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1.3.18

Uma crítica a Academia

Texto por Roberto Leon Ponczek, trechos da obra Deus, ou seja, a Natureza (SciELO). Os comentários ao final são meus.


De que serve a transmissão de pacotes de informações prontas, em hora e local marcados, se a maior parte do tempo o aprendiz permanece desatento às forças vitais que o cercam a cada instante? Esse adestramento para processar fórmulas preestabelecidas é muitas vezes confundido com conhecimento. Assim, torna-se necessária uma descentralidade do local convencional de aprendizado, como a sala de aula e os mestres com hora marcada. A descentralidade do universo [conforme defendida por Spinoza] requer também a descentralidade do aprendizado, e de seus instrumentos clássicos que, muitas vezes, ao invés de facilitar, constituem-se em instransponíveis barreiras ao livre fluir do verdadeiro conhecimento. Desta forma, estaríamos passando do paradigma de uma “pedagogia pensada e centralizadora do sujeito” para uma novo paradigma da “pedagogia filosofante, pensante e não apenas pensada”.

Outro ponto que carece ser questionado é o fato da maioria das escolas e academias ocidentais do pós-guerra querer transformar seus aprendizes em bibliotecas ambulantes, pretendendo que suas mentes sejam extensas memórias de arquivos bibliográficos. Cada vez menos ensina-se a pensar, e cada vez mais, em arquivar dados e referências bibliográficas. Os livros tornam-se obstáculos a serem transpostos, e os mestres seus oraculares intérpretes.

Julgo que, pelo contrário, o aprendiz deve ser estimulado a pensar sobre um texto, a dialogar com seus autores, sem para tal ter de recorrer a bibliotecas de dimensões babilônicas, respaldando-se numa bateria de referências, e perdendo-se num labirinto de citações de comentadores terceirizados. Consumou-se nas academias o hábito de exigir que o aprendiz respalde seu entendimento sobre um determinado texto, com a opinião de um sem-número de especialistas, como se seu primeiro entendimento intuitivo, possivelmente ainda não lapidado, não merecesse crédito, necessitando de álibis ou testemunhas para ser validado.

Entendo, inspirado em Spinoza, que é este conhecimento primeiro, e possivelmente ainda tosco, que servirá como um primeiro martelo com o qual se forjará uma segunda ferramenta mais lapidada, e assim sucessivamente. Um mestre esclarecido não descartará o conhecimento de seu aprendiz, ou criticará a precariedade de suas referências, por mais rudimentares que sejam. Existem artigos científicos com referências bibliográficas maiores que o próprio texto, como se isso fosse prova de embasamento teórico e metodológico!

Muitas vezes os trabalhos acadêmicos são julgados por sua bibliografia, e não pelo seu valor intrínseco. A leitura desses textos é quase sempre maçante, desencorajando qualquer um de seguir por suas labirínticas notas de rodapé e referências. Nem mesmo o autor deste texto, que ora o leitor tem em mãos, se desvencilhou totalmente da camisa de força imposta pelas normas acadêmicas... Gostaria, em breve, de poder escrever outro livro sem notas de rodapé e sem referências!

Jorge Luis Borges, em seu magistral conto Funes, o memorioso, relata a existência de um indivíduo capaz de memorizar todos os fatos e textos de jornais ocorridos ao longo de sua vida sem, contudo, ser capaz de relacioná-los entre si. Funes torna sua existência um arquivo morto de fatos irrelevantes, pois são textos irrelevantes, ideias ou eventos que não têm relação com o mundo que lhe deu origem, conferindo-lhes uma temporalidade. Nossos aprendizes são, muitas vezes, adestrados para serem os Funes da ciência.

Também não posso me calar diante da febre metodológica que assola, como epidemia, extensos setores das academias, induzindo os estudantes a escolherem trabalhos cada vez mais estreitos, para que caibam em um método dado a priori. Os alunos são desestimulados a abordar temas multidisciplinares, ou até mesmo interdisciplinares, e instados a seguir por estreitas trilhas monotemáticas que se encaixem em alguma metodologia preestabelecida. Será o método o soberano que deve determinar a extensão do tema, ou é a vastidão do tema que deve alargar o método? Afinal, uma bela foto deve ser recortada para que caiba no álbum, ou este é que deve ser adequado às dimensões da foto?

[...] As disciplinas científicas assim enquadradas nas academias comparam-se a castelos medievais cercados por fossos onde vicejam os crocodilos guardiões do feudo. As pontes levadiças são erguidas e abaixadas para permitir apenas a entrada e a saída dos súditos do castelo. A academia se divide assim em vários cantões feudais, cada qual concessionário de uma franquia temática, guardada a sete chaves em seu castelo unidisciplinar, delimitado pelo fosso do método e seus atentos guardiões. Professores e estudantes são orientados a permanecer nesses domínios rigidamente circunscritos, e aqueles que inadvertidamente querem cruzá-los, fatalmente serão abocanhados pelos afiados guardiões do castelo.

Na prática isso equivale a uma espécie de sentença de excomunhão velada a partir da qual os professores transgressores não conseguem bolsas de pesquisa ou de estudo para seus orientados, publicações em revistas importantes, ou ganhar qualquer tipo de concurso público. Criam-se, nas academias, autênticas franquias cada qual delimitando rigidamente como deve ser redigido, divulgado e ensaiado o “seu” tema franqueado. Não é incomum essas franquias temáticas desenvolverem extensos tentáculos que se alastram pelas agências de fomento, bancas examinadoras de teses e concursos, além dos conselhos editoriais das revistas especializadas.

[...] Para contabilizar e fiscalizar a produção acadêmica do corpo docente, tais como artigos, livros e demais trabalhos, criou-se um sistema de avaliação numérica (o Qualis, da Capes), como se a qualidade de um texto ou a originalidade de uma ideia pudessem ser mensuradas por números. Este sistema, que é sistematicamente utilizado pelos zelosos guardiões do castelo, fez surgir uma nova geração de professores especializados em construir seus currículos de acordo com esses cânones numéricos, extraindo a máxima pontuação possível.

Este livro, que ora o leitor folheia, em alguns aspectos trafega na contramão de quase tudo que se faz nas academias. Nele não há fronteiras rígidas entre as várias disciplinas, como a Matemática, a Física e a Pedagogia, e elas se entrelaçam desrespeitando deliberadamente os recortes metodológicos, cultuados como dogmas intocáveis pela academia. O livro é longo demais para os padrões atuais, pois hoje vários autores preferem se associar em coautoria para escrever artigos curtos produzidos em série, contabilizando, nas agências de fomento, um título para cada um.

[...] Na vertente contrária, esta é a obra de um único autor solitário que a produziu num longo período de gestação, praticamente recluso em sua casa de campo, totalizando em seu favor apenas um único trabalho em vários anos. Quando nas academias brasileiras vive-se hoje uma febre delirante por publicação e pontuação, este texto foi pensado e escrito sem compromissos de espécie alguma com grupos de pesquisa financiados pelas agências fomentadoras e sem preocupação de pontuação em plataformas oficiais de curriculae vitae. Apesar da inquisição velada e de todas as dificuldades impostas pelas academias, preferi pensar sem fossos nem recortes, estabelecendo relações e organicidade entre as várias disciplinas de saber que devem se entrelaçar para chegar ao autêntico e verdadeiro conhecimento científico.


Comentários
“Na contramão de quase tudo que se faz nas academias”, como bem definido pelo autor, o professor de Física e grande estudioso de Filosofia e conhecimentos gerais nos traz uma obra monumental que não apenas associa de forma profunda o pensamento de Spinoza às buscas existenciais e científicas de Einstein, como se arrisca a afirmar, com suas próprias palavras, onde eles parecem ter acertado e onde parecem ter errado, sempre se embasando no conhecimento científico mais atual, como a Mecânica Quântica.

Não é fácil, decerto, esmiuçar de forma tão aprofundada os axiomas “lógicos e geométricos” da Ética de Spinoza, mas eu penso que Ponczek acabou por nos presentear com uma das análises mais profundas e honestas da obra do grande pensador holandês, e de todo o fruto que ela gerou no mundo. Que isso tenha sido feito dentro do atual mundo acadêmico, é quase um milagre. Por isso preferi trazer a vocês essa crítica embasada e honesta de um acadêmico que se sente profundamente angustiado com o estado atual de nosso ensino. Ponczek é, antes de mais nada, um professor, e um professor deseja ensinar seres que interpretam o mundo, não máquinas enciclopédicas, autômatos recitadores de Wikipédia.

Recomendo a todos os admiradores de Spinoza, de Einstein ou, simplesmente, dos grandes conhecimentos da humanidade, que confiram a sua obra, um e-book em download gratuito na Amazon.

***

Crédito da imagem: Ponczek (foto achada no Facebook, não lá muito acadêmica...)

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1 comentários:

Blogger raph disse...

Aos acadêmicos que se sentiram "incomodados" com o texto, eu só queria apontar alguns aspectos dele que merecem ser levados em consideração:

(1) Foi escrito por um professor de Física que leciona há muitas décadas numa universidade federal da Bahia, portanto é um acadêmico criticando aspectos de ensino lá de dentro mesmo, não de fora.

(2) Infelizmente não fica claro no texto isolado, porque acaba ficando um pouco fora do contexto do livro, mas ele ao longo de todo o livro critica o ensino em geral, não somente nas universidades, mas também nos colégios primários; não somente no Brasil, mas no mundo como um todo.

(3) E, finalmente, o que creio ser o mais importante: ele é um Físico se lamentando da falta de Filosofia na Ciência. Por isso que já achei que nas áreas de humanas, como na própria Filosofia, ou na Psicologia, a crítica dele já perderia muita força de início. Também é algo que, no contexto do livro, fica mais claro.

Abs
raph

2/3/18 10:34  

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