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17.6.22

Nossa vida nas cartas (parte final)

« continuando da parte 2

Nessa altura do campeonato, talvez já tenha ficado claro que o tarot pode servir para muitas coisas. Entretanto, de um ponto de vista estritamente prático, mundano, se algo serve para alguma coisa, é preciso saber qual é a sua função, real utilidade ou, para resumir em uma pergunta que já ouvi muitas vezes: “Afinal, o tarot funciona?”

Essa é uma boa pergunta. Ocorre que, em se tratando do tarot, ela também pode ter uma miríade infindável de respostas. Antes de prosseguirmos, no entanto, é preciso deixar claro que para aquele que não acredita no tarot, que não o conhece nem se sente minimamente inclinado a conhecer, é bastante óbvio que o tarot não funciona, e jamais irá funcionar.

Até mesmo os mais céticos dentre nós podem encontrar uma utilidade para o tarot: a apreciação artística. Se o tarot é encarado enquanto obra de arte, ele é tão funcional quanto uma pintura, uma escultura ou uma sessão de teatro. No que essas coisas podem funcionar, afinal, senão no sentido de tocar as teclas de nossa alma, de nos encaminhar a estados de consciência mais poéticos, mais espirituais, mais próximos das belezas da arte do que das mazelas da rotina mundana? E, se é assim para tais expressões artísticas, o mesmo se dá com o tarot. Nesse sentido, um cético pode colecionar baralhos de tarot pela mesma razão que coleciona graphic novels de super-heróis, por exemplo. E, se prefere ilustrações modernas às representações medievais de baralhos como o de Marselha, tanto melhor: de fato, a grande maioria dos baralhos atuais foi concebida há poucas décadas, e alguns deles são primorosamente ilustrados.

Então entra a questão da simbologia. Agora sabemos que as cartas espelham arquétipos, e que eles perduram, de alguma forma, por centenas ou milhares de representações diversas. Mas, isso não teria um limite? Um artista contemporâneo não precisaria saber minimamente sobre o que o tarot quer dizer para conceber um baralho capaz de reter ao menos uma parte da luz arquetípica? Ora, mas a beleza da coisa é que o tarot regula a si mesmo: baralhos que tentem falsificar ou tratar de forma demasiadamente superficial os Arcanos Maiores, ou mesmo os Menores, serão esquecidos bem mais facilmente do que outros.

Isso não quer dizer que o tarot não possa se atualizar. Na realidade, ele deve. Se nossa vida está nas cartas, elas devem espelhar de alguma forma o nosso tempo, e não se manterem fossilizadas no medievo. Peguemos a figura do Louco, por exemplo. Nem sempre ele teve esse nome. No Tarot de Marselha, o seu nome era Le Mat, o que provavelmente foi um erro de tradução ao francês do italiano Matto, que significa Louco (este baralho na verdade surgiu no norte da Itália). No entanto, até mesmo isso repercutiu na história: mat vem do árabe, e está relacionado à “morte”, ou ao “xeque-mate” no jogo de xadrez, quando o rei adversário está encurralado, e perdeu a partida. Ocorre que mesmo esse “final de partida” continua tendo tudo a ver com a ideia arquetípica do Louco: o aventureiro ou iniciado que se encontra no início de uma nova jornada. Isto é, perde-se ou ganha-se uma partida e inicia-se outra [1].

Pictoricamente, o Louco em Marselha é uma espécie de andarilho maltrapilho, que traz seus pertences embrulhados num pequeno saco atado na ponta de um bastão, e tem um cachorro rasgando parte de sua calça. Isso está mais próximo do “xeque-mate” da pobreza do medievo do que de outras representações mais modernas. No Tarot de Waite-Smith, por exemplo, criado mais ou menos na época do sonho de Jung, o Louco se parece com um viajante nobre, com roupas confortáveis e uma espécie de bolsa de couro no lugar do saco, enquanto atrás dele um belo cão branco saltita sem no entanto tentar mordê-lo. Ainda que o novo Louco continue se vestindo com roupas relativamente antigas para sua época, ele é claramente um filho dos ideais humanistas e espiritualistas do início do século XX, e já abandonou há tempos a pobreza de alguns dogmas dos séculos mais antigos.

Todavia, houve a introdução de um elemento novo: o abismo. O Louco se encaminha para ele, e o cão amigo talvez tente alertá-lo do perigo da jornada à frente, do caminho espiritual. Mas ele segue com fé e esperança de que, de alguma forma, “saltará” sobre o abismo. Um cético dos segredos do tarot certamente estaria mais seguro retornando com seu cão para casa. Em nosso Tarot da Reflexão, eu e meu amigo Roe Mesquita representamos um Louco místico, já iniciado, que simplesmente voa para fora da carta e arrasta seu cão pela coleira. Ele já passou por aquela colina muitas vezes, e sabe que ainda serão infindáveis jornadas no caminho. Nosso Louco é fruto de uma esperança renovada, quiçá ingênua, na espiritualidade de nosso próprio século.

Quem estará “mais certo”? Nós? Arthur Edward Waite e Pamela Smith? Ou os criadores do Tarot de Marselha, sejam eles quem forem? Todos, e ninguém. Tudo vai depender do que cada baralho é capaz de despertar na alma daquele que se utiliza dele. Seja como obra de arte. Seja como simbologia. Seja como oráculo.

E aqui retornamos ao início de tudo, a quando eu achava que o tarot era “somente” um oráculo divinatório. Ora, ele é decerto muito mais do que isso, como temos visto até aqui, mas isso não significa que ele deixe de ser oráculo. E, em sendo um oráculo, como ele pode funcionar? Aliás, o tarot funciona?

Meu amigo Marcelo Del Debbio descreve uma espécie de “exercício” para quem quer se conectar com o tarot: todos os dias pela manhã, retirar uma carta do baralho e colocá-la sobre uma mesa com a face voltada para baixo. Depois, ao fim do dia, ao chegar em casa do trabalho ou antes de ir dormir, desvirar a carta e refletir sobre o que o seu Arcano tem a ver com o que foi vivido naquele dia. A ideia é que, com o tempo, você se torne tão afinado com o tarot que já vai saber qual é a carta antes mesmo de desvirá-la. Eventualmente, você também poderá desvirar a carta logo cedo e prever como será o seu dia, de tão adaptado que estará ao seu tarot.

O cético poderá ficar boquiaberto ao perceber que isso, de alguma forma estranha, funciona. Afinal, o que diabos seria se conectar, se afinar ou se adaptar ao tarot? Ora, no espiritualismo em geral há vários nomes para isso, mas no Brasil nos acostumamos a usar o termo mediunidade.

Há inúmeras teorias acerca de como e porque a mediunidade pode funcionar, mas podemos resumir em, talvez, três grandes hipóteses:

A primeira postula que o nosso inconsciente é algo muito mais vasto que nossa experiência consciente, e assim ele guarda consigo uma imensidão de informações que, no dia a dia, são simplesmente filtradas de nossa consciência, do contrário a vida seria impossível. Pense na quantidade de informação que uma pessoa moderna, moradora de alguma metrópole e conectada as redes sociais, acessa de alguma forma todo santo dia. Decerto muita coisa é varrida para debaixo do tapete da consciência, rumo ao inconsciente. A mediunidade poderia ser uma forma de acessar pedacinhos específicos desse inconsciente. Isso explicaria como podemos nos autoconhecer melhor através do tarot, mas se formos considerar que o tarot também pode trazer respostas acerca da vida de outras pessoas, isso só poderia ser viável através do acesso ao inconsciente coletivo proposto por Jung.

A segunda hipótese diz respeito à ideia de um anjo da guarda, Eu Superior ou Sagrado Anjo Guardião, ou ainda, a entidades espirituais em geral, sejam elas espíritos desencarnados ou deuses. Através da mediunidade, todos poderíamos nos conectar e conversar de alguma forma com tais seres do chamado mundo astral, e o tarot nada mais seria do que uma dessas interfaces – assim como, por exemplo, o jogo de búzios no candomblé ou a psicografia no espiritismo. Tais entidades não necessariamente seriam externas: há teorias que afirmam que o Sagrado Anjo Guardião, por exemplo, é nós mesmos em algum futuro distante, onde saberíamos tudo o que se passou nos milhares de anos de caminho espiritual. Segundo essa teoria, nós usaríamos o tarot para fazer perguntas a nós mesmos no futuro. Dá um baita filme de ficção científica!

Finalmente, a terceira hipótese, de longe a mais metafísica, parte da ideia que veio do hermetismo e afirma basicamente que “o Todo é mente”. Simplificando bastante, isso quer dizer que quem ou o que criou o espaço-tempo está, sempre esteve e sempre estará presente nele. Ou seja, não haveria nada no cosmos fora ou mesmo longe deste Todo, que é tudo o que existe. E, como fomos criados “a sua imagem e semelhança” ou, para citar outro conceito hermético, “o que está em cima é como o que está embaixo”, este Todo é tão mente quanto a gente: nós fazemos parte dele, somos como personagens na sua história. Nesse sentido, enquanto o inconsciente coletivo de Jung seria, para nós, inconsciente, para o Todo ele seria pura consciência – consciência universal. E, sim, isso tudo quer dizer que nós usaríamos o tarot para fazer perguntas diretamente a Deus, ou como queira chamá-Lo.

Seja de que ponto de vista você observe o tarot, fato é que há que se ter certa humildade diante dele, afinal ninguém, absolutamente ninguém, pode dizer que o compreendeu inteiramente. Nossa vida está e sempre estará nas cartas, mas as cartas são lâminas espelhadas, não estão vivas: refletem a vida. Há quem use tais lâminas para objetivos mesquinhos e egóicos, e se cortam nelas, e sangram sem necessidade. Mas há quem compreenda que elas podem refletir a luz do Alto, e assim jogar luz na escuridão da inconsciência, e tornar nosso caminho como um todo mais prazeroso, mais iluminado e mais colorido. A luz foi criada para ser refletida, e ela tem muitas cores!

***

[1] Alguns podem dizer que isso teria mais a ver com o próprio Arcano da Morte. Ora, mas é preciso lembrar que o Louco se encontra espalhado por todos os outros Arcanos. Ou foi só um erro de tradução mesmo...

Bibliografia
Para esta série nos valemos de conhecimentos e trechos obtidos nos livros História do Tarô (Isabelle Nadolny; tradução Luciana Soares da Silva; Editora Pensamento), Tarot Hermético (Marcelo Del Debbio e Priscilla Martinelli; Daemon Editora) e O Homem e seus Símbolos (Carl G. Jung e colaboradores; tradução Maria Lúcia Pinho; Harper Collins), no portal Clube do Tarô (por Constantino K. Riemma e outros colaboradores) e nos cursos Os Mistérios do Tarot – Arcanos Maiores e Menores (Marcelo Del Debbio) e Tarot: Os Mitos Modernos e a Cultura Pop (Rodrigo Grola e Marcos Keller).

Crédito das imagens (com links da maioria dos tarots na Amazon): [topo] Jack Sephiroth/Heaven & Earth Tarot (a imagem traz o Louco, e este tarot é obviamente uma releitura do Tarot de Waite-Smith); [ao longo] Anônimo e Pamela Smith (a imagem traz o Louco no Tarot de Marselha e no Tarot de Waite-Smith); Roe Mesquita (a imagem traz o Louco no Tarot da Reflexão, do qual sou cocriador, mas não ilustrador); Jen Theodore/unsplash (na imagem, o Wild Unknown Tarot, de Kim Krans).

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2 comentários:

Blogger Denis Cunha disse...

Bacana esta trilogia sobre o Tarot-Tarô...Foi como três cartas viradas nos apontando para potencialidades disponíveis, caso nos disponhamos a tal. Caminhos são diversos, porém, podemos ir por uma estrada plana e florida ou por uma cheia de pedregulhos pontiagudos e fria aridez. O certo e inevitável, é o Caminhar. Que façamos nossas escolhas em como ir. Que venham mais textos...Obrigado

18/6/22 10:06  
Blogger raph disse...

Valeu Denis! Caminhemos à frente :)

21/6/22 12:07  

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