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19.3.15

A educação de Casanova, parte final

Texto recomendado para maiores de 16 anos.

« continuando da parte 9


10.

Quando se está a deriva em águas profundas, nunca se sabe até onde as correntes marinhas podem nos levar. Eu tentei nadar em direção a Janaína, mas subitamente percebi, enroscadas em meus tornozelos, as amarras que me atavam as profundezas. Neste momento tive medo, muito medo, mas criei coragem e olhei uma vez mais em direção à superfície, onde minha amada já desaparecia junto com os últimos reflexos da lua. Não sei bem como, mas mesmo lá no fundo, gritei com toda a vontade do meu pensamento:

“Meu amor, me ajude!”

E percebi, deslizando pelas águas fundas, um estranho brilho reluzente de alguma espécie de lâmina... Mas isto foi só por um breve momento, depois fui tragado pelas profundezas...

Lá no fundo, escuro como a noite eterna, vislumbrei e relembrei não somente quem havia sido, mas todos os homens que fui, desde antes das civilizações mais antigas de que a história já teve notícia.

Me vi como uma espécie de símio que ainda mal conseguia se colocar de pé. Meu plano de visão era totalmente terrestre, e eu ainda tinha de caçar os animais, ainda tinha de me alimentar de carne crua e cheia de sangue...Como podíamos viver sem contemplar as estrelas? Como sobrevivemos a tudo isso? Como, mesmo após tanto tempo, ainda aceitamos em nós alguns destes ecos animalescos do passado?

Ainda assim, em meio a tanto sangue e violência bestial, pude vislumbrar o despertar inesquecível do amor, da divina putaria... Pude ver como guardava a melhor parte da caçada para ofertar a uma fêmea ancestral. Pude ver como aquele jogo todo garantia que toda uma espécie pudesse não somente sobreviver num mundo selvagem, como lentamente, bem lentamente, aprender a caminhar de pé, e ver o céu, o sol, a lua, e todas, todas as estrelas da noite sem fim!

E subitamente, ao compreender como uma lótus tão bela podia nascer de um lamaçal tão denso, abri os olhos e percebi os parcos reflexos na lâmina cravada no fundo do mar. Aquela espada estranha era o presente de Janaína, mas a luz que conseguia adentrar tamanha profundidade era o presente do sol. Me senti seguro e reconfortado, mesmo indo tão fundo em mim – não há nada mais fundo do que Deus.

Criei forças para apanhar a lâmina, e com ela dilacerei todas as amarras que me prendiam ao passado. E, ao finalmente me livrar delas, tive uma clara revelação de tudo o quanto foi amor, e tudo o quanto foi bestialidade, não só na minha história, como em toda a história humana. Mas então já não sabia mais quem eu era, “Casanova” era agora tão somente um nome, uma casca que se desprendeu de algo muito maior, maior do que o mundo, maior do que qualquer coisa que alguém já pensou, imaginou ou calculou... A imagem daquilo que é lembrado para sempre, o eixo no qual gira tudo o que é, foi ou será...

Como um herói épico renascido, um mito renovado, nadei para a superfície do oceano, e me ancorei novamente no Campo do Leblon. Aquela praia continuava sendo a mesma, como qualquer outra praia do mundo, mas agora eu já não era o mesmo, agora eu enxergava as coisas como são.

Vinha nascendo a manhã, e Janaína havia desparecido por completo. Pouco importa, eu tinha todo o tempo do mundo para reencontrá-la... Finquei sua espada na areia (talvez alguém mais venha a precisar dela) e me sentei para observar o movimento do Cosmos:

Na beirinha, algumas crianças brincavam de construir castelos de areia e colecionar conchas. Os pescadores já vinham com suas redes e suas jangadas, apressados, mas a gurizada criava seus próprios barquinhos com as folhas secas que trouxeram das florestas.

Os pescadores arremessavam suas redes e conseguiam alguns peixes. Os barquinhos eram esfacelados pelas ondas, assim como os castelos... Mas as crianças não se importavam, elas já tinham inventado outras brincadeiras há essa altura.

Quanto milagre para um dia!

De fato, à partir daquele dia, não se passou um só momento em que não me sentisse profundamente excitado pelo simples fato de o vento passar, e as relvas farfalharem, e eu poder escutar a brisa, e sentir toda essa dança de vida que a grama faz.

Assim, nesta tranquilidade que se basta em si mesma, lembrei do que Dunia havia me segredado aos ouvidos, e que lhes disse que não poderia falar... Bem, agora eu posso, agora esta história está no fim, e não sou mais responsável por ela. Eis o segredo:

“Ninguém é capaz de gozar de olhos abertos.”

 

FIM

 

***

Esta foi a décima e última parte de A educação de Casanova, por raph em 2015.
Comece a ler do início


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