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31.3.20

O Apocalipse do COVID-19 (parte final)

« continuando da parte 2


Há anos atrás, na minha época de faculdade, me chegou às mãos um livro chamado Projeto Evacuação Mundial, da autoria de um sujeito chamado Ergom. De início, ele se parece com uma ficção científica acerca de um futuro catastrófico, onde uma pequena parte da humanidade seria salva por naves de seres alienígenas. Poderia até ser uma leitura interessante, não fosse pelo fato do autor, e de quem havia me indicado o livro, acreditarem piamente que ele descrevia um futuro real.

Aqui vai uma sinopse bem resumida do enredo: Os tempos “são chegados”, uma “nova era” se aproxima e ela não trará a princípio boas notícias para nosso planeta. Grandes desastres naturais e guerras causadas pela ignorância humana vão transformar a Terra em um inferno. Porém, alguns “eleitos” e “iniciados nos mistérios do Comando Ashtar” serão selecionados para escaparam do desastre terreno na Nave-Mãe do Comandante Ashtar e outras naves de sua frota. Através desses seres “evoluídos espiritualmente” espera-se que a raça humana persista, e que possamos povoar outros mundos.

Antes que me perguntem, o Comandante Ashtar Sheran seria uma espécie de líder de povos alienígenas que teria por função garantir a boa manutenção e sobrevivência das raças conscientes da nossa galáxia. Ou algo assim, pois podem apostar que eu não pesquisei muito a fundo.

Em todo caso, o que me incomoda nessa história não é exatamente o fato de que ela dá por certo a existência de alienígenas inteligentes e organizações políticas interplanetárias, mas sim o fato dela recontar, usando nova roupagem, uma história muito antiga – aquela em que um pequeno grupo de eleitos é salvo de um mundo arruinado, e então encaminhados para alguma espécie de reino celeste de boa aventurança. Ou seja: um Apocalipse.

A retirada do véu
Como já foi dito, o termo “Apocalipse” vem de uma palavra grega que significa “revelação”. Sendo mais específico, o termo indica que esta revelação se dá pela “retirada do véu”, como se houvesse um véu ocultando alguma verdade, que é retirado, revelando-a.

Segundo diversas tradições religiosas, esse Apocalipse está intimamente associado a eventos que se darão no fim dos tempos. É algo tão tradicional que existe até um termo para o estudo de tais histórias: “escatologia”. Embora ela esteja usualmente associada às narrativas judaico-cristãs, também há a escatologia do zoroastrismo, do hinduísmo e até mesmo do budismo.

Tradicionalmente, a interpretação literal dessas histórias indica que o nosso mundo irá passar por um período de depravação e degradação moral nalgum futuro mais ou menos próximo, e que alguma espécie de divindade raivosa irá nos punir com pragas e catástrofes. No entanto, aqueles que se mantiverem “puros” e fieis aos preceitos da divindade serão poupados (ou “salvos”), para serem em seguida encaminhados a algum Céu. Aos que aqui sobrarem, restará os castigos do Inferno.

Ora, esta é uma ideia estranha para mim. Afinal, como poderiam os “puros”, os “espiritualmente elevados”, os “amorosos”, contentarem-se em fazer “sabe lá o quê” nalgum Céu, enquanto sabem que a maior parte dos seres humanos permaneceu em sofrimento num mundo infernal? Isto seria mais ou menos o mesmo que oferecer aos médicos que atuam nos rincões mais miseráveis da África (como a organização Médicos Sem Fronteiras) a grande oportunidade de viverem o resto da vida nalgum resort paradisíaco das Bahamas, com tudo pago. Eu posso estar enganado, mas creio que a grande maioria deles iria preferir permanecer exatamente onde estavam, ajudando a salvar vidas. O Céu pode esperar.

Pois a mim sempre pareceu óbvio que, enquanto há sofrimento e ranger de dentes em qualquer parte infernal da Criação, o Céu estará vazio. Ele seria no máximo um ponto de encontro ocasional para reuniões de anjos e arcanjos, pois o seu trabalho se daria justamente onde são mais necessários: no Inferno. Se um anjo é insensível ao sofrimento dos que padecem nos infernos, se não busca lhes ajudar e iluminar com seu amor celeste, então é porque em realidade nunca foi anjo.

Por outro lado, o reino celestial pode ter estado todo o tempo aqui no mundo, bem diante dos nossos olhos, e só nos faltou levantar o véu.

“Então serão a pobreza”
O Jesus descrito no Evangelho de Tomé, um dos evangelhos apócrifos (achados em jarros enterrados em Nag Hammadi – Egito – em 1945, mas que datam dos primórdios da era cristã) tinha uma visão muito distinta deste Reino celestial. Por exemplo, quando seus discípulos lhe perguntaram “quando viria o Reino”, esta foi a sua resposta:

Ele não virá somente por sua espera; não dirão: Ei-lo aqui! Ou ei-lo acolá!
O Reino do Pai está espalhado sobre a terra e os homens não o veem.

Ora, há muitos de nós que aguardam pelo fim dos tempos, pela volta do Cristo, pelas naves de Ashtar Sheran, como quem já está cansado deste mundo, como quem já não nutre nenhuma esperança na sua melhora, como quem prefere que tudo se acabe logo, para que possam ser salvos, supostamente, por algum julgador estranho que determinará quem deve passar o restante dos seus dias nalgum paraíso de ócio eterno, e quem deve ser deixado para trás.

“Muitos são os chamados, e poucos os escolhidos”. Eu penso que essa passagem do Novo Testamento tem sido mal interpretada há séculos: os escolhidos não serão aqueles que serão “salvos” na nave do Comandante Ashtar ou nas carruagens angélicas; mas, pelo contrário, os verdadeiros escolhidos são aqueles que já encontraram a divindade em si mesmos, e já estão trabalhando para erigir nesta terra um Novo Céu. Em suma, os escolhidos são aqueles que já criaram olhos para ver o Reino espalhado sobre a Terra.

O que muda quando todo o mundo entra em transe, quando as ruas esvaziam, as fábricas reduzem a produção, os bares fecham, e os transeuntes passam a transitar somente em si mesmos, confinados em seus lares? O que muda quando bilhões de pessoas têm a oportunidade de estarem todas ao mesmo tempo sós, sem poder consumir, apartadas momentaneamente da ânsia pela produtividade? O que muda quando o tempo já não é mais dinheiro, já não é mais uma corrida pela sobrevivência, mas um tempo de viver, de tratar, de curar?

Infelizmente nem todos têm o privilégio de poderem deixar de trabalhar pelo pão do dia seguinte enquanto vivem esta quarentena. Mas, para as dezenas de milhões de almas que podem parar e refletir sobre o que são e o que realmente desejam para suas vidas, quiçá pela primeira vez em décadas, talvez esta quarentena seja um Apocalipse, uma revelação, um desvelar, uma reconexão com o que elas em verdade são, em detrimento do que possuem ou deixam de possuir.

E o mundo, o mundo continuará sendo o mundo. Não é o mundo que muda, somos nós; e cabe a nós construir o Reino, um tijolo por vez...


Disse Jesus: Se aqueles que os guiam disserem, “Vejam, o Reino está no céu”, então os pássaros os precederão. Se lhe disserem, “Ele está no mar”, então os peixes os precederão.

Mas certamente o Reino está dentro, e também fora, de vocês mesmos. Se o reconhecerem, serão reconhecidos, e saberão que são filhos do Pai Vivo.

Mas se não o reconhecerem, então estarão na pobreza, serão a pobreza.

***

Crédito das imagens: [topo] Getty Images; [ao longo] Jesus (Joaquin Phoenix) no filme Maria Madalena (2018).

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4 comentários:

Blogger Canal Mobilizadores disse...

Muito boa maneira de olhar!
Obrigado pelo texto!

2/4/20 00:24  
Blogger Órbita Astronauta disse...

Ótima reflexão Rafa. 🏆😎👍🏻

2/4/20 14:38  
Blogger Lu Paes disse...

Exatamente isso que vejo, sinto, penso. Grata.

22/4/20 21:13  
Blogger raph disse...

:)

22/4/20 21:21  

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