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15.10.19

A cultura de jamais sentir dor

Uma das coisas que mais me impressiona no cristianismo é o valor dado à prática das penitências: jejuns, vigílias, orações, esmolas, peregrinações, autoflagelação, etc. Algumas ainda são feitas por cristãos hoje em dia, enquanto outras já não são tão aceitas ou estão simplesmente fora de moda. Nesse post eu falo mais sobre a prática das penitências, incluindo as realizadas nas religiões indianas.

Atualmente há uma maior valorização das penitências, como jejuns, por razões de benefício à saúde ou questões estéticas (obter massa muscular ou emagrecer). Isso se deve a um maior culto ao corpo do que ao espírito.

É verdade que a saúde e a beleza também são importantes e elas foram valorizadas nas mais diferentes sociedades e épocas, como na Antiguidade Clássica. Cristo nos mostrou a importância do corpo ao vir a esse mundo como ser humano. Ele também curou muitas pessoas, indicando que devemos ajudar os outros tanto no corpo quanto no espírito.

Sendo assim, o fato de nos sentirmos belos e felizes com nosso corpo, e também saudáveis, sentindo menos dor e com a possibilidade de desfrutar os prazeres da vida, que Deus nos deu, é realmente uma bênção. Todas essas coisas devem ser buscadas e não devem ser condenadas.

O cristianismo não é uma religião contra o prazer, mas mostra que devemos adorar, acima de tudo, o Criador e não a criatura. O que isso significa?

Se Deus existe e criou o mundo, significa que deve haver um sentido para o sofrimento. Mesmo que não seja ele o criador do sofrimento, o fato de ele permiti-lo deve ter um significado.

É fato que a dor existe. Ela jamais poderá ser completamente eliminada desse mundo. Desde desconfortos físicos até sofrimentos mentais, ela acontece em diferentes intensidades ao longo da vida, por mais que nos esforcemos para evitá-la.

Então o primeiro passo é aceitar a existência da dor. Não nos fará nenhum bem fugir dela o tempo todo e jogá-la para baixo do tapete, fingindo que ela não existe. O mesmo deve ser dito sobre a morte: ela ocorrerá em algum momento conosco e com as pessoas ao nosso redor. Por isso, dor e morte devem ser abordadas e aceitas de modo sincero, desde o começo.

Os cristãos dizem que se houvesse outra forma melhor de viver, evitando a dor e a morte, Jesus teria nos mostrado. Pelo contrário, Jesus nunca optou pelo caminho mais fácil. Ele fez um jejum de 40 dias no deserto logo antes de começar sua vida pública, para enfrentar de frente o diabo. E ao longo dos anos seguintes descansava pouco e seguia ajudando as pessoas, ensinando, curando, dando esperanças. Ele não fugiu da morte e muito menos de uma morte cheia de dor e humilhação.

O que isso nos mostra? Como será que devemos viver? Será que devemos passar nossa vida buscando confortos o tempo todo e sempre fingindo que a dor e a morte estão distantes de nós? Se não treinarmos formas de lidar com elas, quando elas acontecerem não estaremos preparados.

Por isso é importante para muita gente ter uma religião: religiões são muito boas não somente em lidar com os problemas do dia a dia, mas ir mais fundo. Uma religião vai para a raiz do problema do sofrimento, como o budismo, que diz de forma clara: “A vida é sofrimento”. Buda não tenta embelezar a verdade, mas mostra as coisas como elas são.

É verdade que na vida podemos ter muitas alegrias, mas também teremos muitas dores e o final da nossa história e da história de todo mundo não é exatamente um final feliz. Nosso final é a morte. O único motivo para não ficarmos tristes com isso é se descobrirmos que esse não é realmente o fim da história.

Buda nos conta, com alegria, que o objetivo da vida é exatamente se libertar do ciclo de nascimentos e mortes. Com essa visão, o sofrimento tem valor e um papel: é exatamente porque sentimos dor que iremos nos apressar para buscar a libertação. Se nossa vida fosse repleta de prazeres, como a dos devas, talvez não sentíssemos tanta urgência em atingir a iluminação e iríamos adiá-la. Por isso é dito no budismo que a vida humana é a ideal, com a medida de dor e de prazer necessária para nos colocar no caminho.

Meditar não é exatamente confortável. Não meditamos apenas porque faz bem para a saúde e nos dá tranquilidade. Ao contrário, Buda realizou meditações e penitências pesadas antes de ensinar o Caminho do Meio.

Rezar também não é confortável. Assim como meditar, pode nos trazer algumas sensações boas, mas conhecemos muitas outras formas mais prazerosas de nos divertir.

Um dos objetivos da meditação e da oração é o conhecimento da dor. Não é por acaso que se medita na posição de lótus e que oramos ajoelhados. É porque devemos meditar e orar não só com nossa mente, mas com nosso corpo inteiro. O ideal é evitarmos nos mexer e permanecermos por um bom tempo naquela posição.

Os estados alterados de consciências das meditações costumam ocorrer somente após um bom tempo de meditação. E como iremos escutar Deus falando conosco se não lhe damos nem cinco minutos? O ato de ajoelhar-se também é um ato de humildade e uma indicação de que estamos dispostos a dar qualquer coisa a Deus, até mesmo abdicando de nosso tempo e conforto.

Isso é completamente diferente de masoquismo. Não é uma dor pelo prazer que se sente com ela, mas uma dor com significado. A dor sem significado apenas nos causa um sofrimento horrível e essa deve ser evitada. Mas quando há um sentido naquilo as coisas se tornam diferentes. A própria vida se torna nova.

Nos dias de hoje nós buscamos o máximo de prazer e o mínimo de dor e esse se tornou o objetivo das nossas vidas. Só aceitamos sentir uma dor temporária se aquilo irá nos trazer algum prazer futuro, como acordar cedo para ir trabalhar porque aquilo irá nos trazer um benefício financeiro. E com esse dinheiro buscaremos mais prazer. É um raciocínio circular e um pouco sem sentido.

Repito que não há problemas em buscarmos o prazer. Segundo o cristianismo, Deus criou um mundo bom e belo e não é errado desfrutarmos das comidas boas, do sexo (que não serve apenas para procriação, mas para unir o casal) e de muitas outras diversões que nos trazem alegria e nos conectam com as pessoas que amamos. Isso é realmente maravilhoso. Não é errado buscarmos dinheiro, diversões e prazeres.

O problema é quando essa se torna a única e principal meta de nossas vidas. É inevitável sentirmos um profundo vazio quando há apenas isso, mesmo que tenhamos muito dinheiro e diversões.

“Se alguém diz: ‘Eu sou perfeitamente feliz brincando com tortas de lama, ou carros esporte, ou dinheiro, ou sexo, ou poder’ nós podemos apenas perguntar: ‘Você é, realmente?’. Até mesmo o ateísta Jean-Paul Sartre admitiu que ‘chega um tempo em que nos perguntamos, até mesmo de Shakespeare, até mesmo de Beethoven ‘Isso é tudo que há?’”

(Peter Kreeft)

Pode ser desanimador pensar que hoje em dia busquemos algo não por um amor ou paixão muito forte, não por um senso de propósito, mas analisamos, dentre as opções, qual é a mais fácil. Qual delas me dá mais benefícios com menos desvantagens? Qual me dá mais prazer com menos dor? (é verdade que há ocasiões em que temos pouca escolha, mas falo aqui das vezes em que temos a liberdade de ter opções).

Quando queremos algo porque temos um objetivo forte com aquilo, porque sentimos fortemente que é o que amamos, que deve ser feito, não nos importaremos tanto com as dificuldades e dores. Iremos enfrentá-las, porque não escolhemos aquilo porque era mais fácil, mas porque era o certo, o melhor, aquilo que fazia nosso coração bater forte.

Quando achamos essa coisa única no mundo, é dito que estamos cumprindo a vontade de Deus. Quando cumprimos a missão que Deus nos deu? Quando sentimos o Espírito Santo aquecendo nosso coração com aquela coisa única. Sabemos que aquilo é certo e bom e iremos seguir esse caminho independente de com ele termos que carregar uma cruz muito grande. Independente de termos que perder certos confortos ou até mesmo termos que arriscar nossas vidas.

Foi isso que Jesus fez, ao aceitar a cruz. Foi isso que Buda fez, ao abandonar seu palácio. Os dois poderiam ter seguido caminhos mais confortáveis e simples. Jesus não precisava ter morrido. Podia ter negado a cruz e assim continuaria ensinando. Ajudaria muito mais gente fazendo isso? Talvez. Mas sua morte mudou a vida de ainda mais gente do que a sua vida. E Buda, como rei, não poderia ter ajudado muito mais gente? Talvez. Mas ele transformou a vida de muito mais gente através de sua renúncia do que como um rei bom e justo. Não porque ser monge é melhor do que ser rei, mas porque aquele não era seu caminho.

Se eles tivessem pensado de modo prático, teriam se convencido de que seguindo o caminho mais fácil e confortável, além de beneficiar a si mesmos, ajudariam um número muito maior de pessoas. Muitas vezes em nossas vidas nós usamos esses argumentos para nos convencer de que o caminho mais conveniente para nós também será o melhor para os outros e para a humanidade.

Mas não é bem assim. No fundo nós sabemos o que é o certo e o melhor para nossas vidas. Não existe algo que seja a escolha perfeita para a vida de todos, mas cada um deve escutar em seu coração quando é o momento de seguir em frente, de recuar ou optar por outra travessia, talvez repleta de pedras. Mas aquele é o caminho que Deus escolheu para nós e só porque Deus está junto ele será o mais belo e o que fará a nossa alma brilhar com mais força.

Não devemos buscar a dor só para sofrer, pois isso não faz sentido. Devemos tentar diminuir a nossa própria dor e a dor dos outros sempre que possível. Porém, é preciso aceitar que certos sofrimentos podem ser necessários em nossa vida e nos farão crescer.

Haverá diversas ocasiões em nossa vida em que será mais fácil dizer “não” para a dor e buscar a opção mais confortável. É preciso sabedoria e amor para enxergar qual é o momento certo de dizer “sim” para o sofrimento, tendo em vista não a própria dor, mas seguir nossa consciência. Podemos orar e Deus nos ajudará a distinguir.

Quando vivenciamos esse processo, passaremos por várias experiências de provação, que nos causarão tanta dor que nós pensaremos mil vezes em desistir de tudo. Porém, se enfrentamos, sentiremos uma alegria muito maior do que se tivéssemos passado pelo outro caminho, que teria gerado apenas um bom resultado, mas não teria explorado todo nosso potencial como seres humanos.

Wanju Duli é escritora – Contato: facebook.com/WanjuDuIi

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Crédito da imagem: The Temptation in the Wilderness, Briton Rivière, 1898

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