O mito da política
Eu havia prometido que não ia falar novamente de política por aqui, mas este texto saiu à força da minha alma, não pude evitar... Antecipadamente, peço seu perdão...
Lula disse que o “mensalão” é um mito. Antes ele disse que “se sentia traído por práticas inaceitáveis de seus colegas de governo, práticas das quais nunca teve conhecimento”. Somente após ter dito isso que voltou atrás, e se corrigiu: “Tenho certeza de que não teve mensalão, esse negócio me cheira a folclore dentro do Congresso” [1]. Eu concordo com Lula, na realidade não só o “mensalão” é um mito, uma coisa lendária, um folclore... Toda a política brasileira nas últimas décadas tem sido uma lenda.
Acreditamos todos um dia nesta lenda surgida após as “Diretas Já”, de que todos esses que se dizem políticos e pensadores idealistas iriam representar o povo, representar suas ideologias, uma vez eleitos. Isso até tem ocorrido, em raríssimos casos, mas infelizmente não são o suficiente para que possamos afirmar que se faz Política no país. Aqui se faz “um negócio eleitoral”, ou algo assim...
Na verdade, o termo “mesalão” realmente não se aplica ao que provavelmente ocorreu no início do primeiro mandato do ex-presidente Lula. Se pegarmos o Valdemar da Costa Neto e o Bispo Rodrigues, por exemplo, líderes do partido de José Alencar, o vice-presidente no governo de Lula, temos exemplos de histórias políticas que pouco ou quase nada têm a ver com a ideologia socialista do Partido dos Trabalhadores. Os defensores de que o “mensalão” foi uma lenda querem fazer crer que “um partido aliado do governo, que tem um vice-presidente, naturalmente votaria a favor das propostas governistas”. Mas, se formos analisar a história política e a ideologia de cada um dos deputados da base aliada, veremos que muitos não teriam nenhuma razão ideológica para votar de acordo com a “recomendação” do governo. De fato, se formos observar o “jogo caótico” de alianças entre partidos nas eleições federais, estaduais e municipais, veremos o quanto isto tudo cheira mais a um “grande negócio de grandes interesses” do que a uma junção de ideologias. Na verdade, há poucos partidos políticos no Brasil que parecem atrelados a alguma ideologia em específico, ou pelo menos, que demonstrem na prática que estão atrelados a elas. Aqui, como em boa parte do mundo, “direita” e “esquerda” são, igualmente, mitos da era moderna.
No entanto, não foram “pagamentos mensais” que definiram o chamado “mensalão”, mas pagamentos em espécie, sem notas fiscais, transportados em malas e cuecas, e entregues na mão de deputados e líderes partidários, como o próprio Valdemar da Costa Neto. Foram milhões entregues não em datas mensais, mas precisamente nos dias anteriores as votações de grande importância no Congresso, no início do governo Lula, como a reforma tributária e a reforma da previdência. Se Lula diz que não sabia de nada, que se sentiu traído, podemos crer que foi o eminente ministro da época, José Dirceu, quem arquitetou o esquema todo... Eu até consigo entender o Sr. Dirceu, que ao menos parecia querer realmente seguir a sua ideologia: “todos esses deputados são corruptos e vão votar de acordo com quem pagar mais, nossa única chance de melhorar o país é pagar mais do que os outros corruptores”.
Sim, pois não se enganem: Vocês acham que os deputados da “bancada ruralista” votam de acordo com seus ideais pessoais, ou de acordo com o que os grandes donos de terras lhes “prometem doar” nas eleições futuras? Vocês acham que os deputados da “bancada evangélica” estão representando seus ideais e crenças religiosas, ou os interesses desta ou daquela Igreja? Vocês acham que os deputados do “baixo clero”, que se elegeram “na carona” dos tiriricas da vida [2], estão ali para representar alguma parcela do povo que seja, ou para “defender seus interesses financeiros”?
Enquanto a democracia, no Brasil e em boa parte do mundo, não conseguir sair desta “armadilha” dos grandes interesses corruptores, enquanto não voltar a ser, de fato, “uma pessoa = um voto”, e não o que se vê hoje em dia, “X reais = um voto”, seja antes ou depois da eleição, dificilmente será sequer a sombra de uma democracia plena, de uma Política.
Na Grécia Antiga, apesar das mazelas de seu tempo, como a escravidão e o fato de que somente os nobres tinham real direito a voto (dentro os quais nenhuma mulher), ainda assim havia a ideia da polis, da comunidade, da irmandade de seres erigindo uma cidade a partir do caos do mundo, com uma Acrópole dedicada aos deuses e aos altos ideais, em torno da qual toda a vida girava. Um ateniense jamais diria “sou nascido em Atenas”: ou era ateniense ou não era. Ou permanecia fiel ao ideal da polis, ou seria o mesmo que um animal selvagem a vagar pelo mundo. Os altos ideais da Grécia Antiga não estavam subordinados a vantagens financeiras, pessoais, individuais, mas formavam uma ideia de todo, de uma comunidade que lutava para construir uma civilização a partir da barbárie; formavam um ideal de vida, um ideal de ser, a partir de existências que não tinham qualquer sentido profundo em separado. Somente unidos os gregos poderiam manter a polis. Trair a polis era antes trair a si mesmo.
É isso que chamo de Política, com “P” bem maiúsculo... Seria uma utopia? Talvez, mas é melhor tentar caminhar em direção a este horizonte iluminado do que viver andando em círculos nos charcos da ignorância, da mesquinhez, e da pouca visão. O primeiro passo para a caminhada de volta a este horizonte é instaurar o financiamento público e exclusivo de campanhas eleitorais, com fiscalização altamente rigorosa. Enquanto isto não for feito, vai prevalecer o interesse dos grandes corruptores, a formarem as suas “bancadas x ou y”, a “investirem” em candidatos, muitas vezes em todos os candidatos em disputa, como forma de garantirem o seu “retorno” no futuro. É por isso mesmo que partidos que não aceitam nem as grandes coligações nem os “vultuosos investimentos” dos grandes corruptores, assustam, e são atacados por todos os lados – tanto pela dita “direita”, quanto pela dita “esquerda”. A candidatura de Marcelo Freixo a prefeitura do Rio de Janeiro é somente o mais recente exemplo disso.
Mas, e porque o PT deve ter vergonha do “mensalão”? Ele não foi sequer inventado pelo PT, mas era prática corriqueira dos antigos partidos no poder, e se não era tão conhecido e divulgado, talvez seja pelo fato de que a “mídia corruptora” não visse razão para querer “mudar o rumo do jogo da política”... Em realidade, talvez tenha sido exatamente devido à larga exposição do “mensalão” na mídia que o PT tenha conseguido fazer um governo mais honesto e eficaz – afastando o eminente Sr. Dirceu e dando espaço para aquela tal brizolista que “gostava de fazer as coisas acontecerem”.
Se não deu certo com políticos altamente carismáticos a defenderem suas supostas ideologias de vida, ao menos pode ser que dê certo, que esteja dando certo, na medida do possível, com a “presidenta gerente”. Dilma Rousseff tem aproveitado para substituir políticos afastados de ministérios (pelas alegações de corrupção) por pessoas técnicas que efetivamente entendem do assunto de seu próprio ministério; tem atacado aos bancos de frente e os forçado a reduzir seus juros exorbitantes; tem, na medida do possível, combatido os interesses da “bancada ruralista” e trazido um pouco mais de “verde” para as leis florestais; e, mais recentemente, tem se alinhado com os empresários que realmente desejam investir no país (e não corromper pessoas), e ajustado algumas variáveis importantes da economia, para que possamos continuar a crescer de forma sustentável.
Dilma me parece estar sendo o que Lula não foi. Dilma me parece estar realizando muito daquilo que esperávamos dele. Pode ser ainda pouco, e pode ser que ainda nos arrependamos no final, mas até o momento, por incrível que pareça, tudo que a tal lenda do “mensalão” tem feito é, efetivamente, tornar a política do país um pouco menos lendária, um pouco menos política, e um pouco mais polis, Política!
***
[1] Para relembrar o “caso mensalão”, recomendo esta excelente história em quadrinhos com arte de Angeli.
[2] Embora o deputado Tiririca esteja se comportando como um Político de verdade, ao contrário de quase todas as expectativas. Admito que ele me surpreendeu, mas em todo caso a minha crítica a sua eleição nunca foi direcionada a pessoa dele, mas aos “fichas sujas” que se elegeram na “esteira” da sua enorme votação (outra coisa que precisaria ser reformada urgentemente nas leis eleitorais).
» Vejam também: Três pela manhã
Crédito das imagens: [topo] Trecho dos quadrinhos de Angeli (citados na nota #1 acima); [ao longo] Google Image Search (Acrópole de Atenas)
Marcadores: artigos, artigos (181-190), Atenas, Brasil, eleições, Lula, mensalão, política
4 comentários:
Seu texto foi bom, só acho que você esbarrou no problema do Financiamento Público.
Quando diz "uma fiscalização rigorosa", se ela existisse, não existiriam os problemas que temos hoje.
Ela também não funciona muito.
E no final, babou ovo demais pra Dilma.
Gosto dos seus textos. Gosto bastante de pessoas que se empenham em escrever.
Ainda não descobrimos a solução perfeita para a política, mas continue pensando. Uma hora descobrimos uma solução!
Abraço
Bem, acredito que mesmo sem fiscalização tão rigorosa, ao menos o financiamento público de campanha iria dar maiores oportunidades para que os reais Políticos, idealistas, tivessem alguma chance de se eleger, nem que fosse para cargos menores.
Hoje um sujeito idealista não tem a menor chance de se eleger para algo mais do que vereador sem "ter o rabo preso" com algum "financiador".
Não estou dizendo, tampouco, que encontraríamos facilmente esses Políticos, mas seria um bom primeiro passo, em todo caso...
***
Sobre a Dilma, eu me sinto a vontade para falar bem dela hoje, pois não votei nela e nem acreditei nela. Então, ela me saiu bem melhor do que a encomenda.
Abs
raph
Este comentário foi removido pelo autor.
Obrigado Jaudir, vou conferir o vídeo, mas essas animações da RSA geralmente são muito boas...
Sobre Educação, recomendo o documentário abaixo:
A Educação Proibida
Abs
raph
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