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15.2.18

O que fica

Nenhum animal no Jardim do Éden poderia desejar o conhecimento, seja do bem ou do mal. “Bem” e “mal” são conceitos que eles ignoram completamente, somente Adão e Eva poderiam desejar buscar algo mais do que já tinham, somente os primeiros humanos poderiam abandonar a paz do puro instinto animal, que sempre simplesmente segue sua própria natureza, para se aventurar no reino da consciência de si mesmo, e do outro. E não deveria nos admirar a sua expulsão do Paraíso, o seu pecado capital, pois que tal caminho nunca foi fácil, e continua não sendo. Há muitos espinhos nas rosas vermelhas entre o Éden e o dia de hoje, e nosso sangue foi deixado lá: todo o rastro da dor humana é ainda bem visível. O que estaríamos buscando, afinal?

Eu confesso que falharei na explicação. De fato, tenho tentado usar das palavras durante toda a minha vida para explicar o que não pode ser explicado, pois que reside além delas. Como cascas de um fruto inefável, elas são a sombra invisível da chama de uma vela, o perfume que se perdeu com o vento que passou, a ave mítica que é vista de relance, e que muitos caçadores místicos afirmam ter encontrado, mas nenhum trouxe sequer uma pena! Eu confesso que tenho falhado todo o tempo, em cada texto, em cada poema, em cada parágrafo, em cada palavra: eu falo sobre o que não pode ser cientificamente comprovado, e jamais poderá. Eu falo sobre o único deus que não admite ateus, muito embora possa ser também profundamente odiado. Eu falo sobre aquilo que dói e não se sente, que arde e não se vê, que sempre andou solitário entre a gente. Enfim, eu confesso que falharei na explicação, mas falharei com dignidade.

Se é verdade que nosso primeiro contato com tal conhecimento foi através do instinto, nada nos leva a crer que seja somente através dele que podemos nos relacionar. Afinal, ainda que as palavras sejam de fato cascas de um sentimento indescritível, elas ainda podem tentar abordar tal sentimento de forma indireta, como quem apanha ar dentro de uma bexiga, e mostra algo invisível. As bexigas são as metáforas, mas o ar em si se refere a algo além delas, além de todas as metáforas do mundo, além de toda a linguagem humana.

Um explorador busca encontrar uma pérola preciosa no fundo do mar. Ele não pode retirá-la do local, então a única forma de mostrá-la a seus irmãos em terra firme é esvaziar o mar inteiro. Suponhamos que ele consiga tal façanha: ainda assim, tudo o que poderá fazer é apontar para uma joia na superfície, sem o brilho perolado que ela tem nas profundezas. Ninguém se comoverá com isso. São somente os mergulhadores eles mesmos que podem ir ao fundo e apreciar a beleza desta pérola a refletir os raios de sol vindos do alto, se refratando pelo mar inteiro, como se as estrelas da noite pudessem mandar sinais umas para as outras.

Quem se encontra em terra firme, entretanto, tem medo de morrer afogado. De fato, há acadêmicos por lá que dizem que o mar é perigoso e que, em todo caso, tal pérola jamais existiu. É apenas a fantasia dos loucos poetas que cantam sobre ela nas noites de lua cheia. O ego está acostumado com a terra firme, e quando se arrisca no mar é tão somente na beirada, longe das ondas mais afastadas. Mas eu estou falando de um naufrágio terrível, de um afogamento, de uma tragédia em alto mar. Eu falo do mar profundo, não do raso. Eu falo de onde o ego sabe que não poderá mais subsistir, e por isso sou perigoso.

Há um mundo onde os tolos, os loucos, os andarilhos, os poetas e os místicos são considerados seres incômodos e desimportantes, sem utilidade alguma para a sociedade. Afinal, o que exatamente eles constroem? Apenas castelos de areia que se perdem com a menor ventania. A sua obra não é sólida como a Ciência nem perene como a Igreja.

No entanto, há um outro mundo onde são eles justamente os reis e os sábios, e este mundo jaz além do alcance do ego, além do alcance dos seres da terra firme. Somente quem foi e mergulhou no abismo o encontrou. E, ainda que possa ter retornado, como Prometeu, o seu fogo divino será para os seres de casa como um fogo qualquer, como um poema qualquer, como uma arte qualquer, inútil.

É preciso uma guerra para que um mundo se comunique com o outro. Por isso já vieram andarilhos proféticos nos falar que chegaram em nossa terra para trazer a espada, e não a paz. Não há nada mais conflituoso do que ter de lidar com isto que fica, isto que é eterno, no mundo das coisas fugidias e mutáveis. É preciso mesmo uma espada para cortar todas as ervas daninhas da árvore do ser. É preciso muito sangue e muita dor neste processo. Mas é somente através da ferida que a luz lhe adentra.

É somente por muito bater em seu portão por dentro, que ele se abre. É somente por muito gritar de solidão em seu próprio casulo, que ele se rompe, e lhe transforma num ser alado. É somente queimando completamente no fogo deste conhecimento que você poderá se renovar inteiramente.

E assim, recém-nascido na Criação, você finalmente perceberá que o Éden sempre esteve por toda a parte, que a luz sempre foi eterna, e que todas as suas experiências em seu baile com ela, todas as reflexões e encadeamentos, todos os toques na pele alheia, foram como acariciar o próprio universo. É só isto o que conta, é só isto a essência da realidade, é só isto o que fica.

Mas se você quer um nome, falhará em compreender, assim como eu aqui falho em me fazer compreendido.

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Crédito da imagem: Bruno Walpoth

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