É preciso transver o mundo
“A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.”
O poeta responsável por tais linhas é brasileiro, nascido nalgum canto do Pantanal (real e/ou inventado), e só começou mesmo a fazer sucesso perto da terceira infância, em seus sessenta e poucos anos. Mesmo assim, diz que nunca viveu de poesia, já que a poesia é uma coisa inútil. Manoel de Barros viveu a poesia em seu estado mais bruto: o sentimento puro. Manoel se deleitava em ser um vagabundo para o mundo, e um manobrista da linguagem, um fraseador, um descascador dos frutos das emoções. Este documentário fala sobre tais cascas:
Só Dez Por Cento é Mentira (2008) é um original mergulho cinematográfico na biografia inventada e nos versos fantásticos do poeta sulmatogrossense Manoel de Barros. Alternando sequências de entrevistas inéditas do escritor, versos de sua obra e depoimentos de “leitores contagiados” por sua literatura o filme constrói um painel revelador da linguagem do poeta, considerado o mais inovador em língua portuguesa. Só Dez Por Cento é Mentira ultrapassa as fronteiras convencionais do registro documental. Utiliza uma linguagem visual inventiva, emprega dramaturgia, cria recursos ficcionais e propõe representações gráficas alusivas ao universo do poeta.
O documentário que trazemos abaixo é extraordinário, e vai muito além de uma mera entrevista com o poeta que recentemente encerrou seus dias no Mato Grosso do Sul; se trata de uma obra altamente original que transpira as emoções genuínas da infância e da vida pacata, tão presentes nos poemas de Manoel.
No entanto, um dos comentários do vídeo no YouTube retrata o conjunto da obra melhor do que qualquer texto que eu pudesse lhes trazer aqui. O comentário é de Camelo Bike Tour:
Estou em luto, mas não triste.
O meu poeta favorito que usava borboletas, gostava de vazios, pedras, rios e sapos, seguiu quinta-feira passada seu caminho (13/11/14), tornou-se aquilo que tanto amou – virou natureza.
O poeta administrava o à-toa como ninguém e possuía outras habilidades inigualáveis – era árvore, sabia como amarrar o tempo no poste, fotografar o silêncio, e quase sempre achava o que não procurava. Ele tinha olhar de passarinho, imagine!
Morava em quintais, preferia coisas desimportantes, e talvez por isso tenha conseguido perceber o óbvio, que de tão manifesto ninguém enxerga, como na frase que eu adoro – “Sapo é um pedaço do chão que pula.”
Com praticamente 98 anos, completaria agora dia 19 de dezembro, costumava dizer que só tinha tido infância e, portanto, tudo o que escrevia era “apenas” sobre ela. Ele sempre soube que os objetos não se restringiam a seu significado literal, ao rigor da letra – “palavras que me aceitam como sou, eu não aceito”. “As coisas não querem ser vistas por pessoas razoáveis”, “Há várias maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”, dizia.
Não posso estar triste, afinal nasci no mesmo país deste artesão das palavras, um gênio contemporâneo que se dizia poeta em tempo integral – “Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às seis horas da tarde”.
Manoel de Barros usava a palavra para compor o silêncio que sempre fará muito barulho dentro de mim. Estou contente pois ele voltou à Gaia, à terra, voltou a ser poeira de estrela e como tal se espalhará por todos os lugares.
Muito obrigado, por fazer tanto e ainda se achar incompleto, poeta!
“O ser biológico é sujeito à variação do tempo, o poeta não” (Manoel de Barros)
***
Crédito da foto: Divulgação/Família Barros
Marcadores: arte, linguagem, Manoel de Barros, natureza, poesia, videos
9 comentários:
Por gentileza, alguém poderia esclarecer a expressão: "Arte não tem pensa". Desde já, obrigado
Significa algo como "a arte não tem pensamento", isto é, racionalidade, mas sim emoção, sentimento. Também pode ser um trocadilho com "a arte não tem pressa". E sim, Manoel de Barros costumava "inventar palavras" de vez em quando :)
Abs
raph
Olá Raph! Pelo que vi somos fãs do Manoel de Barros. Fui eu quem escreveu o comentário quando do falecimento do grande escritor. Estava lendo o seu texto, porque gosto mesmo do que versa sobre a poesia dele e me deparei com o texto. Camelo Bike Tour é uma empresa onde também atuo. Uma pena não estarem mais disponibilizando alguns videos dele. Um abraço e muito obrigado.
Olá Graco, muito obrigado por vir assinar seu próprio texto. Se quiser, comente seu nome completo que posso incluir lá em cima no texto original :)
Vou ver se consigo achar alguma versão ainda disponível online deste documentário.
Abs!
raph
Conhecendo o poeta, transvendo a poesia...me encantando !
Cada poeta e um universo com galaxias, constelações, signos: descobrir Los é um ato de fé que transcende, como seu Manuel faz (poetas não morrem!)e nos faz transcendentes!
que paixão...outro sentido para a vida... há se todos fossem um pouquinho, peixe, pássaros e arvores, e Manoel de Barros está entre rios de vidros, ventos que tem rabos, pássaros sem asas, cores que voam.... e nós? olhares enviesados para transver mundos!
Amoooo Manoel de Barros!
que maravilha ver perguntas (respondidas) sobre dúvidas comuns, que também me preocupam. sinal que existe, não muito longe de nós, algo que nos acomuna: a afinidade como seres humanos e como parte de um todo que acarinhamos
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