Rabia Basri, a santa dos primórdios do sufismo
Conta a lenda que no século VIII, num pequeno vilarejo próximo a atual Basra, cidade no extremo sul do Iraque, uma mulher foi vista circulando pela viela principal segurando um lampião numa mão e um vaso d’água na outra. Veio então um mercador e lhe perguntou o que diabos ela estava fazendo, uma vez que a mulher parecia enxergar algum outro mundo que os demais não podiam ver. Ela respondeu:
“Eu quero apagar as chamas do Inferno e botar fogo no Paraíso.”
O mercador, que felizmente não era lá tão religioso ao ponto de ficar transtornado com aquela resposta, ainda assim procurou saber o motivo dela, ao que a mulher a sua frente complementou:
“O Paraíso e o Inferno estão bloqueando meu caminho até Allah. Se eu devo adorá-Lo por temor do Inferno, que eu queime no Inferno. Se eu devo adorá-Lo pelas recompensas prometidas no Paraíso, que eu seja expulsa dele para sempre. Mas, se já não existirem nem Inferno nem Paraíso, então que eu possa adorá-Lo por quem Ele é, e que Ele não esconda mais de mim a sua face, e que já não haja nada mais além de Ishq-e Haqeeqi [amor verdadeiro].”
Ishq-e Haqeeqi, o amor real e verdadeiro, o amor de Allah, onde todos os místicos buscam mergulhar, é uma palavra árabe que define os primórdios do sufismo, o misticismo do Islã. A tal mulher da história é Rabia Basri, santa sufi que influenciou diretamente diversos místicos e poetas posteriores, desde Farid ud-Din Attar a Jalal ud-Din Rumi.
Muito pouco se sabe sobre ela, e muitos dos poemas a ela atribuídos podem muito bem ser da autoria de terceiros. Neste caso, as lendas em torno da sua existência – isto é, a sua mitologia – provavelmente contam mais do que a sua vida real. Mesmo o seu nome, Rabia Basri, significa algo trivial: algo como “a quarta (rabi’a) filha da família, residente de Basra”. No entanto, considerar que uma mulher pobre, camponesa, iletrada, que jamais deixou algo escrito, e que viveu nos primórdios do Islã, ainda assim possa ter influenciado de tal forma o sufismo, e sido reconhecida como santa ainda em vida, diz o tanto que Rabia foi especial.
Segundo o mito, sua família não teve condições de sobreviver intacta durante um longo período de secas e fome, de modo que Rabia eventualmente foi vendida como escrava. Então, ela fazia a faxina e ajudava a cuidar da casa do seu mestre, e todas as noites, sem exceção, rezava em meditação profunda. Desde cedo, ela buscava estar no amor de Allah (no “campo além das ideias de certo e errado”, como definiu Rumi, o célebre poeta sufi, séculos depois). Uma bela noite, seu mestre se dirigiu até seu quatro para espiá-la – quem sabe, pelo fato dela já estar mais crescidinha –; e percebeu, estupefato, que uma luz irradiava dela enquanto rezava a Allah. Na manhã seguinte, decidiu declará-la livre, possivelmente por temer alguma punição divina por manter uma santa em cativeiro.
Assim Rabia se tornou uma mística e asceta em pleno Islã do século VIII. Não há muitas informações confiáveis acerca de como se manteve solitária e supostamente virgem num brutal mundo de homens. Mas há uma outra história, um pouco mais confiável por ter sido contada por um sábio reconhecido de sua época, que pode jogar alguma luz sobre o tema.
Antes de chegarmos a ela, é preciso considerar um problema de datas. Hasan al-Basri foi um teólogo sufi que viveu boa parte da vida naquela mesma região. No entanto, ele nasceu em 642 e morreu no ano 728, ao passo que Rabia supostamente nasceu entre os anos 714 e 718 e morreu no ano 801. Quando Hasan encontrou-se com Rabia, certamente era um ancião no fim da vida; Rabia, porém, muito provavelmente já não era mais uma pré-adolescente. Assim, talvez ela tenha nascido pelo menos uma década antes das datas consideradas mais aceitas. Bem, pelo menos se considerarmos a história de Hasan verdadeira. Vamos a ela:
"Eu passei a noite inteira e a manhã seguinte com ela. Em nenhum momento passou pela minha mente que ali, em sua presença, eu era um homem, tampouco que ela era uma mulher. Quando a vi a primeira vez, eu percebi que meu espírito estava falido, que eu era como um mendigo; enquanto ela, ela era a pessoa mais rica que eu já havia encontrado."
O relato de Hasan se refere a uma noite em que se dirigiu a tenda de Rabia em busca de um genuíno diálogo entre místicos. É preciso ressaltar que um teólogo sufi como Hasan não fazia votos de celibato. Isso quer dizer, obviamente, que ele não tinha nenhuma obrigação de negar seus instintos sexuais. No entanto, quando passou uma noite só numa tenda com uma mulher muito mais jovem do que ele, “em nenhum momento passou por sua mente que ele era um homem e ela era uma mulher”. Talvez isso explique como Rabia passou a vida inteira solitária: nenhum pretendente, ante sua presença, parece ter conseguido levar adiante alguma proposta de casamento – ela já estava “casada” com Allah, era algo até mesmo óbvio.
Assim, Rabia passou toda a vida voltada para o convívio íntimo com Allah, em todos os momentos. Ao ponto de, ao morrer, perto dos oitenta e poucos anos de idade, ter em suas posses tão somente um tapete de junco, um manto, um jarro de cerâmica e um colchão que também lhe servia para rezar e meditar. Afinal, para ela, tudo parecia se dissolver em Allah, ela nunca precisou de nada além Dele:
Em minha alma
há um templo, um santuário, uma mesquita, uma igreja
onde eu me ajoelho.
A oração deveria nos levar a um altar
onde não existem
nem muros nem nomes.
Acaso não há uma região do amor
onde o altar real sequer é iluminado pelas velas,
onde o êxtase derrama-se em si mesmo
e se perde,
onde as asas estão plenamente vivas,
mas já não possuem nem mente
nem corpo?
Em minha alma
há um templo, um santuário, uma mesquita, uma igreja
que se dissolvem...
Neste momento
onde eu me ajoelho
todas as construções se dissolvem,
tudo se dissolve
em Allah... [1]
Quando Hasan faleceu, toda Basra se mobilizou em seu funeral. Afinal, tratava-se de um proeminente teólogo. Anos mais tarde, na morte de Rabia, provavelmente a comoção foi consideravelmente menor. Apesar de santa, Rabia era uma mulher, e a menos que fosse alguma rainha ou princesa, não havia motivos para realizar um funeral tão luxuoso para uma mulher. Foi o próprio Hasan quem disse, no entanto, que perto dela ele era “um mendigo”, e ela era “a pessoa mais rica que já havia encontrado”.
Os místicos sabem reconhecer a verdadeira riqueza. Ishq-e Haqeeqi, como somente ela soube (tentar) descrever:
Neste amor, não há nada se interpondo
entre um coração e outro.
O querer falar nasce da saudade,
a verdade acerca do real sabor da vida.
Aquele que o provou, sabe;
aquele que tenta explicá-lo, mente...
Como você poderia descrever a verdadeira forma de Algo
em cuja presença você se torna um borrão?
E em cujo Ser você ainda existe e perdura?
E que vive como um signo eterno para a sua jornada? [1]
***
[1] Poema atribuído a Rabia Basri (tradução de Rafael Arrais).
Crédito das imagens: [topo] Google Image Search; [ao longo] Wikipedia (representação de Rabia moendo grãos; retirada de um dicionário persa).
Marcadores: artigos, artigos (281-290), espiritualidade, islamismo, misticismo, poesia, Rabia Basri, sufismo
2 comentários:
Lindo Texto. Obrigado.
existe algum material em português de Rabia
Infelizmente há pouquíssimo material sobre ela em português, somente online mesmo.
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