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12.11.16

Metafísico

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


Meus amigos às vezes me dizem que eu sou um cara meio metafísico. Quase sempre eles têm toda a razão.

Não sei quando isso começou direito, provavelmente bem cedo. Por agora me lembro especificamente dos engarrafamentos em Copacabana, e eu na janela do 485, a caminho da faculdade de Artes no Fundão; ou seja, a uma boa hora de distância, quando tinha sorte!

Mas mesmo quando tinha azar e ficava preso muito tempo na Nossa Senhora, havia muito o que se observar pela janela, muito o que refletir – e a luz, como já devem saber, foi criada para ser refletida.

Ora, aqueles raios que me alcançavam numa esquina do Rio de Janeiro levavam menos tempo para viajar do Sol até ali do que eu levava para chegar na porta da aula de desenho. Todos os dias eles me venciam, e ricocheteavam na lente dos meus óculos e rumavam sabe-se lá para que outro canto do Cosmos.

Mesmo desenhando, é impossível explicar o que se sente ao compreender que nós mesmos também somos parte do que foi forjado no núcleo dos sóis, e catapultado a imensidão. Nós mesmos também somos hidrogênio, oxigênio, carbono, ferro e muitos outros elementos pesados das forjas estelares. Nós mesmos também vivemos mergulhados no oceano cósmico, e não aprendemos a nadar em suas profundezas somente por ter lido manuais de natação...

As palavras, as cascas de algum sentimento ancestral, escapam. Mesmo aos poetas mais loucamente cosmológicos, elas escapam!

Então estou tomando um delicioso chopp de trigo nalgum bar deste canto do hemisfério sul na terceira pedra do Sol, e tento fazer com que meus amigos percebam que nem a caneca em cima da mesa está perfeitamente parada, nem nós mesmos em nossas cadeiras, nem o planeta, nem mesmo a estrela por onde temos girado.

Desde o mais ínfimo átomo do trigo, tudo vibra e nada está parado. E em meio a conversas sobre resultados de partidas de futebol e eleições, não só o bairro da Lapa, como nossa galáxia inteira está a rodopiar junto a um aglomerado de bilhões e bilhões de sóis e seus mundos, rumo a onde quer que este Big Bang queira nos levar!

Enquanto vivemos esta vida entre dois séculos contados desde o nascimento de Cristo, as placas tectônicas se movem alguns bons milímetros, e algumas montanhas crescem um pouco, enquanto outras diminuem. Há árvores imensas e frondosas que nos viram nascer, e ainda verão muitas gerações de nossas famílias chegarem e partirem novamente.

Pasmado com tanta grandiosidade, posso muito bem concordar com Caeiro, há de fato metafísica suficiente em não pensar em nada...

E assim, de tanto não pensar, de tanto sentir, quem sabe eu também deixe de ser metafísico por um instante, quem sabe por breves momentos deste ir e vir incessante de sóis e átomos eu consiga deixar este observador de lado, para me espalhar por tudo o que há.

Não há misticismo maior do que romper tal casulo do ser, e voar assim, verdadeiramente liberto, seguindo a fragrância ancestral deste Amor que mantém a dança dos mundos: uma abelha seguindo o caminho do pólen, um pássaro rumando ao Monte Kaf, um louco saltando um abismo, um franciscano em busca de um bom pedaço de pedra para usar como tijolo em sua igrejinha, um físico maravilhado com a relação entre o espaço e o tempo, um poeta a escrever com sangue e lágrimas...

E depois voltar, da eternidade para a Lapa, e terminar o chopp, junto aos amigos. E olhar rapidamente para as estrelas, sem que percebam, e orar esta grande oração de uma palavra só, gratidão. É este, meus caros, o meu Evangelho!

Mas nada disso era para ser dito. Nada disso terá fim, tampouco teve um início...


raph’16

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Crédito da imagem: Google Image Search/Holzweg

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