Autoescola
» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...
Hoje tive de acordar cedo para ir a autoescola com o meu Manual de formação de condutor veicular debaixo do braço.
Dizem que o CONTRAN, o Conselho Nacional de Trânsito, é o “órgão máximo” do trânsito no país. Cada faixa amarela pintada no meio fio das calçadas, cada placa de parada obrigatória, cada gesto executado pelos guardas de trânsito foram pensados e definidos por tal Conselho através de um Código: o Código de Trânsito Brasileiro (C.T.B.).
Mas ainda que eu saiba do significado de cada placa, de regulamentação ou advertência ou indicação, e ainda que eu saiba de cada uma das centenas de infrações previstas e de quantos pontos tiram da carteira, ainda que soubesse de cada um dos itens obrigatórios para automotores, da diferença entre a distância de segmento e a distância de parada, ou mesmo o que diabo faz um canister, tudo isto, por si só, não me serviria sequer para retirar o meu carro da sua vaga na garagem...
Perdi a chance de haver tirado minha carteira há muitos anos atrás. Li tanto Platão, Lao Tse e Bhagavad Gita que, subitamente, tirar a carteira já não era nem a décima segunda prioridade da minha vida. Não precisava mais me preocupar em “ser mais homem” pelo fato de saber dirigir. Até hoje, quando chegamos no supermercado e eu salto do carona, enquanto minha esposa salta do motorista, surgem aqueles olhares do tipo, “Nossa, a mulher dele é motorista, vai ver ele deixa ela dirigir o carro fora do expediente”.
Na verdade eu deixo ela dirigir o carro sempre, e não tenho a menor pretensão de dirigir um dia melhor do que ela, que tem anos de prática a mais do que eu. Agradeço por ter alguém que me completa na vida, e também por não ligar, mesmo, para o que os outros pensam do fato de eu sempre saltar do motorista.
Ainda assim aprender a dirigir pode ser uma experiência filosófica por si só. Tenho amigos que tiraram a carteira quando as 45 horas de aulas teóricas sequer existiam. E eu disse há pouco que toda a teoria do mundo não me ensinaria, por si só, a prática da direção. É a mais pura verdade.
No entanto, a prática crua, sem um ensino teórico inicial, tampouco me parece ser uma boa solução... Ora, há muitos que frequentam as aulas teóricas somente pela obrigação de frequentar, não se atentam aos motivos ocultos por detrás de cada lei e de cada recomendação do Código de nosso trânsito. Eu, como filósofo, não poderia deixar de nota-los.
Pegue o sinal amarelo do semáforo, por exemplo: “indica atenção, devendo o condutor parar o veículo”. Penso eu que o sinal amarelo do semáforo diz muito sobre nós enquanto seres humanos.
Esqueçamos a madrugada, quando existem bons motivos para não se parar o carro: no dia a dia do trânsito, a grande maioria dos motoristas, ao invés de frear o veículo ao avistar o sinal amarelo, acelera ainda mais, para ganhar, quem sabe, dois ou três minutos, por serem gastos no próximo congestionamento (geralmente um pouco mais a frente).
Diz no Código que os cruzamentos são, de longe, o local mais perigoso do trânsito, e onde ocorrem a maioria dos acidentes. Um acidente de trânsito, ainda que não acarrete mortes ou ferimentos graves, ainda que não acarrete ferimento algum, no mínimo vai acarretar a perda de várias dezenas de minutos pela espera da polícia, registro da ocorrência, acionamento do seguro, etc. Ainda assim, a grande maioria prefere arriscar e fincar o pé no acelerador no momento em que veem um sinal amarelo.
É como se o motorista dissesse, na verdade, assim: “seja esperto e acelere para ganhar tempo, você deve estar com pressa não?”.
Um dia visitei Brasília e fiquei boquiaberto com o fato de lá ser comum os carros pararem para os pedestres atravessarem nas ruas de pouco movimento, ainda que fora da faixa. Me perguntei quanto tempo e quantas gerações seriam necessárias para que a população de Rio e São Paulo fosse educada da mesma forma. Não é quase um milagre isto que ocorre em Brasília?
Há uma filosofia no C.T.B. que me parece muito interessante: os elementos mais frágeis do trânsito tem preferência de passagem sobre os mais fortes. É assim que os pedestres tem preferência sobre todos os demais, tirando os trens, porque um trem demora muito tempo para frear e as viagens seriam inviáveis se os trens tivessem de parar para dar passagem aos pedestres a atravessar os trilhos. E também, penso eu, porque um trem nada mais é do que um conjunto de pedestres viajando em comboio.
Outro dia sonhei que Lao Tse havia deixado de lado o seu carro de bois e resolveu atravessar a cidade num carro popular...
Sempre que via um pedestre esperando para atravessar a rua, ele freava, não importa aonde nem quem vinha atrás.
Ora, quem vinha atrás apressado o xingava dos nomes mais chulos, mas ele estava mais interessado no olhar de gratidão daquele que obtinha sua chance de travessia.
Com o tempo, os pedestres se reuniram e compraram um ônibus de turismo para que Lao Tse pudesse mostrar a cidade aos que chegavam. E sempre que via um de nós querendo atravessar, parava e nos saudava. Os turistas, que já não estavam assim tão apressados, foram se encantando pela gentileza daquele distinto condutor.
Passaram os anos e ele se tornou uma celebridade local (para o seu profundo desgosto). Até em capa de jornal apareceu. Depois resolveram lhe dar um trem para que ele fizesse uma viagem por todo o Brasil, saindo de Manaus e chegando na Central do Brasil (lembre-se de que era um sonho)...
Não era trem bala. De fato, a viagem lavava meses, pois Lao Tse gostava de parar em cada cidadezinha e conversar com seus habitantes, conhecer a comida, jogar dama nas pracinhas... Ainda assim muita gente gostava da viagem, quem não era aposentado tirava todo o mês de férias para acompanhar um trecho dela, sem saber ao certo onde teria de parar para pegar um ônibus e um avião para casa.
Dizem que no território nacional a velocidade máxima de qualquer automotor é de 110 quilômetros por hora, mas Lao Tse era um maquinista especial, e ganhou do Imperador de Jade um trem de pura luz.
No final do sonho, todos viajaram com ele para a Eternidade. Foi aí que eu acordei.
Ainda não sei dirigir, mas na teoria, ah! na teoria eu já dei várias voltas pelo mundo.
***
Crédito da imagem: Google Image Search
Marcadores: contos, contos (91-100), Cotidianos, existência, Lao Tsé
4 comentários:
Sou desses. Também demorei a aprender a dirigir. Até hoje, digo que não gosto de dirigir, mas de SABER dirigir. Gosto mesmo é de ser passageiro, o mundo parece ficar mais disponível a você pela janela...
A propósito, próxima vez que estiver em Brasília avisa... :D
Abs!
Heh, aviso sim, mas é difícil de eu ir... Da vez que fui foi a trabalho mesmo.
***
Não sei se chegou a anda no Trem de Prata que fazia Rio-SP até meados da década de 90, mas eu fui quando criança e era espetacular. Ia beeeem mais devagar que o ônibus (que o avião, nem se fala), mas você podia ir observando a paisagem toda (que era bem mais interessante tb por passar longe das rodovias).
Abs!
raph
A minha experiência com trem foi na Maria fumaça em Tiradentes. Não lembro detalhes, mas sei que foi bem agradável. Lembro de ter tocado a sineta, ou tirado uma foto fazendo que tocava. Nasci e morei no Sul de Minas até os três anos, devo ter andado nessa época tb. Se andei, estou certo que foi inesquecível!... :)
Este texto critica o transporte no Brasil, mas julgo que fala bem da sensação de ser passageiro... em trens.
http://www.forjauniversal.com/2013/como-explicar-o-brasil-para-um-italiano/
Sim, também não tenho perspectiva de passar em Campo Grande, mas se eu passar eu aviso... :D
"E para acrescentar embaraço a essa nossa inadequação, a solução ferroviária italiana não se limita a unir as grandes cidades. Na estação de um centro urbano relativamente grande, como Torino ou Florença ou Gênova, você pode muitas vezes comprar num gesto só (no guichê, ou numa máquina automática que fala a língua dos cartões de crédito) os dois ou três bilhetes que vão te deixar (uma ou duas baldeações depois) numa cidadezinha perdida num vale remoto. Digamos, Barga, que é uma pérola. Ou Piazza al Serchio, que fica a dois passos do paraíso. Ou Equi Terme, pendurada sobre uma rocha acima de um rio verdíssimo, como uma ilustração de Tolkien. Lugares pequenos e muito, mas muito fora de mão, mas a que você chega meramente pisando de um trem a outro."
Isso em Minas Gerais seria uma maravilha!
Pena que o Governo não está nem aí...
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