Todas as guerras do mundo, parte 3
Deixe-me dar-lhe adeus, todo homem tem de morrer.
Porém está escrito na luz das estrelas, e em cada linha de sua mão:
Nós somos tolos por guerrear com nossos irmãos de armas...
(Brothers in Arms, Dire Straits)
O Senhor dos Exércitos
O ano de 1209 deixou marcado na história o sangue de milhares de homens e mulheres massacrados pela Cruzada Albigesa, comandada pelo Rei da França e “abençoada” pelo então Papa da Igreja de Roma. Um dos principais objetivos desta Cruzada em especial não era “converter” os muçulmanos nas terras distantes, mas sim arrasar aos cátaros, um movimento religioso surgido dentro do próprio catolicismo, e que pregava uma visão um tanto quanto mística das Escrituras.
Bastante influenciado pelo gnosticismo, o catarismo pregava o cristianismo puro (do grego katharós, “puro”). Falavam em amor, fé, tolerância, perdão e misericórdia por onde passavam. Os cátaros eram queridos pelo povo, pois pregavam que não era necessária uma intermediação dos eclesiásticos em seu contato com Deus – eles poderiam orar em qualquer local, e realizar suas próprias missas e rituais de adoração, sem a necessidade de um padre. Também defendiam que a salvação da alma se daria pelo conhecimento (gnose) e pelo amor, sendo desnecessário, aqui também, o envolvimento da Igreja.
Mas os cátaros também tinham ideias radicais. Eles não acreditavam que o mundo tivesse sido criado diretamente por Deus, mas que era uma materialização do Mal e que, portanto, os que aqui viviam estavam destinados à expiação até que, após uma vida destinada ao bem, voltassem ao Éden perdido. Enquanto não conseguissem isso teriam que reencarnar em sucessivas vidas na Terra... Ou seja: os cátaros eram excelentes candidatos a serem arrasados por uma Cruzada; Isto é, caso se recusassem a “conversão”, aceitando a Verdade das Escrituras (segundo a Igreja de Roma, é claro).
Bem, eles se recusaram... Em 1209 a cidade Béziers era habitada por cerca de 60 mil pessoas, dentre elas muitos cátaros. O problema é que nem todos eram cátaros, o que gerou um questionamento muito pertinente de um dos comandantes do exército francês ao representante do Papa, quando eles se preparavam para invadir a cidade com uma força militar vastamente superior. O comandante perguntou: “Mas senhor, nesta cidade encontram-se vivendo em paz cristãos, judeus, árabes e cátaros. Como vamos saber quais são os inimigos?”. E a Igreja assim o respondeu: “Matem todos; Deus escolherá os seus!”. Béziers foi dizimada, mas não se sabe se Deus conseguiu encontrar os seus...
A ideia da guerra do Bem contra o Mal é poderosa e sedutora, e por isso mesmo sempre agradou aos Imperadores, Reis e Papas. De todas as ilusões que se interpõe a verdade inconveniente de que, como já vimos, todas as guerras do mundo se dão pelo desejo da conquista de territórios e riquezas, a lenda do Bem contra o Mal é a mais simples de se compreender, e a mais capaz de arrebatar uma grande massa de ignorantes. Nesse tipo de guerra, não há dor na consciência em dizimar inocentes, nem mesmo em estuprar mulheres e crianças, pois fica pré-estabelecido que elas são como demônios sem alma, fruto de um suposto exército comandando pelo Mal.
Engana-se quem pensa que tal artimanha se perdeu na Era Medieval, pois ela é até hoje utilizada em muitas guerras preventivas e atos de terror... Para os terroristas islâmicos, os civis de Nova York eram tão demônios quanto os civis do Iraque o eram para o exército americano. Nas manchetes, porém, havia o anúncio: “O Iraque será libertado das garras do Mal”. E acreditou quem quis, ou fingiu acreditar.
Nas Escrituras há inúmeras menções ao Senhor dos Exércitos, que presume-se ser o Deus Bom. Ocorre que, se ele é o senhor de um exército, falta definir quem seria o senhor dos outros exércitos, os inimigos do Bem. Esta ideia está muito bem definida na mitologia do zoroastrismo. Nesta antiquíssima religião persa, anterior ao próprio judaísmo e ao início da produção das Escrituras, há uma série de crenças que até hoje se veem presentes em inúmeras religiões modernas [1]: a imortalidade da alma, o advento de um messias, a ressurreição dos mortos, o juízo final, etc. Mas o que nos interessa aqui é a própria essência do zoroastrismo, que prega que o mundo inteiro é tão somente o grande palco da luta de duas divindades. Aúra-Masda seria o Deus Bom, e Arimã o Deus Mal. Espera-se, é claro, que o Bem vença esta batalha eterna... Pois bem, e todo esse tempo acreditávamos que o Imperador Constantino havia encontrado no cristianismo o sistema religioso ideal para a manutenção de seu império, quando na verdade ele deveria agradecer mesmo era a Zoroastro [2], e não a Jesus.
Interessante, porém, como mesmo a Bíblia parece ser bem pouco clara em identificar quem seria exatamente esse tal Deus Mal. Dizem que é Lúcifer, um suposto anjo caído, mas não se sabe onde exatamente ele está descrito. “Lúcifer”, termo que significa “o portador de luz”, e na antiguidade era quase que sempre associado ao planeta Vênus [3], parece se referir a uma pessoa diferente cada vez que é citado nas Escrituras: em Isaias (14:12) refere-se a um ambicioso rei babilônico que caiu no mundo dos mortos; no Apocalipse (12:4 e 7-9), um verdadeiro hino pagão, ele é identificado (por seus outros nomes) como um imenso dragão, que lembrava uma serpente gigantesca; já no mesmo Apocalipse (22:16) e em II Pedro (1:19), o termo está se referindo ao próprio Jesus Cristo. Mesmo quando é supostamente citado indiretamente, como em Ezequiel (28), fala sobre um querubim, um anjo que esteve no Éden, mas foi condenado por desafiar a autoridade de Deus (assim como Adão e Eva o desafiaram, aliás).
Vamos simplificar um pouco, senão daremos ainda muitas voltas sem sair do lugar, e essa questão me parece tão simples que uma criança poderia resolvê-la para nós, desde que fosse deixada livre para pensar por si mesma:
O que é o Mal? Agir, por vontade própria, para infligir nos outros algo que não gostaríamos que os outros infligissem em nós.
O que é Deus? O ser ou força primordial que gerou tudo o que existe a partir de si próprio, de modo que, se não existisse Deus, nada mais haveria.
Pode haver outro ser incriado, como Deus? Não, pela lógica só poderá haver um único ser incriado. Se houvesse outro, ou se houvessem mais de um, haveriam de ter sido criados por ainda outro Deus anterior a estes.
Lúcifer é mal, e foi necessariamente criado por Deus. Isso faz de Deus um ser mal? Faria, se Lúcifer fosse mal desde o princípio. Mas ainda podemos resolver a questão considerando que Lúcifer, tal qual o querubim que desafiou Deus, nasceu bom, ou neutro, mas depois tornou-se mal.
Mas então, Lúcifer é eternamente mal? Não, se qualquer ser criado por Deus fosse eternamente condenado a ser mal ou, de fato, eternamente condenado a proceder sempre por um mesmo princípio moral, ainda que bom, isso faria de Deus não um criador de seres, mas de robôs ou fantoches. Como Lúcifer nasceu bom e tornou-se mal, nada impede que ele se arrependa e se torne novamente bom. Conhecemos, pela nossa história, inúmeros exemplos de homens maus que tornaram-se bons (dentre eles o próprio São Paulo, que antes fora Saulo). Se estes podem se arrepender, Lúcifer também pode.
Mas, digamos que Lúcifer até hoje é mal por vontade própria, o que ele pretende conseguir em sua luta contra o Deus Bom? Difícil dizer, mas o que fica óbvio é que Lúcifer não teria nenhum poder sobre Deus, e nenhuma esperança de um dia vencer tal batalha.
Se Lúcifer sabe que jamais poderá vencer, porque ele precisa das almas dos homens? Difícil dizer, mas talvez seja uma forma de aliviar sua insatisfação: já que não pode “evoluir” no mal, trata de trazer para junto de si outros seres, de modo que fiquem estagnados como ele.
E Deus seria um Deus Bom se permitisse tal estagnação, sem proteger os seus da “sedução” de Lúcifer? Obviamente que não. De fato, independente de existir ou não um ser como Lúcifer, por toda a Natureza podemos ver claramente que a estagnação é severamente punida; Não para o mal, mas para o bem dos seres, conforme um remédio amargo... A isto Charles Darwin intitulou “a guerra da fome e da morte”.
***
Eis que todas as guerras do mundo são mesmo uma mesma guerra. Mas não uma guerra religiosa, não uma guerra ideológica, não uma guerra lendária, e nem mesmo uma guerra por riquezas e territórios... Pois que todos os imperadores que marcharam pelo mundo brandindo a bandeira com o símbolo do Senhor dos Exércitos eram apenas cegos um pouco mais elevados que outros cegos, ignorantes pastoreando ignorantes, buscando no horizonte algo que sempre esteve dentro deles mesmos, mas não perceberam, não acordaram e nem tampouco iluminaram suas consciências... Marcharam e dizimaram, e talvez tenham até “convertido” alguém, mas tudo o que conquistaram foi apenas sangue e fumaça.
Mal sabiam eles o quão próximos estiveram, e ainda estão, do Reino que, uma vez conquistado, jamais poderá ser perdido...
» Na parte final, a guerra da alma...
***
[1] Na verdade o zoroastrismo ainda é praticado por cerca de 200 mil pessoas, em sua maioria na Índia e no Irã.
[2] Profeta mítico que criou o zoroastrismo.
[3] Ovídio menciona que cada novo dia começa quando "Lúcifer brilha radiante no céu, chamando a humanidade para seus afazeres diários. Lúcifer excede em brilho as estrelas mais radiantes".
Crédito das imagens: [topo] Iluminura dos irmãos Limbourg, do inicio do século XV (uma das raríssimas representações medievais de Lúcifer ainda enquanto anjo, e que mostra exatamente a sua queda); [ao longo] Lawrence Manning/Corbis
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4 comentários:
Uhhmm... grandes problemas quanto às definições do deus como sendo "bom".
Devemos lembrar que se esse ser criou tudo, então ele criou também o mal.
Claro, podemos dizer que deus é bom porque escolheu ser bom, mesmo que tenha criado o mal para separar a bondade da maldade. E que, sendo bom, deu livre-arbítrio para que suas partes componentes auto-conscientes (que alguns insistem em chamar de "filhos", mesmo que filhos sejam, por excelência, seres diferentes dos pais, e, sendo tudo que há parte da mesma matéria una inicial, então não existem pais e filhos no universo, apenas o uno e sua consciência multi-facetada e espalhada) escolhessem caminhos diferentes.
Oras, isso só seria um ato de bondade se houvesse sabedoria para se escolher.
Dar a um recém-nascido a opção de escolher entre andar livremente no topo de uma escada ou ficar preso no berço não é algo "bondoso". É uma atitude passiva, sim, mas não "bondosa".
A própria ideia de guerra eterna é falha. Não existe guerra bondosa - para se fazer guerra, tem-se necessariamente que se fazer o mal.
Um "campeão de exércitos" que diga ser "o todo bondoso e misericordioso" e ainda assim mate, mutile ou guerreie, está "agindo por vontade própria, para infligir aos outros algo que não gostaríamos que os outros infligissem em nós". Está sendo mal.
Não é porque enfrentamos demônios que, sendo demoníacos para com eles, estaremos sendo bondosos e angélicos - toda a desgraça cristã está em não entender isso : Punir ao mal não é ser bondoso - talvez seja ser racional - mas ainda é usar das forças da opressão e da destruição, ainda é ser "mal".
É, bem, em realidade Bem, Mal, Perfeição, Salvação, são alguns dos termos que definem ideias raramente vistas na Natureza, que não na mente dos homens.
O que falo sobre Deus Bom e Deus Mal é também uma crítica ao que as doutrinas carregam consigo, guardado em gavetas, desde o zoroastrismo. É um conceito tão infantil que as vezes me pergunto se o próprio Zoroastro queria mesmo dizer isso, ou se foi mal interpretado... Em todo caso, é um conceito que volta e meia surge de novo na humanidade, principalmente quando falamos em guerras.
Na próxima parte eu falarei mais sobre "a guerra da fome e da morte", e de um Deus criador de Sistemas, no lugar de um Deus Bom, ou de um Senhor dos Exércitos.
Abs
raph
Rafael, ahura significa luz e mazda significa sabedoria.O deus sol babilônico era Shamash significa apenas sol, em sumério é utu era o sol que dissipa a escuridão.Outro personagem é tiamat serpente a força do caos que possuiu as táboas do destino. Vencida por Marduke. Ou apolo que lutou e venceu Piton(outra serpente), ambas piton e tiamat representa as forças ctônicas que nos prende que impede o rio fluir, o talvegue do lago que impede que as águas escapem e fluam determinadamente para ele, com essa pespectiva tiamat possui as tábuas do destino que determinava e aprisionava a existência.No egito tem apófis senhor do caos, que rá em seu barco vencia todos os dias trazendo nova luz para o mundo, no livro dos mortos têm ahmit que devorava a alma se o coração ou se o escaravelho de ouro do coração, ele o escaravelho que carregava o sol para que o dia nascesse, não demonstrasse que o morto tinha coração tão leve quanto a pena de maat( a harmonia do universo).
Parando por aqui, na verdade todos os mitos apresenta um deus solar representando a luz e essa o discernimento que nos liberta da escuridão.
Como disse jesus no evangelho de tomé eu vim da luz que cria a si mesmo. Uma interpretação mais literal seria a entropia e antropia da natureza. Mas no fim como diria Gilbran kalil no poema a floresta nem tiamat, nem apófis é má, não porque na natureza quando o leão rugi ou mata, o leão não é bom ou mau, mas ele é uma força de morte e de renovação, ele carrega dentro dele tanto apófis quanto rá,assim como não se pode dizer que todo amor é bom se ele é tiamat, que te prende ou te estagna ou se ele é rá que te dá bem aventurança e renovação. No fim, um sem outro geraria doença, só quando o coração brilha seu sol em equilibro e que está verdadeiramente refletindo Deus. Na verdade o ser humano é como o Deus Romano Juno esse que tem uma face apontando para cada lado, ele só enxerga um lado da questão e normalmente é apenas o lado que o benefícia.
Grande Rafael, seus blog sempre têm temas muito legais.
Oi Samuel, obrigado pelo complemento espetacular.
Obviamente que quando falo em Deus Bom e Deus Mal, estou falando na visão limitada e infantil que muitos têm dessa temática.
Como disse no comentário acima, suspeitava que Zoroastro havia sido mal interpretado, e agora com o seu complemento, apenas confirmo isso...
É como dizia Joseph Campbell, "o mito é algo que não existe, mas existe sempre". O problema não é o mito, mas as pessoas que, mesmo se abstendo de mergulhar nele, ditam: "é superficial, é mentira!".
Somente mergulhando é que veremos sua profundidade. Por sorte os que mergulharam deram um jeito de registrar parte do que viram, e enterrar seus pergaminhos em vasos nos desertos... Os vasos estão sendo (re)descobertos :)
Abs
raph
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