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27.3.20

O Apocalipse do COVID-19 (parte 2)

« continuando da parte 1


Há quase dois mil anos o homem mais poderoso do mundo foi obrigado a passar a última década de sua vida isolado da sua cidade natal e da maior parte de seus amigos e familiares. Enquanto comandava de sua tenda militar as estratégias de defesa da fronteira norte do seu Império, nas suas parcas horas vagas ele se dedicava à escrita. Não um livro sobre a guerra, não uma história qualquer que talvez viesse a ser publicada e lhe conferisse alguma fama na posteridade. Não, o imperador não dava nenhum valor para aplausos e exaltações, o seu único objetivo era salvaguardar o seu Império – leia-se: o seu povo.

O seu livro era na realidade um bloco de anotações para si mesmo, ensinamentos que havia adquirido em vida, dos livros, dos mentores, da própria experiência de estar vivo. O seu objetivo era aconselhar a si mesmo, dia após dia, para que pudesse cumprir sua missão sem fraquejar ante a tristeza e o desespero da guerra.

Este homem era Marco Aurélio, Imperador de Roma (121– 180 d.C.), e o seu alicerce era a própria filosofia. Talvez ela ainda possa ser útil, dois mil anos depois:

A filosofia e a crise
Quando estava no colégio, eu nunca tive aula de filosofia. A filosofia não era sequer mencionada. Assim, por desconhecê-la totalmente, a minha opinião sobre ela era a mesma do cidadão comum: “algo difícil, que provavelmente não serviria para nada”.

Isso mudou quando, já adulto, encontrei um livro de Platão na estante do meu pai e comecei a ler. Fédon (ou Da alma) foi para mim mais do que uma história, mais do que um registro histórico de uma época remota, mais do que alguma espécie de ensinamento moral: aquele livro me demonstrou do que a filosofia, o amor genuíno ao saber, era realmente capaz. Aquelas páginas antigas podiam de fato me melhorar, e tornar a minha própria relação com a vida algo mais profundo. Não era mera questão de “autoajuda para momentos de dificuldade”, mas uma conexão genuína com os sofrimentos e os prazeres da existência, a vida e a morte, a dor da perda, a magnanimidade do amor. Aquele livro me ensinou a pensar, a pensar para melhor viver.

Marco Aurélio também conheceu Platão, e certamente leu o Fédon, mas foi no estoicismo que achou a base definitiva para ancorar sua alma. Essa corrente filosófica surgiu em Atenas (Grécia), já após Platão e Aristóteles, quando por volta do ano 301 a.C. um estrangeiro de origem fenícia chegou a cidade e passou a divulgar sua doutrina e atrair discípulos. Seu nome era Zenão de Cítio.

Ao contrário de muitos filósofos da época, Zenão preferia realizar suas palestras em locais públicos, sendo o seu ponto favorito uma espécie de “pórtico” (stoa, em grego) da cidade. Por conta da palavra stoa, a nova doutrina veio a ser conhecida como estoicismo. Zenão teve alguns discípulos que vieram a se tornar relativamente famosos, mas do ponto de vista histórico existiram três estoicos tardios, nascidos séculos após Zenão, que foram muito mais importantes que ele próprio: Sêneca, Epicteto e o próprio Marco Aurélio.

Sêneca (3 a.C. – 65 d.C.), a exemplo de Marco Aurélio, conseguiu ser bem sucedido na filosofia e na política, tendo alcançado o cargo de senador romano. Foi Epicteto (60 – 100 d.C.), entretanto, o grande exemplo seguido pelo imperador filósofo. Ao contrário dos outros dois expoentes do estoicismo, Epicteto teve origem humilde e foi escravo por boa parte da vida; mesmo assim tal fato não o impediu de ter sido um dos pensadores mais originais da história da filosofia, ao ponto da própria obra de Marco Aurélio ser mais uma espécie de comentário alongado de Epicteto do que algo propriamente original.

A própria essência do estoicismo foi de tal forma resumida no início do Manual de Epicteto, que poderíamos dizer que todo o restante pode ser desenrolado, como um fio, desta reflexão inicial:

“As coisas se dividem em duas: as que dependem de nós e as que não dependem de nós. Dependem de nós o que se pensa de alguma coisa, a inclinação, o desejo, a aversão e, em uma palavra, tudo o que é obra nossa. Não dependem de nós o corpo, a posse, a opinião dos outros, as funções públicas, e, numa palavra, tudo o que não é obra nossa. O que depende de nós é, por natureza, livre, sem impedimento, sem contrariedade, enquanto o que não depende de nós é fraco, escravo, sujeito a impedimento, estranho.” (Manual, I)

Enquanto Marco Aurélio impedia que invasões bárbaras devastassem o Império Romano a partir do norte, no restante dele o povo desfrutava de uma vida boa e pacífica, ao menos para os padrões da época. Foi com a morte do imperador que o Império iniciou a sua decadência, e jamais voltou a ser o que era.

Penso que tal ideia sirva como uma bela metáfora para o que se passa em nossa própria mente. Precisamos defendê-la dos maus pensamentos, que insistem em romper suas fronteiras. Precisamos estar a postos, em todos os momentos, para que saibamos o que é de fato nosso pensamento, e o que é influência externa; o que é de fato a nossa vontade genuína, a nossa essência, e o que é mera sedução de ideias estrangeiras; em suma: o que depende de nós, e o que não deveria nos afligir, pois está além da nossa decisão.

Marco Aurélio passou anos tendo de defender o Império da crise. Nós talvez tenhamos que nos aquartelar em casa somente por alguns meses. Nenhum de nós talvez tenha a resiliência do imperador, mas o que importa nesse tempo de crise é que saibamos que é sim possível olhar para dentro e reconhecer enfim quem nós somos de fato, isolados do mundo, perto da essência. Para tal a filosofia pode ser de grande ajuda.

DIA 1
Hoje resolvi estabelecer uma quarentena entre eu e o mundo. Que ela seja o mais duradoura possível, e que de agora em diante eu possa reconhecer o meu próprio pensamento.

Para que eu possa expressar no mundo quem eu realmente sou, e não quem eles gostariam que eu fosse. Para que minha fortaleza e meu templo estejam sempre aqui comigo, e não mais nalgum lugar lá fora. Para que eu chore, mas que sejam genuinamente as minhas lágrimas. Para que eu sorria, mas que seja por um sentimento de alegria verdadeira.

Daqui em diante, passo a passo, tentarei ser o imperador de mim mesmo. E o mundo continuará sendo o que tiver de ser...


» Na sequência, o Apocalipse.

***

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (estátua de Marco Aurélio); [ao longo] Maxim Duzij/unsplash

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