Anjos Fósseis, por Alan Moore (parte 5)

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Por Alan Moore. Tradução de Daniel Lopes, revisão de Rafael Arrais.
Se a magia fosse considerada como uma arte ela teria acesso culturalmente válido à paisagem interior [Infrascape], os territórios imateriais intermináveis que são ignorados e invisíveis à ciência, que são inacessíveis à razão científica, e, portanto, compreendem o terreno mais natural da magia. Voltar esforços para a exploração criativa do espaço interior da humanidade pode não só ser de utilidade humana massiva, como pode eventualmente restaurar à magia todo o propósito e relevância, a utilidade demonstrável que lhe foi tão lamentavelmente privada, e por tanto tempo. Visto como arte, o campo ainda poderia produzir as resmas de teorias especulativas de que tanto gosta (afinal, filosofia e retórica podem ser vistas mais facilmente como arte que como ciência), contanto que fossem escritas de maneira bela e interessante. Enquanto, por exemplo, o Livro da Lei poderia ser questionado em valor quando considerado puramente como texto profético descrevendo definitivas ocorrências de estados de consciência porvir, não se pode negar que seja um exemplo de escrita da porra, que merece ser reverenciado como tal. O ponto é que se a magia abandonasse suas vazias pretensões enquanto ciência e saísse do armário como arte, obteria ironicamente a liberdade para seguir em suas aspirações científicas, talvez até mesmo se valendo de um teorema do campo unificado do sobrenatural, tudo isso em termos aceitáveis para a cultura moderna. A obra prima de Marcel Duchamp, A Noiva Despida Por Seus Celibatários, é mais possível que seja pensada como alquimia genuína, que como descrita em um trabalho de um pobre coitado que sugere que tenha algo a ver com fusão a frio. A arte é claramente um ambiente muito mais confortável para o pensamento mágico do que a ciência, com uma decoração muito mais relaxante e mobília muito mais bonita.
Mesmo aquelas almas danadas tão institucionalizadas como os membros de ordens mágicas que nem conseguem imaginar algum estilo de vida que não envolva pertencer a uma elite secreta e cabal não tem razão para se desesperar ao encontrar a si próprios sem teto e solitários em nossa nova proposta selvagem. Arte não tem ordens, porém têm movimentos, escolas e panelinhas com toda a dissimulação, narizes empinados e elitismo que qualquer um poderia desejar. Melhor ainda, uma vez que movimentos artísticos não ficam competindo uns com os outros pelo mesmo território como as ordens mágicas (como podemos dizer, por exemplo, que William Holman Hunt compete com Miró, ou Vermeer?), isso deve evitar a necessidade que as diferentes escolas de pensamento ocultista têm de criar rixas, ou ataques, ou como geralmente acontece fazer a egípcia tal qual meras imitações de dar pena de Criswell-do-plano-9-do-espaço-sideral.
Como é que esta mudança de premissa tem impacto, então, sobre nossa metodologia? Que mudanças de ênfase podem ser vinculadas, e poderiam tais alterações serem vantajosas tanto à magia enquanto campo como para nós enquanto indivíduos? Se tivermos uma intenção séria de reinventar o oculto como A Arte, uma alteração básica em nossos métodos de trabalho que poderia produzir benefícios consideráveis seria se nós nos determinássemos a cristalizar qualquer ideia, verdades ou visões que nossas viagens mágicas tenham nos proporcionado em algum artefato, algo que todo mundo pudesse ver também, só pra variar. A natureza do artefato, seja um filme ou Haikai, um expressivo desenho a lápis ou um exuberante espetáculo teatral, é completamente sem importância. Tudo o que importa é que seja arte e que permaneça fiel à sua inspiração. Uma vez que tenha sido adotado, em um único golpe, um ajuste tão pequeno de processo quanto esse poderia verdadeiramente transformar o mundo em magia. Em vez de ser por uma motivação pessoal, de funcionamento toscamente causal tanto de intenção duvidosa e resultado duvidoso, magia de punheta que termina geralmente em satisfação limitada, nossas transações com o mundo oculto seriam produtivas, gerando questões em resultados tangíveis onde todos possam julgar seus valores por si próprios. Em termos puramente evangélicos, como propaganda de uma visão de mundo mágica mais iluminada, a arte com certeza representa a nossa “evidência” mais convincente de outros estados e planos de existência. Enquanto os pensamentos de Austin Spare são inegavelmente interessantes quando expressados na forma de escrita como teoria, é sem dúvida seu talento como artista que proporciona a percepção de entidades e outros mundos realmente testemunhados e registrados, a autenticidade imediata que conferiu a Spare muito de sua reputação como um grande mago. Ainda mais importante, um trabalho como o de Spare fornece uma janela para o mundo oculto, permitindo aqueles que estão fora uma expressão mais eloquente acerca do que é a magia do que qualquer trato arcano, oferecendo-lhes uma razão legítima para se aproximar do oculto pra começo de conversa.
Além disso, se a viciosa luta por sobrevivência é promulgada decretada nos termos daquele cuja a ideia é mais potente e mais bela em sua expressão, então os espectadores da briga-de-galos estão mais propensos a acabar sujos de metáforas magníficas do que com respingos frescos de entranhas. Mesmo nossas brigas mais incestuosas e sem sentido podem, assim, ter um produto que enriquece o mundo em alguma pequena parcela, em vez de nenhum resultado, salvo de que a magia pareça uma briga de parquinho ainda mais infantil e inane do que todos pensavam que era. Ao julgar por seus méritos, tal atitude de lógica selvagem para com a magia, com sua estética predatória e ideias competindo em uma mata fertilizada por seus requintados excrementos culturais, parece oferecer ao ocultismo uma situação em que todos ganham. Como poderia alguém ser contra, exceto no caso daqueles cujas ideias podem ser vistas como gordas, lentas, incapazes de voar, e fonte acessível de proteína; aqueles bem qualificados como presa primária que talvez estejam começando a suspeitar que isso tudo seja um argumento de um tigre para safáris em campo aberto?
O quão empoderador seria para ocultistas acumular constantemente, através de um trabalho árduo, genuínas habilidades mágicas que podem ser comprovadamente exibidas. Talentos que gente comum, inteligente e racional pode muito facilmente aceitar como sendo verdadeiramente mágicos em sua origem; prontamente se envolver de uma forma que o ocultismo atual, com o seu obscurantismo muitas vezes deliberado e desnecessário, não pode gerir. Apesar da magia ser mais seguramente expressa e sentida na maioria dos grimórios modernos, um mero folhear das Ficções de Borges, ou um vislumbre de Escher ou de um lado ou dois de Capitão Beefheart seria muito mais provável de persuadir o leitor comum para um ponto de vista magicamente receptivo. Se a própria consciência, com sua existência no mundo natural, está além da capacidade de comprovação da ciência, sendo, portanto, sobrenatural e oculta, certamente a arte é um dos meios mais óbvios e espetaculares pelo qual o reino sobrenatural da mente e da alma se revela, se manifesta sobre um plano material bruto.
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Aqui se encerra a participação do Daniel Lopes como tradutor deste ensaio. Como além de tradutor ele é artista e ilustrador, não poderia deixar de incluir aqui esta tirinha que ele diz ter criado inspirado diretamente pelas palavras de Moore. De fato, talvez ele tenha resumido todo o Fossil Angels em três quadrinhos. Valeu Daniel!

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search/thehorsehospital.com (Alan Moore); [logo acima] Daniel Lopes
Marcadores: Alan Moore, arte, autores selecionados, autores selecionados (181-190), Daniel Lopes, magia
1 comentários:
e claro que também por mais essa vale outro obrigado Rafael. e valeu por ter vindo até aqui Daniel.
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