Os corvos de Wotan, parte 3
A fonte da sabedoria
Ainda abaixo de uma das gigantescas raízes de Yggdrasil, a árvore cósmica a sustentar todos os reinos míticos da mitologia nórdica, se encontra uma nascente d’água muito especial: Mímisbrunnr. É neste pequeno lago que vivia o Mímir, um reconhecido sábio (seu nome significa algo como “o sábio”, ou ainda “aquele que se lembra”). Odin ficou sabendo da existência desta fonte, que se acreditava dar “a sabedoria de todas as eras” aqueles que a bebiam regularmente (daí a sabedoria do próprio Mímir, seu guardião). Ora, como Odin era um deus que buscava a sabedoria, ele a visitava regularmente para beber um pouco de sua água, assim também ficando amigo de seu protetor.
O que ficou mais conhecido desta história, entretanto, foi o fato de Odin ter arrancado um de seus olhos (não se sabe qual ao certo) e o mergulhado no lago, onde jaz até hoje, oculto no lodo, onde talvez só ele e o Mímir saibam localizar. Diz-se que Odin realizou tal sacrifício em troca da sabedoria do Mímir, mas obviamente algo aqui não faz sentido: se Odin já conhecia a localização do poço, se já era amigo do Mímir, qual seria a necessidade de sacrificar um olho em troca de sabedoria (da qual ele já dispunha gratuitamente)?
Este me parece mais um mito cuja interpretação exige que usemos os olhos da alma, e não do corpo. Para mim, está muito clara a metáfora de “se ter um olho no mundo espiritual, e um olho no mundo terreno”. Ora, por mais que Odin pudesse galopar os céus em seu corcel de oito patas, ele aparentemente não podia estar em todos os lugares ao mesmo tempo, ou pelo menos não podia estar no plano terreno e no plano espiritual ao mesmo tempo. Esta bela história nos aponta, portanto, para um fato bastante conhecido do caminho espiritual, e até mesmo da própria prática da magia ou da mediunidade: abre-se um olho lá, fecha-se um olho cá. Mas, querer fazer ambas as coisas ao mesmo tempo pode nos levar a loucura, a não ser, talvez, que sejamos também da raça dos deuses.
A cabeça perdida e encontrada
Infelizmente o destino do Mímir não foi dos mais agradáveis... Na apocalíptica guerra entre os vanir e os æsir, o Mímir teve sua cabeça cortada por um guerreiro vanir. Ora, os vanir eram um povo relativamente pacífico e místico, que cultuava deuses da fertilidade e da sabedoria, e também se dizia que muitos eram capazes de ver o futuro. Eles já habitavam o norte europeu, mas foram invadidos pelos æsir (ou “meio-deuses”), um conglomerado de tribos guerreiras e expansionistas, que vinham da Ásia e do sul europeu em busca de novos territórios. Como o Mímir, juntamente com Odin, pertencia aos æsir, foram deles a iniciativa do ataque.
Os vanir eventualmente foram conquistados e tornaram-se um subgrupo dos æsir, até que as eras se passassem e todos fossem confundidos com um só povo: o povo nórdico...
Mas, voltando a grande batalha: Odin, não se dando por rogado, encontrou a cabeça perdida do Mímir após o final da chacina e, com sua magia, manteve seu amigo vivo como uma peculiar (e, provavelmente, assustadora) cabeça falante que ele carrega consigo para onde quer que vá – pois o Mímir ainda é um grande e sábio conselheiro.
Esta épica batalha, que poderia ser lamentada como um fato trágico, na realidade é festejada como o alvorecer da civilização – de qualquer civilização, pois todas começaram assim, e todas tem mitos muito próximos [1] –, quando tribos sedentárias e pacíficas, que já dominavam a agricultura, são invadidas e quase dizimadas por tribos nômades guerreiras. Mas, no fim, tudo se ajusta: a cultura das tribos nativas, geralmente mais profunda e espiritual (por se tratar de gente “que tinha tempo de viver, e não apenas caçar e coletar”), é assimilada aos poucos pela cultura invasora, e com o passar dos séculos é como se todas fossem uma só cultura – e, de fato, já o são.
O próprio fato de Odin ainda hoje ser visto como um deus de sabedoria e magia, e não apenas um grande guerreiro, demonstra que talvez, no fim, a cultura dos vanir tenha se sobressaído à cultura dos æsir, e isso talvez indique que ainda podemos ter a esperança de uma volta a este antigo mundo pacífico: onde a fertilidade é mais exaltada do que a ferocidade.
Mas, e quanto à cabeça decepada e falante do Mímir, o que diabos isso significa? Olha, não vou dizer que sei o que isso significa, mas este mito me remete pelo menos a duas considerações: a primeira, é que os nórdicos já sabiam valorizar a importância da cabeça em relação ao corpo, o que a neurociência apenas confirmou; a segunda, é que eles tinham algum senso de humor.
O deus enforcado
Como já disse no início, Odin também é reverenciado por ter trazido ao conhecimento dos homens as runas, que nada mais eram do que o primeiro alfabeto do povo nórdico, o que possibilitou a origem da escrita entre eles. O que eu não mencionei é o quão estranha é, a primeira vista, a história que nos conta como Odin obteve tal conhecimento...
Diz-se que ele, desejando adentrar reinos ocultos do mundo espiritual, enforcou-se na própria árvore cósmica, Yggdrasil, por nove dias e nove noites (nove também são os reinos míticos da mitologia nórdica em geral), enquanto era estocado por sua própria lança (não está claro quem o “auxiliava” neste ritual, talvez fosse ainda o Mímir quando tinha o corpo inteiro)... Ao final de todo esse sacrifício, Odin acordou (se é que ele morreu no processo, entende-se que após os nove dias ele ressuscitou [2]) e trouxe consigo a memória do conhecimento da escrita rúnica.
Ora, sabe-se que todos os deuses inventores da escrita foram grandes, ou ainda são: pois foi exatamente a escrita que possibilitou que o conhecimento sobre eles fosse preservado de forma mais exata (o que não necessariamente é algo sempre bom). No Egito antigo sabe-se que tal tarefa coube ao deus Thoth. Posteriormente, na Grécia, existiu também Hermes, que partilhava de tantas características em conjunto com Thoth, que muitas vezes faziam referência a ambos os deuses sob o título de Toth-Hermes. Entre os romanos, Hermes foi conhecido como o deus Mercúrio e, de fato, muitos historiadores acreditam que os romanos também confundiam Mercúrio com o próprio Odin, quando se referiam aos povos nórdicos – assim, o ciclo se fecha...
Mas, o que me interessa aqui é que todos os deuses inventores da escrita também eram reconhecidos como grandes intermediários entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses, ou seja: eram médiuns, ou xamãs [3].
E é exatamente daí que parte a compreensão do que diabos Odin foi tentar fazer ao se enforcar numa árvore cósmica: ora, é claro que se trata de ainda mais uma metáfora. A árvore Yggdrasil sustenta todo o Cosmos e, dessa forma, o ato de “enforcar-se” nela nada mais é do que o ato de “perder a consciência deste mundo, e viajar com ela alhures”... Além desta referência mais clara ao xamanismo (ou a viagem astral) há ainda a questão das “estocadas de lança”: uma imagem muito comum na arte das cavernas, a arte rupestre, de nossa pré-história longínqua, e que também está intimamente relacionada às práticas xamãnicas.
O ato simbólico de se cortar, espetar, estocar com lanças, ou até mesmo destroçar o próprio corpo, significa, para o xamã, o abandono total do apego ao corpo, para que ele possa se elevar mais facilmente, e mais profundamente, aos reinos etéreos de sua própria alma, ou da Alma do Mundo, ou de Yggdrasil. Estes sacrifícios foram necessários para que os xamãs, os grandes heróis míticos de outrora, pudessem nos trazer conhecimentos ocultos, que podiam variar desde “onde caçar amanhã”, a “quais plantas e ervas coletar para fabricar este ou aquele remédio”, a até mesmo a própria inspiração divina para algo totalmente novo, como a escrita rúnica.
» Na última parte: finalmente, os corvos...
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[1] No Mahabharata hindu temos histórias de batalhas muito parecidas, de onde surgiram grandes reinos e, eventualmente, a própria civilização. Na Europa não será diferente: mesmo a origem de Roma teve seu episódio de brutalidade para com tribos pacíficas na região próxima. No Brasil, poderíamos nos referir aos indígenas como os vanir, e aos colonizadores europeus como os æsir (como já disse, a história é escrita pelos vencedores).
[2] Avatares que morrem por “x dias” e ressuscitam com novos conhecimentos místicos existem aos montes na mitologia em geral.
[3] Você pode achar estranho o termo “xamã” aparecer toda hora neste relato, e tem toda razão: o termo surgiu do estudo antropológico dos primeiros místicos tribais da Sibéria, mas acabou por ganhar o mundo num significado bem mais amplo, referindo-se a todo e qualquer chefe espiritual tribal de toda e qualquer cultura selvagem antiga. Dessa forma, obviamente os índios do Brasil não chamam a seus xamãs como xamãs, mas sim como pajés, e assim vai... É nesse sentido que os termos “xamã” e “xamanismo” (a prática espiritual do xamã) são utilizados ao longo desta série.
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Crédito das imagens: [topo] viking-mythology.com (A fonte do Mímir); [ao longo] Anônimo
Marcadores: antropologia, artigos, artigos (171-180), Edda Poética, espiritualidade, história, mitologia, Odin, paganismo, xamanismo
8 comentários:
Muito boa esta série. Sempre correlacionei Odin a Zeus e consequentemente a Chesed. Tá aí algo interessante no mito dos deuses: apesar de uma energia parecer mais dominante que a outra, eles parecem passear pelas esferas durante suas estórias, como nós. Na estória de Odin e as runas, realmente ele parece passear por Hod. Na estória de Odin pendurado na Yggdrasil, ele parece percorrer o caminho do Arcano Pendurado. Enfim, alguns mitos são tão completos, que trazem a passagem do deus por quase todos os caminhos e esferas e isto só soma e amplia os conceitos. Vou aguardar a próxima sequencia para viajar com suas interpretações. Sempre é bom ler aqui. Abraços
Pois é, eu nem entendo tanto assim da Cabala, mas sob outro ponto de vista, eu diria que o mito de Odin também passeia por pontos centrais da história antiga, e até pré-histórica. Como disse noutro comentário da série: "os mitos antigos também carregam a história do espírito humano, e antes de sermos doutores, cientistas, filósofos, alquimistas, sábios, fomos xamãs."
Abs
raph
Ainda sobre o Arcano Pendurado: eu cheguei a encontrar até fotos e descrições de rituais modernos, neopagãos, onde uma pessoa se colocava pendurada por um dos pés numa árvore, como a carta do Tarô, e dizia-se que representava o sacrifício de Odin - mas eu não achei bases confiáveis para ditar que era esta a posição do "hanged god" desde o início do mito.
Também encontrei peças de arte decorativa que alinhavam, supostamente, o Odin enforcado ao Cristo crucificado... Era uma imagem extraordinária, que eu até cheguei a postar inicialmente no lugar desta segunda imagem no artigo, mas logo depois retirei porque lembrei que o homem enforcado também poderia ser Judas. Em todo caso, é óbvio que os antigos adoradores de Odin viram uma semelhança deste mito do "hanged god" com a história do Cristo crucificado.
ps. Quem sabe a própria história do Judas enforcado numa árvore, solitário e arrependido, não tenha a ver com a "demonização" de Odin. Sabemos que houve este embate religioso, e que o cristianismo se sobressaiu, mas não sabemos exatamente quais mitos são apenas cristãos, e quais são mais antigos (provavelmente a maioria é mais antiga).
Abs
raph
Sim, concordo com suas posições. O xamanismo foi o início e é um excelente ponto de referencia. Usei a Qabalah exatamente pelas correlações fluírem com mais facilidade, ao menos para mim (apesar de eu ser só curioso em um assunto tão complexo), mas sistemas são só linguagens diferentes pra mesma coisa, o importante é se fazer entender. O engraçado é que, em se tratando de mitos e correlações, até os aspectos contraditórios são reconciliados neles, formando os lados da moeda. Veja por exemplo que o Arcano Pendurado liga Hod a Geburah, ou caminho de Mem: um passeio do deus Odin do seu aspecto de peregrino errante ao seu aspecto guerreiro, refratando as energias do Grande Mar de Binah (ou entendimento), se considerar subindo, o retorno desta viagem com as runas, ou códigos (formas de manifestação da luz divina em planos superiores) vindo ao plano da racionalização. Trata bem de um dos aspectos da iniciação: racionalizar o que pertence somente ao mundo formativo-intuitivo das águas primordiais. O sacrifício tbm tem seu lado tiferet (o deus que morre e renasce) e o mito central, como senhor de Asgard, como sua realização em Chesed, sua coroação antes do Abismo. é um mito que retrata bem as esferas de Hod, Geburah e Chesed e alguns dos caminhos, tendo ainda seu toque de tiferet, que há em quase todo mito de heróis. Um verdadeiro achado simbólico! Abraços
Que legal, agora você realmente trouxe novos aspectos a interpretação de toda essa vasta simbologia que Wotan resume de forma tão fantástica... Há algo de realmente profundo nisso tudo, e suspeito que ninguém possa realmente saber (racionalmente) até onde vai tal profundidade :)
Abs!
raph
Não é preciso racionalizar tudo. Sempre que se racionaliza, se perde muita coisa. A melhor linguagem é puramente intuitiva, além da razão, além da emoção, mas se movendo em ambas. Palavras são só códigos para tentar demonstrar algo que é. Para brincar com neologismos, o que é, é "indemonstrável". Além da interpretação, sinta; além do sentir, intua; além do intuir, só seja. Apenas ser, só pode ocorrer no silencio da mente...ihhh... viagei...kkkk... abraços
Eu o convido a então apenas escutar o toque das antigas pedras, ao final da série... Sem racionalizar nada :)
Bando de delirantes... digo dos caras dialogando nos comentários, onde conseguiram essa planta aí? Deve ser viajante mesmo.
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