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12.4.12

Obituário

Era noite nos arredores do jardim da cidade, e o neófilo, curioso como sempre, sentiu-se atraído por aquele grupo de pessoas em volta de uma fogueira. O clima era úmido. Gotículas d’água pairavam como diminutos duendes pelo ar, cavalgando aleatoriamente as brisas, juntamente com pequeninos pedaços de madeira ainda chamuscada pelo fogo, que mais pareciam fantasmagóricas estrelas, ou vagalumes... Assim que chegou mais próximo, perguntou ao primeiro que o observou:

“Que é essa reunião na calada da noite?”

“Um velório.”

“Velório? Mas não vejo ninguém de preto, nenhum pranto, nenhum caixão...”

“Exato, é um velório sem cores de roupa pré-estabelecidas, sem caixão, e onde a tristeza se mistura com a felicidade e, dessa forma, não há pranto, apenas um doloroso lamento.”

“E vocês estão felizes pelo morto?”

“Claro, como já lhe disse: felizes e tristes, ao mesmo tempo...”

“Quem era, se me permite indagar?”

“Ninguém em especial, pelo menos para os desconhecidos. Para os amigos, no entanto, era um filho do Sol e das estrelas. Uma luz que se precipitou no mundo, tal qual estrela cadente, e pôde aquecer aos corações daqueles que a enxergaram de longe, e se dirigiram até ela.”

“Era algum santo, portanto?”

“Muito pelo contrário. Na verdade, um dia ele me disse – ‘Meu amigo, a maior armadilha que se ergue para esse caminho que escolhemos é nalgum dia crermos que somos alguma espécie de santo, e pior: nalgum dia algum louco acreditar nisso!’”

“E qual era esse tal caminho de vocês?”

Era não: foi, é, e sempre será. O caminho do autoconhecimento.”

“Interessante. Então vocês todos aqui são sábios?”

Sábio é aquele que conhece sua própria essência... Acho que ainda estamos no caminho, e não me parece ser tão curto, nem tão simples. Mas, pé ante pé, espero um dia chegar nalgum lugar um pouco mais distante de onde iniciei quando nasci para o mundo...”

“E como se caminha neste tal caminho?”

“Ah, existem muitas formas, meu caro... Podemos escalar as estátuas dos gigantes de outrora e, escorados em seus largos ombros, fazer com que a larga pedra uma vez mais caminhe à frente. Podemos sair pelo mundo, sem destino estabelecido, mas sabendo que ao fim de cada dia seremos obrigados a ter conhecido pelo menos um único novo amigo. Podemos montar um telescópio e com ele observar a luz mais antiga ao nosso alcance na imensidão da noite, mas contanto que o usemos para catalogar também as constelações de nossa própria alma. Podemos também aprender a escalar algumas montanhas ao nosso alcance, não somente para admirar a vista, mas principalmente para observar as carroças que seguem pelo vale do horizonte, e memorizar os sulcos que suas antigas rodas criam pela estrada... Enfim, são muitas formas de caminhar, mas no fundo há um só caminho.”

“Mas, e o morto, ele conseguiu chegar a algum lugar importante do caminho?”

“Bem, isso eu não sei, pois somente o ser pode realmente saber. Mas um dia soube através dele que ele tinha chegado a um descomunal precipício que demarcava a fronteira de dois grandes países, e que desde então vinha construindo uma ponte – um tanto quanto precária, já que ele nunca foi exatamente um engenheiro no assunto – de cordas desgastadas e tábuas de madeira velha, com a qual pretendia atravessar para o outro lado...”

“Nossa, que arriscado... Mas, e quais eram tais países separados por fenda tão imensa?”

“Ah, disso eu sei muito bem: um é o País da Morte, onde tudo é estritamente reduzido a pequenos pedaços do saber, tudo racional, programado, frio e robótico; já o outro, onde ele procurava chegar ao atravessar a ponte, é o País do Amor, onde tudo é conectado por belos fios de uma imensa teia de luz, tudo sensação, desprogramado, quente e vivo.”

“E ele queria atravessar do país frio para o quente, da morte para a vida?”

“Não sei ao certo. Era isso que pensava a princípio, mas um dia, já perto do dia de sua partida derradeira, ele me disse que havia finalmente fincado a outra extremidade da ponte no País do Amor, e pôde visitar brevemente alguns de seus vilarejos...”

“E o que ele lhe disse que viu por lá?”

“Não viu nada. Disse que não havia nada o que se ver, apenas o que sentir... E disse ainda mais: que assim que pensou os mesmos pensamentos dos seres que lá viviam, percebeu que não era propriamente uma ponte que ele esteve todo aquele tempo a construir... Não uma ponte, mas um fio de ligação entre os dois países.”

“Ora, mas então ele queria aproximar um país do outro?”

“Sim, parece estranho não? Mas é que no fundo, acho que ele descobriu: não é que existam dois países separados, mas é que alguns de nós pensam num país, e outros pensam noutro. E, dessa forma, ambos os países são habitados... Provavelmente o País da Morte esteja já lotado de gente, e a intenção dele era atrair mais gente para o País do Amor. Era como se ele fosse um turista que voltou de uma ilha paradisíaca e agora a estava anunciando para os outros.”

“Mas, e o que ele ganhava com isso?”

“Ele? Acho que nada... Ganhava o mundo todo. Ele costumava dizer assim: ‘O meu trabalho é melhorar a vizinhança. Se a vizinhança melhora, talvez um dia nem precisemos buscar ao Céu em algum outro lugar, que ele já estará instaurado no próprio mundo”.

“Que bonito. Mas que pena ele ter morrido, gostaria de conversar com ele sobre o assunto...”

“Aí é que está, por isso estamos todos aqui. Ainda podemos conversar com ele.”

“Mas como?”

“Ora, eu não disse que ele era um filho do Sol e das estrelas?”

“Disse. Mas disse também que ele não era um santo, nem ninguém em especial...”

“Exato. Mas eis que, agora também sabemos: todos nós somos filhos das estrelas. De fato, somos formados por pedaços de matéria forjados no núcleo das estrelas, no núcleo do Sol. O que meu amigo fez foi, então, engolir o próprio Sol... Foi assim que ele explodiu em milhões de pedaços de luz, que até hoje pairam pelo ar, como pequenas estrelas ou vagalumes. Assim, ele me disse: ‘Se nada mais der certo, pelo menos a luminosidade do que fui ficará ainda guardada no coração e na mente dos meus amigos, daqueles que tive a felicidade de compartilhar o amor. E, dessa forma, eu também serei imortal, eu também serei mais um da raça dos deuses’”.


raph’12’A.’.A.’.

***

Crédito da foto: Ron Nickel/Design Pics/Corbis

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7 comentários:

Anonymous Peterson disse...

Maravilhoso como sempre!!

Esse foi o seu obituário?

Obrigado por mais essa reflexão Raph!

12/4/12 15:40  
Blogger raph disse...

É, o meu, ou de algum outro eu dentro de mim...

Valeu Peterson :)

Abs
raph

12/4/12 15:51  
Blogger raph disse...

Só pra deixar claro: não é que eu vá publicar tudo referente a A.'.A.'. no blog, mas algumas coisas acho que se adequam muito bem, e esse texto é uma delas.

12/4/12 16:00  
Blogger Pai Raphael PH. Alves disse...

Faço das palavras do Peterson as minhas...parabéns Raph. Gostaria de complementar dizendo que o A.'.A.'. já começou muito bem diga-se de passagem, sua energia é tão luminosa que já está ascendendo consciências, ou iluminando ainda mais.

Paz Profunda

PH

12/4/12 16:55  
Blogger raph disse...

Valeu PH.

Então, é curioso de se pensar que nós somos realmente filhos das estrelas. Claro que há várias maneiras de se abordar tal fato, mas acredito que todas as abordagens trazem no mínimo um vagalume :)

Abs!
raph

12/4/12 17:23  
Anonymous Anônimo disse...

Nossa Raph, me surpreendo com você cada vez mais.
Obrigado meu amigo, companheiro das estrelas, filho do Sol.

Obrigado!

HiroNakamura

13/4/12 01:17  
Blogger raph disse...

Desculpe Hiro, só vi seu comentário agora...

Muito obrigado, continuemos a refletir. Afinal, somos todos filhos do Sol :)

Abs!
raph

9/12/12 16:08  

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