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16.6.22

Nossa vida nas cartas (parte 2)

« continuando da parte 1

No início do século XX um homem teve um sonho muito curioso, que de certa forma mudou a história da psicologia. Eis o seu relato em primeira mão [1]:

“Sonhei que estava em minha casa, aparentemente no primeiro andar, numa sala de estar muito confortável e agradável, mobiliada no estilo do século XVIII. Estava admirado por nunca ter estado naquela saleta antes, e começava a me perguntar como seria o andar térreo. Desci e cheguei a um cômodo bastante escuro, de paredes almofadadas e uma mobília do século XVI, ou talvez mais antiga ainda. Minha surpresa e curiosidade aumentaram. Queria conhecer toda a disposição da casa. Desci então ao porão, onde encontrei uma porta que abria para uma lance de degraus de pedra, levando a uma grande sala abobadada. O piso era de enormes lajes de pedra e as paredes pareciam muito antigas. Examinei a argamassa e verifiquei que estava misturada a pedaços de tijolos. Obviamente eram paredes de origem romana. Sentia-me cada vez mais agitado. Num canto vi uma laje com uma argola de ferro. Puxei a argola e encontrei outro lance de degraus estreitos que conduziam a uma gruta, uma espécie de sepultura pré-histórica, onde se encontravam duas caveiras, alguns ossos e cacos de cerâmica. Nesse momento acordei.”

Este homem era Carl Gustav Jung, e foi ele próprio quem decifrou seu sonho, associando-o ao desenrolar da própria vida ou, mais especificamente, ao desenvolvimento de sua mente, desde a infância. Jung cresceu numa casa que tinha duzentos anos, filho de pais protestantes (o pai era reverendo luterano), tendo estudado as filosofias de Kant e Schopenhauer na juventude. O grande acontecimento da época era o trabalho de Charles Darwin. Até ali, o jovem ainda vivia orientado pelos conceitos medievais de seus pais, para quem o mundo humano ainda era conduzido primordialmente pela providência divina. Logo aquela visão tornou-se para ele antiquada, e sua fé cristã perdeu preponderância ao se ver defrontada com as religiões orientais e a filosofia grega. Depois, eventualmente se interessou por paleontologia e, enquanto foi assistente em um instituto de pesquisas na área, ficou fascinado com fósseis de hominídeos ancestrais. Tudo isso estava descrito de alguma forma em seu sonho, e Jung viu tudo isso analisando-o desperto, mas optou por não falar sobre sua autoanálise a Sigmund Freud, de quem ainda era grande colaborador na época:

“Logo verifiquei que Freud procurava algum “desejo inconfessável” no meu sonho. Por isso sugeri que as caveiras poderiam referir-se a alguns membros da minha família cuja morte eu desejasse, por um motivo qualquer. [...] Mas não se tratava do sonho de Freud, e sim do meu. Num lampejo intuitivo compreendi o que meu sonho queria me dizer. Tal conflito ilustra um ponto vital na análise dos sonhos: é menos uma técnica que se pode aprender e aplicar de acordo com certas regras do que uma troca dialética entre o analista e o sonhador. [...] Assim, eu desejava que o processo de cura nascesse da própria necessidade do paciente analisado, e não de minhas sugestões enquanto analista, que teriam apenas um efeito passageiro.”

Pouco depois de chegar a tais conclusões, Jung rompeu sua célebre parceria com Freud, e os dois grandes expoentes da psicologia do século XX passaram a seguir caminhos consideravelmente diversos na exploração do inconsciente humano. Eventualmente, Jung chegou a uma ideia que até hoje é polêmica: a de que o inconsciente humano poderia ser coletivo. Que, assim como uma cidade grande cresce, ao longo dos séculos, sobre as ruínas de bairros antigos, e assim como o próprio cérebro humano segue uma evolução parecida, com áreas associadas aos instintos animais sendo incrementadas com outras bem mais sofisticadas, relacionadas a raciocínios complexos, o mesmo se deu com a própria cultura humana, seus símbolos, deuses, heróis etc.

Para elaborar sua tese, Jung foi profundamente influenciado pelas ideias de Darwin. Ele dizia que nossa mente jamais poderia ser um produto sem história, ao contrário de nosso corpo, cuja história evolutiva pode ser traçada até pequenos mamíferos roedores que viveram há dezenas de milhões de anos. E, se houve um longo desenvolvimento do corpo humano, se por milhões de anos fomos mais animais que homens, o mesmo se deu com a mente. Para Jung, essa parte infinitamente antiga da mente é na realidade a base sobre a qual todo o resto foi erguido. Assim, em toda mente humana há “resíduos arcaicos”, “imagens primordiais” ou, para usar um termo que ficou para a história: arquétipos.

Mas tais arquétipos, ao contrário do que muitos são levados a pensar, não têm nada que ver com imagens específicas ou temas mitológicos bem definidos. Isso é o que se dá em cada geração ou grupo de gerações humanas, nesta ou naquela cultura. O arquétipo é algo anterior: é uma tendência a formar essas mesmas representações de um motivo (que podem ter inúmeras variações de detalhes) sem perder a sua essência ou configuração original.  O arquétipo é muito mais uma tendência instintiva do que algo que possa ser definido racionalmente, é como o impulso das aves para fazer seu ninho ou o das formigas para se organizarem em colônias: se nos pedem para definir racionalmente porque damos tanto valor a grandes heróis ou a uma ideia de Grande Mãe, não sabemos explicar bem o porquê, da mesma forma que uma abelha não saberia explicar porque se dedica tanto a produção de mel.

O próprio Jung nos traz um belo exemplo de como foi um arquétipo que deu origem à figura do Cristo:

“A ideia geral de um Cristo Redentor pertence ao tema universal e pré-cristão do herói e salvador que, apesar de ter sido devorado por um monstro, reaparece de modo milagroso, vencendo seja qual for o animal que o engoliu. Onde e quando essa imagem surgiu, ninguém sabe. E tampouco sabemos de que maneira conduzir tal investigação. A única certeza aparente é que essa imagem parece ter sido conhecida tradicionalmente em cada geração, que por sua vez a recebeu de gerações precedentes. Assim, podemos supor que a sua “origem” vem de um período em que o homem ainda não sabia que possuía o mito do herói; numa época em que nem mesmo refletia, de maneira consciente, sobre aquilo que fazia. A figura do herói é um arquétipo – existe desde tempos imemoriais.”

Finalmente retornando ao tarot, creio que já sabem onde quero chegar: assim como as figuras mitológicas em suas variadas representações, os Arcanos Maiores do tarot foram sendo construídos com o tempo, muito embora ninguém saiba ao certo por quem, e com que intenção. É que se trata essencialmente de uma criação coletiva, uma criação do inconsciente humano: nossa vida está nas cartas porque elas também espelham arquétipos. É nesse sentido que o tarot pode ser “declarado egípcio”, não porque tenha sido criado por um sacerdote específico há milhares de anos, mas porque, assim como nossos mitos mais antigos, o tarot diz respeito a arquétipos que se recusaram a desvanecer no tempo.

Um analista meticuloso da simbologia dos 22 Arcanos Maiores que compõem o tarot atual, baseados em baralhos clássicos como o Tarot de Marselha, dirá que eles surgiram da Europa cristã de cerca de 500 anos atrás, com representações do poder (o Papa, o Imperador, a Papisa, a Imperatriz), de três das virtudes cardeais (a Força, a Temperança, a Justiça), de alegorias religiosas (a Morte, o Diabo, a Casa de Deus – mais tarde, a Torre –, o Juízo Final ou Julgamento), de símbolos da cultura popular da época (a Roda da Fortuna, o Amor ou Enamorados, o Carro, o Louco, Bobo da Corte ou Andarilho) e, enfim, os planetas e os astros (a Estrela, a Lua, o Sol, o Mundo). No entanto, também sabemos que já existiram baralhos com número diferente de Arcanos, em ordenações diversas e com incontáveis representações pictóricas – afinal, até hoje a essência de um baralho de tarot original consiste em trazer novas imagens, e não as mesmas de séculos atrás, e nos primórdios não foi diferente. Ora, até mesmo o próprio Marselha teve versões bem específicas para regiões protestantes da Europa, onde o Papa e a Papisa foram substituídos pelos deuses Júpiter e Juno.

O que isso tudo quer dizer é que, à luz dos arquétipos e do conceito de inconsciente coletivo, pouco importa quem criou o primeiro tarot, quantos eram os seus Arcanos Maiores e quais eram exatamente suas imagens e simbologia: o tarot não se tornou tão difundido por um pretenso mistério acerca de suas origens, o tarot importa, e continuará importando por séculos e séculos, justamente por não sabermos ao certo de onde veio, e porquê. Essa resposta cabe a cada geração humana.

» Na sequência, por que o tarot não funciona.

***

[1] Os parágrafos com trechos entre aspas foram retirados do livro de Jung na Bibliografia.

Bibliografia
Para esta série nos valemos de conhecimentos e trechos obtidos nos livros História do Tarô (Isabelle Nadolny; tradução Luciana Soares da Silva; Editora Pensamento), Tarot Hermético (Marcelo Del Debbio e Priscilla Martinelli; Daemon Editora) e O Homem e seus Símbolos (Carl G. Jung e colaboradores; tradução Maria Lúcia Pinho; Harper Collins), no portal Clube do Tarô (por Constantino K. Riemma e outros colaboradores) e nos cursos Os Mistérios do Tarot – Arcanos Maiores e Menores (Marcelo Del Debbio) e Tarot: Os Mitos Modernos e a Cultura Pop (Rodrigo Grola e Marcos Keller).

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Carl Jung); [ao longo] Marcos Paulo Prado/unsplash (Cristo Redentor, no Rio de Janeiro); Manik Roy/unsplash (Tarot Mitológico).

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