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14.2.13

Condutoras

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...

“Só podia ser mulher! Nessas horas eu sou machista...”.

Quem disse isso foi uma mulher. Ela estava dirigindo o carro, e eu era o carona. No cruzamento, alguma outra mulher conduzia seu carro sem muita pressa, o que é sempre um incômodo para o mundo do fast food.

Mas eu não estou aqui para falar de fast food, e sim de machismo. Já pararam para pensar? – São as mães, são as mulheres, primordialmente, quem ensinam seus filhos e filhas a serem machistas. Ou, pelo menos, a maioria pouco faz para evitar a sedução do pensamento machista na maior parte das sociedades do mundo.

Em comerciais de TV (inclusive de carros), músicas pop, novelas, e até mesmo na literatura softcore altamente vendável: o machismo ainda está por toda a parte. Mas é claro que as coisas mudaram: hoje em dia, na maior parte do mundo civilizado, as mulheres tem alma, podem escolher com quem vão se casar, tem direito ao voto, e estão a caminho de ganhar quase tanto quanto os homens pela mesma função no trabalho. Dizem até que no ensino superior já ultrapassaram os homens há algum tempo, ao menos em porcentagem de inscritos... Então, qual é o problema?

O problema está na origem do machismo, isto é, na origem do mundo patriarcal. Como alguns devem saber, há muito, muito tempo, a maioria das sociedades tribais era matriarcal, pois eram as mulheres, as sacerdotisas, quem “dominavam” os mistérios da vida, e da Deusa Mãe. Era somente através delas que novos seres humanos chegavam a Terra, e por isso parecia justo que fossem elas as responsáveis por organizar e celebrar os cultos e rituais religiosos.

Então chegou a agricultura. No início, deu ainda mais poder as mulheres: afinal, elas já cuidavam de organizar a tribo enquanto os caçadores-coletores se arriscavam no meio selvagem. Agora cuidavam também da plantação e do estoque de grãos. Estocar comida, isto sim, era algo inédito na história humana. Infelizmente, nem todas as tribos tinham a mesma habilidade para tal função.

Em épocas de fome, tribos de nômades pensaram assim: “Porque me arriscar a caçar na selva, se posso simplesmente invadir aquela tribo onde há vasos cheios de comida estocada, e somente mulheres cuidando dela?”. Os caçadores nômades passaram a invadir tribos estabelecidas, e foi então que o mundo viu o surgimento do primeiro exército: um grupo de caçadores passou a ser pago em comida, para proteger a comida.

Ainda que todo soldado sirva, idealmente, para manter a paz, na prática foi com violência e sangue, muito sangue derramado, que ela vem sendo mantida desde então. O matriarcado não fazia mais sentido num mundo violento. A Deusa Mãe tornou-se submissa ao Deus Pai. Freyja tornou-se apenas a esposa de Wotan.

O machismo está, portanto, intimamente ligado à violência, a ideia de que “os homens são fortes e lhe protegem, mas não os irrite porque eles são mais fortes que você”. Então, se na teoria o machismo pode parecer somente algo engraçado que aparece de vez em quando na TV, na prática o que ele gera são estatísticas alarmantes de violência doméstica e estupros. E isto não aparecia na TV até pouco tempo, mas mesmo o que aparece é somente a ponta do iceberg...

No entanto, isto não responde a pergunta: “se o machismo é tão nocivo as mulheres, porque grande parte delas, quem sabe a maioria, é machista?”.

Neste caso, precisaremos recorrer a mitologia: Enquanto boa parte das deusas perdeu sua força ancestral, o gênero feminino conseguiu se manter no pensamento masculino como uma espécie de joia preciosa, de troféu... A musa que dá inspiração aos artistas, a princesa que precisa ser resgatada de algum monstro vil (e que é ela mesma o prêmio da aventura), a miss que, com sua beleza, reina sobre homens e mulheres.

E, conforme os mitos não existem, mas existem sempre, isto significa que existem ainda neste momento. Talvez por isso muitas mulheres aceitem o machismo. Elas podem até saber, ainda que inconscientemente, que correm algum risco de serem estupradas ou esbofeteadas ocasionalmente num mundo de homens machistas, mas talvez aceitem o risco pela possibilidade de serem, elas mesmas, o grande prêmio cobiçado por todos!

Qual mulher machista, afinal, não quer ser a musa, a princesa prometida ao grande herói, a miss universo, a mais bela de todo o mundo, de todo o Cosmos?

E isto só é possível num mundo machista. Num mundo machista as mulheres que são mais cobiçadas não são exatamente aquelas donas do próprio nariz, senhoras de si, livres pensadoras, mas sim aquelas que esperam, tal qual a princesa do castelo, pelo príncipe encantado. Num mundo machista estamos atrás de mulheres-troféu. E as mulheres machistas, afinal, querem muito ser este troféu tão adorado.

Infelizmente para elas, e felizmente para os que desejam um novo mundo, a grande maioria das mulheres não alcança tal posto... Um dia, quem sabe, elas cansem das dietas milagrosas e da obsessão pela estética, e se voltem para dentro, e descubram a si mesmas, e rasguem esta ridícula veste de princesa que as limitam por todos os lados. Quem sabe, um dia, as mulheres aceitem a celulite e algum tanto de culote.

Neste dia o machismo estará em sérios apuros. Neste dia a Deusa Mãe, e a sensibilidade, e o amor e respeito a Natureza, e o amor e respeito a integridade da mulher, estarão em vias de retomar seu lugar no mundo. Não um lugar de dominância, acima do Deus Pai, pois neste novo mundo Deus poderá ser, finalmente, Pai e Mãe!

E, em toda essa história, teremos citado apenas uma lenda, um mito efetivamente falso: As mulheres são melhores condutoras de automóveis que os homens, e já faz algum tempo. Se duvidam, pesquisem pelo preço do seguro para homens, e para mulheres.

O que falta a mulher é, portanto, ser a condutora da própria vida. Os homens, afinal, não as deixaram num mundo tão maravilhoso assim. O príncipe encantado, e seu Reino Encantado, podem existir no futuro, não hoje.

***

Crédito da foto: Tomas Rodriguez/Corbis

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9 comentários:

Blogger Liz Elhaz Oliveira disse...

Obrigada por resgastar alguns dolorosos mas preciosos momentos de minha vida, talvez os mais marcantes. Me lembro claramente bem nova cursando a 1a faculdade pegando onibus a meia-noite pra voltar pra casa. Numa dessas noites cansativas de onibus lotado, uma mulher um pouco + velha do que eu era assediada por um cara nojento. Como jovem de pensamento justo, manifestei minha indihnaao, nem me lembro oq eu disse ao sujeito mas minha intenao era q a propria vitima se manifestase e tds no onibus se indignassem. Ledo engano... foi muita ingenuidade acreditar q td mundo tivesse a mesma consciencia de q no lugar daquela mulher poderia ser sua mae, sua irma, suesposa, amiga ou no meu cas aconteceufoi qhistoria. Alguem co pervertido sentar bem longe de mim e ainda por cima ugrupo de garotos foi dali ateh quase chegar à minha parada tirando sarro da minha cara, pq eu era uma mal amada tentando chamar atencao.
Mais tarde comcei a trabalhar na área de TI, ateh entao de dominio dos homens. Meu primeiro estagio foi numa metalurgica onde eu era responsavel pela manutencao de todos os computadores. Nunca me esquecerei de um episódio em particular qdo consertava o computador do almoxarifado e o encaregado do dpto comentou em alto e bom tom "lugar de mulher eh atras do fogao esquentando a barriga e esfriando no tanque, nao com computador e tecnologia". Naquela epoca um processo por preconceito nao ia dar em nada, soh serviu para q eu caisse mais no mundo real, aquele q nao eh asim tao igual para tds como gostaria q fosse. Oq eu aprendi? Que ser princesa eh legal, mas as vezes temos q vestir a armadura do cavaleiro, tomar para nos a espada e mostrar ao mundo que somos mais do que rosa ou azul, somos seres pensantes e capazes nao importa cor, sexo ou bero. Aprendi a mostrar ao mundo q nao estou de brinicadeira qdo traco um objetivo mas td com mto respeito. Se eu chorei nessas ocasioes? Muito, mas lagrimas nao trazem devolta sua dignidade. Hj me considero uma pessoa de mta sorte por conhecer tantas amazonas e tantos homens cavaleiros q se preciso for tb se transformarao em donzela, trabalhando a sensibilidade, o mundo eh um lugar mto esquisito, td eh ao msm tempo fascinante e sem graca e temos q adaptar nossa versatilidade.

14/2/13 13:11  
Blogger raph disse...

Liz,

Somos seres antes se sermos homens ou mulheres, e quando compreendemos isso, percebemos que mesmo a masculinidade e a feminilidade tem papel fundamental na formação de nosso eu.

A questão é que existem boas e más ideias, bons e maus costumes e hábitos. Nenhum homem precisa deixar de ser macho para deixar de ser machista. Nenhuma mulher precisa deixar de ser feminina para se tornar a condutora da própria vida.

Somos seres, estamos todos conectados. Apenas os ignorantes recorrem aos velhos preconceitos e a violência. É que eles não se veem no outro ser que está a sua frente.

Eles existem, mas não vivem. São como cadáveres adiados, como diria Fernando Pessoa...

É preciso mudar, renascer, viver neste novo mundo que bate a nossa porta.

Isto tudo é só o começo!

14/2/13 14:20  
Blogger Vinícius Dalí disse...

"Neste dia o machismo estará em sérios apuros. Neste dia a Deusa Mãe, e a sensibilidade, e o amor e respeito a Natureza, e o amor e respeito a integridade da mulher, estará em vias de retomar seu lugar no mundo. Não um lugar de dominância, acima do Deus Pai, pois neste novo mundo Deus poderá ser, finalmente, Pai e Mãe!"

Aeon de Hórus?
Curioso que eu estava com um post quase pronto, relacionando a liberação sexual e evolução da mulher na sociedade com a passagem de Aeons. Me deu até um ânimo para terminar o texto.

Muito bom, como sempre.

Abs.

15/2/13 00:55  
Blogger raph disse...

Oi Vinícius, obrigado :)

Bem, cada um pode chamar de um nome diferente, mas acredito que a evolução da consciência humana não dê exatamente "saltos repentinos". O que está ocorrendo hoje, de muitas formas se deve ao que se iniciou ainda no Renascimento, e depois no Iluminismo.

O que ocorre, talvez, é que primeiramente nos beneficiamos da evolução científica, e somente agora estamos percebendo como aquelas novas (e antigas) ideias também desencadearam uma evolução espiritual (*).

Ou seja, de certa forma, estamos colhendo os frutos da luta pela mudança de pensamento de todos aqueles que vieram antes de nós :)


(*) Ver, por exemplo: http://textosparareflexao.blogspot.com/2012/10/o-dia-em-que-terra-parou-parte-1.html

Abs
raph

15/2/13 10:06  
Anonymous Anônimo disse...

Na minha opinião,o número de colisões é maior entre os homens pois no volante somos mais descuidados, eu mesmo já bati o carro não por falta de habilidade, mas por imprudência.

15/2/13 15:08  
Blogger raph disse...

É o que parece ocorrer. Como o trânsito nas cidades não é exatamente um grid de corrida, as seguradoras cobram menos pelo mesmo seguro, no caso do condutor ser uma mulher :)

15/2/13 15:43  
Blogger Alfredo Carvalho disse...

Oi Raph... muito legal o seu texto, como sempre, mas não sei se concordo com as conclusões a que chegou.

Pelo que entendi dos últimos parágrafos, você concluiu que "o machismo estará em sérios apuros" no dia em que as mulheres machistas deixarem de querer ser trófeus. Mas acho que nessa idéia há uma inversão na relação de causalidade entre o machismo e o fenômeno da mulher-troféu. Penso que este é um efeito, enquanto aquele é a causa, e a extinção de um efeito não pode nunca resultar na extinção da causa. Somente o contrário é verdadeiro.

Na minha opinião, as raízes do machismo estão em dois fatos principais:
* o ser humano em geral é moralmente corruptível, especialmente em momentos de crise e quando tem nas mãos algum tipo de poder.
* os homens em geral são fisicamente mais fortes que as mulheres (e a força física é um tipo de poder, e dos mais eficientes, especialmente em momentos de crise).

Portanto, creio eu, enquanto os dois fatos acima forem verdadeiros, haverá sempre algum tipo de machismo no mundo e não importa muito se as mulheres deixarem de querer ser troféus ou não. O que acontece é que, em tempos de paz, quando a lei e a moral conseguem exercer maior influência sobre as pessoas, o machismo pode ser parcialmente contido, mas em tempos de crise, guerra e confusão as mulheres sempre estarão à mercê do poder físico dos homens.

Enfim... o que acredito é que a única solução real e definitiva para o machismo é a evolução moral da humanidade como um todo. Enquanto isso não acontecer – e provavelmente ainda vai demorar muito – todo e qualquer poder sempre desencadeará abusos por parte daqueles que o possuem e é importante que todos tenham consciência disso para que não sejam pegos de surpresa.

Abração.

18/2/13 08:32  
Blogger raph disse...

Oi Alfredo,

É verdade o que disse em relação ao machismo em tempos de guerra, de fato, foi quando surgiu o primeiro exército que o patriarcado começou a tomar o lugar do matriarcado.

Mas o texto é, principalmente, endereçado as mulheres, e as mães. Ora, se as mães cuidarem para que seus filhos e filhas não sejam machistas, já será um grande avanço... Muitas vezes, o conceito de "mulher troféu" nem parte tanto do pai (pelos pais machistas, inclusive, suas filhas seriam praticamente celibatárias por boa parte da vida), mas sim da mãe. Quantas mães não gostariam de ver suas filhas ganhando concursos de beleza, sendo como "princesas"?

Mas é claro que somente a mudança de pensamento das mulheres não resolve a questão, é preciso que o mundo todo mude, e isso incluí também os homens.

Porém,também devemos considerar que, enquanto as mulheres não se manifestarem contra o machismo, particularmente em tempos de paz e democracia, dificilmente ele deixará de ser praticado em larga escala...

Abs!
raph

18/2/13 09:54  
Blogger raph disse...

Uma crítica a "cultura das princesas", pela atriz que trabalha no famoso seriado nerd, Big Bang Theory (em inglês):

http://www.kveller.com/mayim-bialik/on-the-big-bang-theory-princess-scene-why-i-dont-like-princess-culture/

19/3/13 17:23  

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