Qual é a sua?
Parte (2 de 3) do interlúdio da série de artigos "4 amores"
Texto por Carol Phoenix, do blog "Qualquer coisa que se sinta"
Em nossa cultura, um dos fatores que determina o reconhecimento de qualidades pessoais é a quantidade de conhecimento, além da capacidade de comunicar este conhecimento. Quanto melhor uma pessoa se expressa, mais valorizada ela é. Parece que outras características do ser humano, como a capacidade de sentir, vão sendo cada vez mais renegadas. Basta imaginar o que aconteceria se alguém escrevesse em um pedido de emprego, além das informações habituais, que se sente bem amado, ou que está muito feliz. Provavelmente seria recusado, ou mesmo ridicularizado, como se não fosse importante o amor ou a felicidade para se trabalhar melhor.
Esta necessidade compulsiva que todos tem de explicar todas as coisas é uma das principais manifestações de uma sociedade que é estruturada principalmente sobre a informação e o conhecimento. A realidade, como nós a entendemos, está comprometida com nossa capacidade de explicá-la. O ego se alimenta de palavras e de descrições. Acreditamos que aquilo que podemos descrever está sob nosso domínio. Conhecimento é poder. Quando algo está além de nossa capacidade descritiva, é classificado como místico, tolice, brincadeira, nada que mereça ser efetivamente levado a sério.
Aprendemos a acreditar que, se pudermos explicar logicamente alguma coisa, teremos poder sobre ela. Esse tipo de atitude impede muitas vezes que aproveitemos alguns aspectos mais subjetivos (porém reais) de nossa vida, especialmente aqueles que se referem aos sentimentos. Um sentimento, quando é explicado, deixa de ser autêntico e espontâneo, passa a ser demarcado pelos limites de nossa capacidade de compreender, pelos condicionamentos culturais que nos foram impostos, pelos preconceitos e regras de uma sociedade para a qual nem sempre é conveniente que nos sintamos plenos e felizes, pois uma pessoa atrelada ao universo das idéias "aceitáveis" certamente é uma pessoa facilmente manipulável por aqueles que determinam o que é aceitável ou não.
É claro que a lucidez, a inteligência, a cultura, são elementos importantes de nossa existência. Se pensarmos que a realidade está limitada à nossa capacidade de descrevê-la, ou que o mundo que percebemos é uma descrição, quanto maior nossa cultura e nossa capacidade descritiva, mais profunda e ampla é nossa abordagem da realidade, maior é nossa capacidade de transformar e recriar o mundo. O problema existe quando não inserimos o amor e a capacidade de sentir e se entregar, quando excluímos de nossa descrição tudo que não for facilmente dissecável pela mente. Tornamos o mundo repetitivo e controlado, distante dos movimentos espontâneos da natureza. Esse controle mental é na verdade ilusório, pois corresponde a uma limitação de nossa capacidade criativa, e para mantê-lo precisamos estar sempre atentos e acreditando que nada existe além do que pode abranger nossa linguagem e nossa percepção lógica do mundo.
Isto tudo pode ser entendido como um elemento de limitação e controle de nosso desenvolvimento, mas é também o grande recurso, a ferramenta adequada para que possamos transformar o mundo, recriá-lo, produzir com nossa mente e nossa imaginação uma realidade mais acessível e compatível com nossas qualidades naturais. O ser humano pode se afastar da natureza e imobilizar a própria evolução através da descrição mecanicista e utilitária dela, mas também tem a capacidade de, através da inteligência, harmonizar-se com o universo que o cerca. Basta observar certas culturas não comprometidas com a civilização que, apesar de formadas por seres inteligentes, não abriram mão do direito de sonhar, rir, relaxar, não romperam o contato com a terra e a respeitam e sabem que são filhos dela e não seus senhores. Será que é sinal de evolução usar a inteligência para destruir o planeta que habitamos, por simples cobiça? Será um uso adequado da inteligência estudar muito para poderem trabalhar de sol a sol, para viverem enjaulados e acuados, para comerem enlatados e alimentos cheios de conservantes? Será sinal de cultura e inteligência viverem com medo do fracasso, darem mais importância ao sucesso social do que à felicidade?
A inteligência não é o que realmente distingue o ser humano dos animais, apesar dos esforços culturais em demonstrar isso. Esta distinção existe talvez pela perda da memória, por não nos lembrarmos mais que somos irmãos, células de um mesmo corpo, e que estamos intimamente comprometidos uns com os outros, que a qualidade de nossas vidas depende integralmente da qualidade de vida de nosso vizinho e de todas as outras pessoas, pois afinal, respiramos o mesmo ar que alguém em algum momento respirou, e uma célula que perca sua essência, que degenere no corpo da sociedade, pode destrui-lo. Os animais (que não pensam) e aqueles que vivem em contato com a natureza, sem estarem comprometidos com a vaidade civilizatória, sabem disso, jamais se esqueceram.
O mundo da informação, o rádio, a televisão, a imprensa, tão determinantes em nosso mundo, são os elementos predominantes. E isto parece tão importante, que aqueles que detêm o poder dos meios de comunicação parecem controlar o mundo civilizado. Determinam o que é real ou não, o que é aceitável e o que é condenável, o que deve ser moda e o que pode ser comido. Determinam os padrões estéticos, os critérios para que o povo se emocione, quem deve ser eleito e até qual o melhor tipo de Deus para acreditarmos. E quem não aceita é excluído, quem não está bem informado sobre a última moda, a nova tendência, o mais recente modelo seja lá do que for, está por fora, talvez nem mereça ser aceito, talvez nem mereça ser amado. E o que ganhamos em troca de "estar por dentro"? Usem a inteligência para responder.
Exposto por Carol Phoenix (ver post original)
***
Comentário: Estava em busca de inspirações para me auxiliar a escrever as 2 partes finais da série de artigos "4 amores", e decidi entrar no blog da Carol, já que ela é quase uma especialista em sentimentos. Fiquei surpreso com este texto dela, que foi publicado dias antes do primeiro artigo da série "4 amores" (mas que eu não havia lido até então), e que parece complementar o que vinha sendo dito na série, além de servir como uma ponte entre filias e ágape...
Realmente, as palavras, essas cascas de sentimento, não serão jamais suficientes para se explicar o amor. O que poderei expor, portanto, é apenas um pequeno manual de natação, mergulhar dependerá de cada um de nós.
***
Crédito da foto: Randy Faris/Corbis
Marcadores: 4 amores: interlúdio, amor, autores selecionados, autores selecionados (91-100), Carol Phoenix, existência, linguagem, natureza
2 comentários:
Raph, querido, não me considero uma quase especialista em sentimentos. Mas talvez eu seja uma quase especialista em sentir, porque sinto tudo intensamente, e escrever é apenas uma das maneiras que eu encontrei pra tentar expressar isso.
Fico contente por saber que algumas "partes" de mim de repente servem de inspiração, principalmente pra alguém como você, que já me inspirou tantas vezes, não só pelas idéias boas e pela inteligência, mas também pela sensibilidade.
Que possamos mergulhar juntos. Te vejo lá no fundo :)
Beijos.
Oi Carol, mais uma vez obrigado por me deixar compartilhar o texto, e obrigado por não fugir de sentir intensamente, por não ter se anestesiado nem colocado uma máscara em torno da alma.
Sei que por vezes é complicado sentir intensamente, mas é melhor do que se abster de sentir e... em última instância, de viver verdadeiramente.
Nos vemos lá no fundo, e espero que muitos outros criem coragem, e que mergulhem!
Beijos.
Postar um comentário
Toda reflexão é bem-vinda:
Voltar a Home