sinésio, ainda consegui publicar mais 9 livros digitais durante o ano, atingindo uma média totalmente inesperada de 1 livro por mês. Embora nenhum deles tenha atingido o sucesso de vendas dos dois anteriores, há muitos que também se destacaram.
Porém, independente das vendas, que são realmente muito bem vindas, o que mais importa é que isto se tornou também um hobby extremamente prazeroso. Claro que também dá um bom trabalho (neste ano joguei muito pouco videogame), mas é um trabalho bastante recompensador – não exatamente pelos reais que caem na minha conta de banco, mas pela possibilidade de iniciar, quem sabe, algumas centenas de pessoas, em sua maioria jovens, em alguns dos maiores textos da humanidade...
Eu não estou brincando, eu realmente fui muito cuidadoso na seleção dos livros. “Cuidadoso” talvez não fosse a melhor palavra... Intuitivo, quem sabe? É que não fiz grandes planos de publicação, e fui publicando meio que conforme o coração mandava. Por exemplo, eu certamente não publicaria Nietzsche antes de Lao Tse ou Gibran, se fosse seguir minha lista de preferências, mas o fato de haver publicado Nietzsche antes dos demais foi de vital importância para o estabelecimento das vendas dos livros que vieram após, já que o livro de Nietzsche passou a anunciar a editora e, consequentemente, os demais lançamentos.
Outra questão interessante e não planejada (pelo menos, conscientemente) é a relação que existe entre os livros e seus autores. Já havia um conto em Navegar é preciso em que Pessoa mencionava Epicuro, que por sua vez também já fora alvo das críticas apaixonadas do grande filósofo alemão. Também há autores que destacam a proximidade de algumas ideias de Pessoa com as de Nietzsche que, por sua vez, foi um dos influenciadores de Khalil Gibran. A Arte da Guerra é um clássico que, sem dúvida, deve muito de suas ideias a outro ainda mais antigo, o Tao Te Ching, que por sua vez ainda influenciou parte dos conceitos de A Voz do Silêncio, de H. P. Blavatsky – que também foi traduzido para o português por ninguém menos que... Fernando Pessoa!
Mesmo Jalal ud-Din Rumi bebe da mesma fonte do gnosticismo presente nos Evangelhos de Tomé e Maria, que por sua vez também ecoa no Profeta de Gibran... Enfim, são mesmo muitas relações inesperadas entre estes poucos livros.
Portanto, eu me despeço do ano que passou com o mesmo espírito e o mesmo entusiasmo com que abraço o ano que chega... Sem tanto planejar mas, antes de mais nada, agradecer. Agradecer imensamente pela oportunidade de melhorar um pouco toda esta vizinhança, não exatamente através das minhas palavras, mas através dos dizeres de tantos gigantes de outrora. Pensamentos que já me ajudaram muito nesta vida, mas que nunca poderia imaginar que seriam publicados por mim.
É, sem dúvida, uma honra (não mais um fardo)... Espero que gostem do percurso, e que seus dias, e nossos dias, permaneçam sendo sempre este Ano Novo perene, elaborado e sustentado por tantas reflexões vindas do Alto.
02/01/2014
Rafael Arrais (autor/tradutor/editor)
***
[1] O serviço de autopublicação da Kobo se chama Kobo Writing Life (KWL). Além dele e do Kindle Direct Publishing (KDP), ainda publico hoje através do Publique-se da Livraria Saraiva. Infelizmente os serviços de autopublicação da Google e da Apple ainda não estão disponíveis para alguém residente no Brasil. Para maiores detalhes acerca do mundo da autopublicação, recomendo o site Revolução eBook.
» Veja também O ano em que virei tradutor profissional
Crédito da imagem: Joel "Boy Wonder" Robinson
Marcadores: Amazon, artigos, artigos (201-210), Edições Textos para Reflexão, kindle, Kobo, livros, Rafael Arrais, tecnologia
3 comentários:
Belo trabalho.
Parabéns pela empreitada! Que o sucesso se multiplique em 2014!
Valeu pessoal :)
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