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25.5.12

Eros vendado

Dizem que foi sua prometida quem desesperou-se ao ver-se privada de sua beleza, mas os mitos não contaram esta outra história acerca de Eros:

O deus estava arrependido da brutalidade com que tratou Psiquê quando esta, pensando que o amado fosse um monstro, retirou suas vendas enquanto dormia, e pôde enfim admirar toda a sua beleza... Assim, desde então, Eros andava enlouquecido em meio ao Elísio, coberto de vergonha...

Como estava vendado, e se recusava a ver toda a beleza a sua volta, tornou-se amargo, temeroso do contato íntimo com qualquer um que lhe cruzasse o caminho: “vão retirar minha venda, vão ver minha beleza, mas somente Psiquê é digna de me ver!” – pensava consigo mesmo, angustiado.

Zeus, que tudo via e sabia, encarregou seu mensageiro, Hermes, de tentar convencer Eros a retornar a razão...

Então, cortando os céus feito um corcel alado, o mensageiro seguia o rastro de sangue que Eros deixara pelos caminhos do Elísio... Pobres animais, homens e semideuses, todos alvejados pelas flechas venenosas do Eros Vendado. As mesmas que antes traziam o amor, agora traziam a agonia.

Retirando a flecha negra do peito de um velho mercador de frutas que agonizava na estrada, Hermes lhe indagou acerca de seu encontro com Eros:

“Tudo o que fiz foi lhe oferecer uma de minhas maçãs, eu juro! Mais parecia um mendigo andarilho, pobre e esfomeado... Não sabia se tratar de um deus, por isso achei que fosse apreciar uma de minhas maçãs... Ofereci-lhe o alimento de coração, não pretendia ganhar nada em troca. Mas o deus estava louco, e zombou de minha caridade, alvejando-me em seguida... Nossa, como doem essas flechas negras...”

Restaurado, o mercador apontou a direção na qual o deus enlouquecido seguiu, e, tão rápido quanto um pensamento, Hermes estava lá, frente a frente com o Eros Vendado:

“Irmão, nosso pai deseja lhe ver...”

“E eu... Eu desejo ver meu pai... Mas como saberei se você é mesmo meu irmão? Como saberei se não é mais um truque da Beleza para que eu jamais veja minha amada novamente? Saia daqui!” – bradou o deus descontrolado, mas ainda muito preciso com seu arco que, sabe-se lá como, estava perfeitamente posicionado na direção de Hermes, ainda que Eros nada pudesse enxergar.

“Irmão, se você não me vê agora, como poderia ver sua amada, ainda que ela estivesse ao meu lado?” – respondeu Hermes ainda muito calmo, embora uma flecha negra e peçonhenta estivesse endereçada a sua fronte.

“Quem é você para falar dela? Maldito!” – atirou a flecha com tamanha precisão que, não fosse pelo elmo alado de seu irmão, o alvo teria sido atingido.

Hermes agachou-se e retirou a flecha do elmo que caíra ao solo. Então, com agilidade divina, o deus mensageiro rolou pelo chão e, antes que seu irmão pudesse atirar outra flecha, cravou-a bem no peito esquerdo, através do coração.

Ali morrera o Eros Vendado. Mas, como os deuses não permanecem mortos por muito tempo, Hermes tratou de levá-lo até a fonte d’água mais próxima e, o tendo lavado e desvendado, deixou-o ali na margem, bem morto, e esgueirou-se para detrás de um arbusto...

Quando finalmente ressuscitou, Eros parecia desnorteado, mas não louco... Na verdade, era como se tivesse acordado de um longo sono de loucura, e aparentemente recuperado sua sanidade novamente. A primeira coisa que fez foi lavar o rosto no espelho d’água. Foi quando Hermes se reapresentou, ele precisava ter certeza:

“Veja seu rosto no espelho, irmão, e diga-me: qual é o mais belo dos deuses?

Eros procedeu conforme instruído e, virando-se para Hermes, com a face feita ainda mais bela, com pingos d’água a escorrer em torno dos largos olhos, refletindo ao sol, disse-lhe:

“Ninguém... E todos... Todos os deuses são belos; e mais bela ainda é a humanidade, por tê-los imaginado...”

Então, Hermes sorriu: a missão estava cumprida, o Amor havia retornado a sanidade.


raph’12

***

Lá onde nasce o verdadeiro amor
morre o "eu", esse tenebroso déspota.
Tu o deixas expirar no negro da noite
e livre respiras à luz da manhã.

(Jalal ud-Din Rumi)

***

Parte da série Esta outra história

Crédito da foto: BürgerJ (escultura Eros Bendato, de Igor Mitoraj)

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3 comentários:

Anonymous Anônimo disse...

O difícil é retirar o véu... se aguarra na cara. Quem sabe um dia seja retirado e possamos ver a beleza em tudo. Abraços.

25/5/12 19:34  
Blogger raph disse...

Não posso deixar de citar que o final do conto foi também bastante baseado nesta frase de Schiller:

"Em deus algum faltava a humanidade inteira."

(ele se referia especificamente aos deuses gregos)

28/5/12 00:24  
Blogger raph disse...

Já a ideia de "ódio como amor cego, vendado" foi retirada de um comentário no final da palestra do historiador Dante Gallian, quando ele citava um livro medieval que havia lido, chamado "a peregrinação interior":

A Europa e o ódio ao "outro"

28/5/12 10:09  

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