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16.7.17

A demissão

Quando você está há mais de uma década trabalhando na mesma empresa, quando se sente bem nela ao ponto de sequer se preocupar em acompanhar o quanto o seu passe está valendo no mercado, você parece ter uma parte essencial da vida moderna resolvida: a caça. Isto é, uma caça regulamentada, com dias e horários pré-determinados, férias e décimo terceiro. Você se torna uma espécie de caçador pacato, que finge não haver competição, ou a bem da verdade, sequer se lembra dela.

Quando você tem a sorte de poder trabalhar de casa, e ganha algumas horas que gastaria no seu deslocamento diário para fazer basicamente qualquer coisa que quiser, você pode se tornar até mesmo acomodado. A minha acomodação foi criar um blog e desafiar as páginas em branco, ou telas vazias do Word, no lugar de desafiar a hora do rush. Minha vida estava, portanto, indo muito bem. Mas, como sabemos, a existência teima em ser profundamente impermanente. Talvez, por já saber tão bem disso, tenha me resguardado algo absolutamente essencial: saber viver com pouco.

Como disse o sábio Mujica, “nós inventamos uma sociedade de consumo, e como a economia tem de crescer (ou acontece uma tragédia), inventamos uma montanha de consumos supérfluos. Vive se comprando e se descartando, mas o que estamos gastando é tempo de vida. Porque quando eu ou você compramos algo, não compramos com dinheiro, compramos com o tempo de vida que tivemos de gastar para conseguir esse dinheiro. Mas há um detalhe: a única coisa que não se pode comprar é a vida. A vida se gasta. E é miserável gastar a vida para se perder a liberdade.”

Num dia qualquer de trabalho, pouco antes do feriado de Semana Santa, aconteceu à suposta tragédia: meu chefe, e também grande amigo, me ligou e avisou, com certa dificuldade e voz embargada, que a crise estava muito aguda, que nunca tinham visto nada igual, que tentaram segurar o máximo que foi possível, mas que não dava mais, eu estava demitido, sem justa causa. Assim, era evidente que a minha economia iria parar de crescer, mas não era aquilo que me afligia naquele exato momento. A primeira coisa que pensei, para falar a verdade, é que provavelmente nunca mais iria trabalhar com aquela espécie de família da qual participei, com orgulho, por mais de uma década.

Afinal, eu nunca me senti gastando a vida enquanto trabalhei por lá. Lógico que nem sempre fiz tudo o que gostaria de fazer. Numa empresa de tecnologia da informação você pode participar de muitos projetos legais, ter muita liberdade criativa, mas você ainda vai ter de cadastrar aquelas centenas de conteúdos de teste mais dia menos dia, porque não há estagiário que dê conta de tamanha chatice todo o tempo. Mas o mais importante é que numa empresa deste tipo, quiçá o símbolo da nova economia, não há tanta hierarquia, ninguém se achando muito acima ou abaixo de ninguém, e todos podem muito bem pensar que estão numa grande brincadeira entre amigos. Às vezes vimos clientes chatos e desbocados, mas meu cargo era mais técnico do que de gerência ou atendimento, mesmo disso eu estava livre.

Parecia, enfim, que a vida me havia colocado por pouco mais de uma década naquele homeoffice abençoado, onde além de trabalhar com amigos, tinha tempo de escrever um blog e muitas outras coisas, mas que a minha grande sorte tinha acabado... teria de voltar a caça e a coleta, teria, quem sabe, de voltar a gastar um pouco de vida para perder um pouco de liberdade. Bem, isso me valeu algumas noites de insônia, mas nada de muito grave – grave seria, isto sim, se eu precisasse de muito para viver. Fiz os cálculos e, se fosse necessário, poderia tirar o ponto extra da TV a cabo, viajar menos vezes por ano para visitar a família em meu estado natal, comprar mais e-books nas promoções da Amazon, essas coisas...

Passou a Semana Santa e já havia conseguido manter uma consultoria pelos próximos três meses, como freelancer. Ou seja, estava oficialmente de volta a época do emprego temporário, sem tantos direitos além da própria negociação meio boca a boca, meio contratual, havia voltado no tempo junto com o resto do país. Tudo bem, mas o que mais me preocupava era encontrar alguma caçada mais fixa onde pudesse sobrar tempo de tocar o meu blog, ainda que noutro ritmo.

Em meio à crise, morando num estado onde nunca de fato trabalhei, sem muitas possibilidades de recorrer a “quem indica”, passei por algumas entrevistas sem sucesso para a minha área de caça, e logo comecei a imaginar outras possibilidades. Coisa de imaginador mesmo...

Via as atendentes do Café onde vou religiosamente todas as tardes, logo após o almoço, e imaginava se não seria um emprego legal, independente do salário é claro... mas logo me lembrei que eles não contratavam homens para esse tipo de serviço, deve ser alguma norma da empresa: para servir café, somente mulheres por favor.

Depois, rodando pelo shopping, me lembrei da minha loja preferida, que obviamente era uma livraria. Lá havia um vendedor mais velho, que provavelmente já deveria ter se aposentado mas continuava trabalhando, pois estamos no Brasil certo, enfim, me lembro de quando estava dando uma olhada no Zaratustra de Nietzsche, e ele me disse assim: “heh, Deus está morto né?”

Mas ele me disse isso com um tal sorriso no olhar, e no canto da boca, que não parecia ser a exclamação de um ateu, mas justamente a conclusão de alguém que havia lido Nietzsche e o compreendido plenamente: que só pode existir um Deus vivo que saiba dançar, junto conosco! Em todo caso, naquele dia minha resposta foi mais um “pois é”.

Meses ou anos depois, sempre retornando a livraria, pude ver que aquele mesmo vendedor sempre me acompanhava pela loja, curioso, provavelmente, pela variedade de prateleiras que eu visitava, desde poesia e literatura fantástica a filosofia, divulgação científica, e até mesmo aquela estante onde só havia livros da Madras!

Me lembro bem de como noutro dia deste rio da memória, estava ali perto da estante da Madras dando uma boa olhada em 20 Casos Sugestivos de Reencarnação, de Ian Stevenson, e ele se aproximou novamente e soltou no ar: “isso daí é bem impressionante, não acha?”. Desta vez, já quase como um amigo distante, respondi: “De fato, é o que acontece quando um cientista é livre para pesquisar o que bem entender”. Ele sorriu e respondeu, “vai levar?”. “Vou”. “Então deixa eu lhe dar o ticket”. Eu apresentei o ticket, comprei o livro, e saí satisfeito, sabendo que meu quase amigo ficaria com alguma parte da minha compra.

Retornando das águas do rio, imaginei que seria excelente trabalhar indicando livros de filosofia, ou poesia, ou literatura clássica, ou o que for, para as pessoas em geral, e ainda ganhar alguma coisa por cada ticket, além do salário, seja ele qual fosse. Eu pensei comigo: ainda que sobrasse menos tempo para escrever, era bem possível que pudéssemos ficar lendo nas horas vagas... Bem, na verdade não sei se seria, talvez fosse melhor fazer como Pessoa e procurar uma vaga nalguma biblioteca.

E assim, me imaginando nos empregos dos outros, e não me sentindo nem menor nem maior por conta disso, fui reparando a mágoa da demissão. O freelance de três meses foi estendido, em sucessivos contratos de adição, para mais de um ano, e estou até hoje nesta bela caçada alternativa... com ainda mais tempo livre para tocar o blog e nossas traduções e edições de e-books para a Amazon; sem estar no controle de nada, e não precisando estar.

Os estoicos tinham toda razão. Preocupemo-nos com o que podemos mudar. Neste rio da existência, o melhor mesmo é aproveitar a passagem, e gastar a vida mais sendo levado pela correnteza do que tentando remar contra a maré. Mas eu tive sorte, tive oportunidades e as soube aproveitar razoavelmente bem. Infelizmente, não é o que ocorre com a maioria dos brasileiros. Para a maioria, ser demitido ainda é uma situação consideravelmente mais desesperadora do que foi a minha. Se é que vale de algo, dedico este conto a vocês. Força pessoal!


raph’17

***

Crédito da imagem: Google Image Search

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2 comentários:

Blogger Unknown disse...

Impressionante como eu sempre encontro o que preciso ler quando passo por aqui. Essa semana mesmo travei um diálogo interno pesado acerca das minhas obrigações como trabalhador. Gasto cerca de 4 horas diárias com locomoção em várias modalidades públicas da capital de São Paulo, o peso fisco e psicológico que isso anda me trazendo está acabando comigo. A tempos luto para terminar a leitura de Veias abertas da américa latina do Eduardo Galeano, mas o cansaço me vence antes de terminar a segunda página. Isso anda me assustando, o quanto eu gasto de vida e liberdade a ponto de não conseguir terminar um livro? Enfim, sua leitura me ajudou a identificar novas oportunidades sem aquele olhar aficionado sobre mega carreiras bem-sucedidas, talvez a solução esteja aí batendo em minha porta incessantemente, eu que não estou com as chaves certas para abri-la.

Muito obrigado!

28/7/17 13:49  
Blogger raph disse...

Olá Andre, obrigado por seu depoimento. Sem dúvida, nem sempre ter o melhor salário possível significa necessariamente ser "bem sucedido na vida". As vezes é mais "rico" quem sabe viver com menos do que quem se sente obrigado, por alguma razão, a desfrutar o maior luxo possível. Isso tudo são apenas reflexões, e sem dúvida cada um sabe o que é melhor para si, mas é possível mudar, passo a passo, devagar, para um estilo de vida onde, nem sempre, "tempo é dinheiro". As vezes, tempo é só vida mesmo. E é isso que vale pensar: a vida não se compra, apenas se gasta.

Abs!
raph

28/7/17 14:27  

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