Festa estranha
Quando se passa anos divulgando textos espiritualistas pelos quatro ventos, é inevitável que surjam dúvidas e curiosidades acerca de quem os escreveu, de que forma, com que propósito, etc.
Eu tenho há muito tempo me protegido pelo personagem – ou máscara – de mim mesmo, uma prática que uso desde cedo, e que certamente faz parte do toque “impessoal” que dou a maior parte de meus artigos... Já se muitas de minhas poesias revelam-me mais do que gostaria, sempre posso recorrer à solução de Pessoa, e dizer que “o poeta é um fingidor”.
Faço isso não por algum desejo de ludibriar os leitores, muito pelo contrário – exatamente por um desejo de ser o mais sincero possível. Todo médium, exu, ou artista que compreende de onde vem a maior parte de sua inspiração, sabe que o que importa é a informação passada adiante, a luz que veio e refletiu-se de alguma forma incerta. Quanto mais nos “intrometemos” entre a luz e quem a observa, mais corrompemos sua luminosidade. Borges chegava quase a se desculpar por ter sido através dele que seus textos chegaram, e não através de outro escritor – ele sabia, era tão somente o mensageiro.
Por outro lado, há um desejo genuíno de se saber como alguém que, por alguma razão, escreveu algo que nos tocou a alma, chegou a tal compreensão. Ainda há outros que duvidam, e sentem que em alguns de meus textos sua dúvida quase encontrou algum porto seguro onde atracar – e gostariam muito de saber como diabos eu, o autor, chegou a acreditar, chegou a ter certeza de certas coisas estranhas.
Devo alertar que não tenho certeza de quase nada. As duas únicas certezas que nasceram comigo nesta vida foram as da existência de Deus e de que esta vida não é a única vida... Em todo caso, ter certeza de Deus não me foi de tanta valia se a maior parte das interpretações de Deus que conheci durante a juventude me soaram falhas e muitas vezes absurdas; Já tudo que a certeza de que esta não era a única vida me trouxe, a princípio, foi uma crença arraigada de que eu era, de alguma forma, louco. Ou eu era louco, ou quase todos os outros eram – pois sua interpretação de vida após a morte, de um Céu de Ócio e de um Inferno de Dor, era para mim ainda mais absurda do que a visão de um deus Senhor dos Exércitos.
Então eu tive de buscar muito, tive de esbarrar “por acaso” em livros dos sábios de outrora. Tive de chorar novamente quando revi a cena em que Sócrates bebe cicuta, tive de uma vez mais ouvir a Divina Canção de Krishna, ainda novamente deixar que as rodas percorressem os velhos sulcos do Tao... E, finalmente, uma vez mais morri junto com o Cristo, e renasci em seu novo mundo – o reino de Deus, este mundo.
Mas apenas o conhecimento, apenas reler o que já li tantas vezes, não era o suficiente... Eu também precisava praticar, investigar, ir aonde coisas estranhas ocorrem, participar de festas, entoar canções, sentir as inúmeras formas com que as almas têm se comunicado entre este e o outro lado do véu.
Também me inteirei do que a ciência tem descoberto, e me maravilhei... Ora, mesmo nos mundos desconhecidos dos átomos a natureza faz questão de derrubar quaisquer esperanças que tínhamos de obter uma certeza que fosse... Não sabemos, não podemos saber, teríamos de escolher: ou conhecer a posição de algo, ou a velocidade de seu movimento. E tal dança em turbilhão se estende também a todo o espaço-tempo: um tecido estranho que surgiu de algum ponto singular, e tem se expandido ad infinitum, nos carregando em torno de nosso pequeno Sol como o vendaval carrega um graveto (e nós somos apenas a formiga com as garras fincadas na madeira).
Esta será, portanto, a descrição da festa estranha. Uma série de contos onde procurarei narrar episódios de minha própria vida, esta vida, particularmente os da juventude... Através da narração de minhas buscas espirituais, espero poder demonstrar como passei a ter uma certa convicção de que coisas estranhas afinal realmente existem – o que não significa que as compreendemos por completo, ou que nalgum dia iremos compreender (ao menos, enquanto homens ou mulheres).
Longe de mim querer afastar o seu ceticismo. Toda dúvida é divina. A única certeza não é a morte, mas o mistério da vida – o paradoxo de uma existência a girar como calha de roda em torno da eternidade de um único momento, este estranho momento.
Para assegurar que não confiem facilmente no que lhes trarei, devo alertar sobre as regras do jogo: pelo menos um dos próximos contos (ou um em cada dez, se eventualmente chegar a escrever tantos) será absolutamente falso, uma descrição de algo que nunca ocorreu... Os mais atentos saberão, talvez, que se trata de algo absurdo em termos espiritualistas. Mas os mais atentos estão de plena posse de sua dúvida divina, e essa regra não é para eles, mas para os que se deixam levar facilmente por ideias alheias.
Finalmente, existe a questão do “porque afinal, escrever?”. Porque se esforçar? Porque querer ditar o rumo a seguir? Bem, eu não dito rumos, apenas aponto para certos caminhos por onde a carroça de Lao Tsé passou, e que parecem os mais convidativos, ou pelo menos os caminhos onde sofreremos menos. Já sobre “o escrever”, o faço primeiramente para organizar minhas próprias ideias, para só então ter alguma condição de poder passar adiante alguma luz que tenho certa confiança de que servirá para a melhora, e não para a piora.
Hoje melhor do que ontem, amanhã melhor do que hoje. Eu escrevo para melhorar a vizinhança. Quanto melhor a vizinhança, melhor o condomínio. Um dia, todos sairemos do condomínio fechado para o oceano do Cosmos. Até lá, terão sido muitas festas estranhas... Estas são só algumas delas.
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Crédito da foto: Brooke Fasani Auchincloss/Corbis
Marcadores: ceticismo, contos, contos (31-40), espiritualidade, existência, festa estranha, Rafael Arrais
6 comentários:
Olá Raph!!
Pensei que ia começar já o jogo, fiquei procurando!haha
Acho muito válido dividir conosco como vieram as inúmeras dúvidas e algumas conclusões. Com certeza é um processo que leva a vida inteira e muitas outras que estarão por vir. Realmente são muitas lições para serem aprendidas neste pouquinho tempo que passamos na morada Terra.
Assim como você, sou permeada de dúvidas e parece que os esclarecimentos nunca bastam...também oscilo entre o sentir este algo "maior que nós" de forma genuína e verídica e não sentir nada...acredito que a capacidade do "perceber" também tenha relação com o quanto estamos abertos a "receber", sejam as experiências sensoriais ou ainda o conhecimento científico.
Enfim, estou ansiosa para os próximos textos que abordem este tema, e parabéns por deixar a mostra essa "nesga pessoal" haha!
bjs
Yara
Oi Yara,
Obrigado pelo carinho... Acho até que você particularmente vai gostar muito da próxima "festa", onde provavelmente irei falar sobre quadrinhos, RPG e mitologia - bem, eu não sei se será a próxima, mas se não for será a imediatamente posterior, depende da inspiração de quando sentar pra escrever uma "festa" de novo :)
A dúvida sem dúvida faz parte de um mundo em constante mudança. Mas quando mergulhamos num pedacinho de piscina da eternidade, não há nada a temer, nem nada a duvidar - pois não há nada a se pensar, apenas a se sentir!
Bjs
raph
Oi, aqui é o Rafael, o Espinoza...
Xará, estou cada vez mais impressionado com o seu blog...às vezes parece que foi escrito para mim, hehe
Essa questão da dúvida...têm momentos que ela parece me dilacerar...eu sei, eu sei, deve ser o moto que me empurra a buscar mais e mais, mas às vezes me pego exausto, louco para desistir, voltar ao materialismo palpável, sem rumo, sem nexo, ao acaso puro e simples...e então me lembro novamente que este ponto de vista tampouco resolve este problema...da dúvida.
A minha relação com a dúvida....tem sido muito intensa desde que me lembro consciente.
Quando criança, minha espiritualidade estava OK (nos olhos de hoje, semi-OK) pois, bastante influenciado pela avó católica, sua fé fervorosa não deixava dúvidas da existência de um poder divino. Ela, apesar de simples mulher, tinha uma mente evoluída o suficiente para ser uma pessoa deste mundo, sem os aparentes exageros dos crentes tão radicais e desatualizados. A postura dela me servia para linkar a espiritualidade com a realidade do nosso mundo. Eu era capaz de ir a uma missa e rezar com sinceridade, sem desconfiar de que minhas palavras ou pensamentos estavam sendo desperdiçadas em vão ao vento. Mas...
Um dia ela morreu, outro dia eu adolesci. Os sentidos, a matéria, as experiências, as possibilidades, sem que eu percebesse sepultaram a religião e afastaram a espiritualidade. Não obstante, minha relação com a beleza artística permaneceu, principalmente pela minha paixão por música e cinema. Depois, veio a ciência. Ela me seduziu. A Filosofia mostrava uma linha evolutiva de pensamento, sempre acompanhada de poesia. A Física era implacável, elegantemente racional. Li Nietsche e assisti Carl Sagan e bastou para me maravilhar com o poder do tempo e do acaso...que é como os ateus concebem Deus: tempo e acaso...
Mas a mecânica quântica lançou uma equação muito capciosa ao sistema: a matéria não era bem matéria; o que percebemos e medimos é uma espécie de ... ilusão!! Isso mudava tudo! (E aparentemente, textos esotéricos remotíssimos já diziam isso...) Mas a dúvida primordial, que me acompanhava desde a tenra infância, estava ainda latente, subjacente. Nunca havia sido uma dúvida espiritual, isso praticamente não me dizia respeito. Mas sim uma dúvida causal, básica, uma dúvida sobre o mistério da realidade, da consciência, do tempo e do não-tempo, do espaço e do não-espaço, do inicio e do fim, enfim, de Deus.
Mas então, o tal mundo espiritual veio a se somar no já grande oceano de dúvidas.
A morte da minha mãe e uma série de subseqüentes acontecimentos sutis acabou por me por em contato com toda essa imensidão de informação “oculta” que me despertou e me colocou num caminho de aprendizado e busca ao auto-conhecimento. Sem que eu percebesse (outra vez) a espiritualidade floresceu e me vi observando minhas emoções e percebendo minhas vibrações. Uni a isso, racionalmente, as evidências documentadas ao longo da história e o paradoxo misterioso onde o esoterismo fornece melhores explicações do que a ciência para me tornar, partindo de uma quase-ateísmo, a um buscador sincero. Mas um buscador de quê mesmo?
Confesso que almejei ter as mesmas certezas que tu mencionastes. E não ter estas certezas e se dizer espiritualizado seria quase que um paradoxo, uma incoerência. É essa dualidade que por momentos testa os limites do meu raciocínio e da minha fé. E atribuo grande parte desse meu dilema a não ter tido nenhuma experiência objetiva referente ao chamado mundo espiritual. Nesse momento, era tudo que eu gostaria...
...os ensinamentos dizem que estas experiências vêm com o tempo aliado à prática de disciplina mental e transformação do ego, mas por vezes me pego preso à armadilha do ceticismo e não confiar totalmente a ponto de ter a paciência de levar este projeto até ele das resultados...
Desculpe pelo longo desabafo e por eventuais confusões mentais...os teus textos têm sido o melhor remédio para o meu caos. Abraço
Oi Rafael,
Bem, o meu pai gosta muito de arte renascentista e escolheu meu nome em homenagem ao Rafael Sanzio, provavelmente um dos pintores mais virtuosos da história da arte... Já Espinosa foi um grandioso filósofo.
Então acho que seu próprio nome de repente já traz uma boa ajuda. Da arte: me parece que já a encontou.
Já da filosofia: se pegar, por exemplo, o "Ética" de Benedito Espinosa para ler, verá que já no primeiro capítulo ele concebe a existência de Deus pela pura lógica ("uma substância que não pode criar a si mesma, e que gera tudo o mais"). Tudo bem que pode ser um Deus impessoal, panteísta, mas ninguém disse que seria fácil compreendermos Deus.
Você disse que "leu Nietsche e assistiu Carl Sagan e bastou para me maravilhar com o poder do tempo e do acaso...que é como os ateus concebem Deus: tempo e acaso..." - mas por acaso já leu o "Contato" de Sagan, ou viu no cinema? Sagan era agnóstico (não ateu), e certamente profundamente espiritual. No livro ele chega a sugerir que Deus havia deixado uma marca "matemática" de sua existência no próprio pi (a constante matemática), o que é uma ficção, claro, mas demonstra que mesmo Sagan o buscava... Na natureza.
Além disso, outra cena de "Contato" é bastante interessante:
A viagem "mística" de Sagan
Já Nietzche, penso eu, apenas afirmou o que Espinosa já havia descoberto: que "deus" está morto. Isto é, o deus bíblico, o Senhor dos Exércitos, o que "barganha" diretamente com os homens... Mas o Deus Cósmico, o Deus que habita o Super Homem, esse não pode morrer, visto que nunca nasceu... Ele é o grande mistério, o grande desconhecido:
A Oração ao Deus Desconhecido
Antes de prosseguir em meu caminho
e lançar o meu olhar para frente uma vez mais,
elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas de meu coração,
tenho dedicado altares festivos para que, em
Cada momento, Tua voz me pudesse chamar.
Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras:
“Ao Deus desconhecido”.
Seu, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos sacrílegos.
Seu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo.
Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servi-lo.
Eu quero Te conhecer, desconhecido.
Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida.
Tu, o incompreensível, mas meu semelhante,
quero Te conhecer, quero servir só a Ti.
-- Friedrich Nietzche (traduzido do alemão por Leonardo Boff)
Espero que possa te ajudar na busca :)
Abs!
raph
MAs veja, sobre Nietzsche, na wikipedia:
"Nietzsche, sem dúvida considera o Cristianismo e o Budismo como "as duas religiões da decadência", embora ele afirme haver uma grande diferença nessas duas concepções. O budismo para Nietzsche "é cem vezes mais realista que o cristianismo" (O anticristo). Religiões que aspiram ao Nada, cujos valores dissolveram a mesquinhez histórica. Não obstante, também se auto-intitula ateu:
"Para mim o ateísmo não é nem uma consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo por instinto"(Ecce Homo, pt.II, af.1)"
Sim a crítica dele era endereçada as religiões institucionalizadas, as igrejas, as eclésias, e no seu contexto de época o Cristianismo era seu maior representante.
Ser ateu também é ser contra a religião estabelecida, adorar um deus diferente. Jesus e Sócrates foram acusados de ateísmo, assim como o próprio Espinosa que foi excomungado do judaísmo pela acusação de ser ateu.
Agora, lendo o primeiro capítulo da "Ética", fica muito difícil imaginar que Espinosa era ateu.
Em todo caso, esse poema de Nietzche foi escrito quando ele era ainda bem jovem, e muito provavelmente inspirado por sua relação com o paganismo/ocultismo... Também é possível que ele tenha se tornado descrente de qualquer deus na fase mais adiantada da vida. Em todo caso, não acredito que fosse destituído de profunda espiritualidade (como fica atestado em "Assim falou Zaratustra").
Abs
raph
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