O que está sempre vivo
Um homem do norte adentra sua casa no fim da tardinha. Os últimos raios de sol de um dia entre dias cada vez mais curtos, com cada vez menos claridade, adentram sua cabana de madeira. Lá dentro, sua família celebra o presente que ele vinha arrastando a duras penas pela estrada: não a carcaça de um animal, mas o tronco de uma árvore pequena, da família dos pinheiros, com suas folhas perenes – folhas que não morrem completamente nem mesmo no outono, que está prestes a ficar para trás.
Nas línguas antigas do norte europeu, esse tipo de árvore era chamada júl, e a preservação de um tronco pequeno em casa era parte das preparações para a celebração do solstício de inverno, que tinha o mesmo nome da árvore. Entre os de língua inglesa, tal celebração ficou conhecida como Yule, embora muitos escandinavos a chamem, até hoje, simplesmente de Júl.
A Terra não gira em torno do Sol com seu eixo totalmente vertical. Ele é relativamente inclinado, e por isso todo ano, enquanto nosso planeta completa uma volta em torno da estrela, nós temos dois solstícios. No solstício de verão no hemisfério sul, a parte de baixo da Terra está mais inclinada em direção ao Sol; porém, exatamente no mesmo dia, o hemisfério norte recebe menos raios de sol, tem o dia mais curto do ano, e daí se celebra o solstício de inverno. Meio ano depois, a situação se inverte, e enquanto o norte atravessa o dia mais longo do ano, o sul se encontra no mais curto – isto é, no menor período de luminosidade.
Além disso, para os astrônomos ancestrais, que observavam os astros a olho nu, já estava claro que o Sol nascia todos os dias num ponto um pouco diferente do anterior. E assim era até chegar o próximo solstício, quando o Sol começava a nascer de volta na outra direção do horizonte. No entanto, tais observadores também constataram que, logo após o solstício de inverno, o Sol ficava três dias nascendo exatamente no mesmo ponto do horizonte, para só então voltar a se deslocar. Foi tal fato astronômico que deu origem aos mitos de deuses e heróis que morrem para renascer três dias depois. Ademais, como o próprio solstício de inverno também traz consigo a noite mais longa do ano, em muitas culturas pagãs o ano-novo se iniciava justamente ali: uma morte seguida de um renascimento.
Ora, os povos ancestrais tinham o Sol em grande conta, ainda mais aqueles que viviam no norte europeu, e passavam invernos rigorosos com pouca (às vezes, nenhuma) luz solar. Para eles, o fato do astro seguir invencível, noite após noite, para renascer no dia seguinte, certamente o alçava à imortalidade, e decerto não foi difícil associá-lo a própria divindade. Assim, o ritual do corte de um pinheiro, de um júl, para trazê-lo até em casa e com ele passar todo o inverno, também tinha um simbolismo parecido, afinal as folhas do pinheiro são perenes, seguem verdes por semanas mesmo após o corte – elas representam o que sempre está vivo.
Além disso, o próprio fato das raízes de uma árvore como esta estarem fincadas no solo, enquanto seu tronco segue vertical por alguns metros, e seus galhos tentam alcançar o céu, faz dela um símbolo vivo da conexão entre o mundo e o reino celeste, a própria terra dos deuses. Séculos e séculos depois, na mesma região do mundo, um mito peculiar veio do Oriente Médio, e aos poucos conquistou a mente de boa parte das pessoas, de modo que as celebrações pagãs, então conectadas estritamente ao movimento do Sol, passaram por grande ressignificação. O próprio Sol não era mais propriamente um deus, mas a representação de um homem-deus: o Cristo que, crucificado, ressuscitou três dias depois.
Mas fica mais estranho que isso. Para os descendentes dos europeus que vieram se estabelecer no hemisfério sul, como no Brasil, as celebrações cristãs passaram a ser celebradas de modo invertido, de modo que o Natal, antigo Yule, não é celebrado no solstício de inverno, mas no de verão! E os pinheiros caseiros, transformados em árvores plásticas cheias de bolotas coloridas, já não tinham mais nenhuma conexão simbólica possível com os júl ancestrais.
E assim, enquanto no norte todos passam pela noite mais longa, pela morte do Sol, para celebrar seu renascimento três dias depois, no sul estamos suando a pino num jantar cheio de carne e vinho. Na verdade, no sul nós não deveríamos estar celebrando Yule, mas Litha, a festividade do solstício de verão, a celebração do dia mais longo do ano, quiçá a mais antiga festa religiosa da humanidade.
Bem antigamente, antes de Litha os pagãos celebravam Beltane, que marcava o início do verão. Era um festival da fertilidade, no sentido de que boa parte das colheitas já vinha sendo realizada. Nessa festa, grandes fogueiras eram feitas com gravetos de júl e carvalhos, árvores tidas como sagradas. Tais fogueiras eram consideradas portadoras de energia divina, e eram mantidas acesas por semanas e semanas, até que chegasse Litha, quando as pessoas tinham o costume de saltar por suas labaredas, agora próximas do apagamento, para absorver sua energia.
Séculos e séculos depois, ainda hoje pulamos as fogueiras das festas juninas, que foram ressignificadas pela Igreja para homenagear o nascimento de São João Batista, aquele que batizou o Cristo, e que foi o primeiro mártir do cristianismo. Ocorre que, mesmo isso, fazemos ao contrário no hemisfério sul: celebramos o dia mais longo do ano, o início do verão, quando estamos atravessando o dia mais curto, o início do inverno.
É verdade que a Igreja conseguiu dissociar as celebrações cristãs das pagãs, transformando a posição do Sol em símbolos que já não tinham quase nada que ver com ele. Mas foi no hemisfério sul que isso se deu de forma mais completa e absoluta, pois além de nossas festividades cristãs estarem dissociadas das estações do ano, elas ainda se encontram invertidas.
Por outro lado, para aqueles sulistas que se prestam a voltar a realizar tais festividades, sem necessariamente abandonar o Cristo, tal separação não é de todo ruim: afinal, você pode celebrar o Sol Invicto no fim de junho, e voltar a celebrar sua contraparte humanizada, o nascimento do Cristo, no Natal. Você pode, de fato, comemorar o nascimento de um deus duas vezes por ano.
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Crédito das imagens: [topo] Bruno Leschi/unsplash; [ao longo] Sérgio Bernardo/JC Imagem.
Marcadores: artigos, artigos (301-310), cristianismo, festas juninas, história, mitologia, natal, paganismo, simbologia
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