Minha vida, por Oliver Sacks

Texto de Oliver Sacks para o New York Times. Tradução de Eduardo Pinheiro. Os comentários ao final são meus.
Um mês atrás, parecia que eu gozava de boa saúde, poderia se considerar até mesmo excelente. Aos 81 anos de idade, ainda nado 1500 metros por dia. Mas minha boa fortuna já havia se esgotado – algumas semanas atrás fiquei ciente de que tenho múltiplas metástases no fígado. Nove anos atrás descobrimos que eu tinha um raro tumor no olho, um melanoma ocular. Ainda que a radiação e o uso de lasers para remover o tumor me tenha deixado cego daquele olho, apenas em casos muito raros tumores deste tipo fazem metástase. Ainda assim, estou entre os 2% que não têm sorte.
Sinto gratidão pelos nove anos de boa saúde e produtividade desde o primeiro diagnóstico, mas agora me deparo com a morte. O câncer ocupa um terço de meu fígado, e embora seu avanço possa ser desacelerado, não há como parar esse tipo particular de câncer.
“Neste momento me deparo com uma dissolução muito rápida,” escreveu ele. “De minha condição, sofro muito pouco com dor, e o mais estranho é que, não obstante a grande derrocada de minha compleição, nunca cheguei a sofrer um momento sequer de esmorecimento do humor. Mantenho o mesmo ardor de sempre pelo estudo, e a mesma alegria na companhia dos outros.”
Tenho sorte de passar dos 80, e os 15 anos que superaram as seis décadas e cinco anos de Hume me foram igualmente plenos de trabalho e amor. Nesse período publiquei cinco livros e completei uma autobiografia (um bocado maior do que as poucas páginas de Hume) a ser publicada nessa primavera; tenho vários outros livros quase prontos.
Hume continuou, “Sou ... um homem de disposições brandas, em comando do meu próprio temperamento, de humor aberto, social e alegre, dado ao apego, mas pouco suscetível à inimizade, e de grande moderação em todas minhas paixões.”
Nisso não sou como Hume. Embora eu tenha vivido relacionamentos amorosos e amizades, e não tenha inimigos verdadeiros, não posso dizer (nem ninguém que me conhece diria) que sou um homem de disposição branda. Pelo contrário, sou um homem de disposição veemente, de entusiasmos violentos, e extremamente desprovido de moderação com relação a todas as minhas paixões.
Ainda assim, uma frase do ensaio de Hume me é marcante como especialmente verdadeira no meu caso: “É difícil”, escreveu ele, “alguém ter mais desapego pela vida do que neste momento.”Ao longo dos últimos dias, tenho sido capaz de ver minha vida como se de uma grande altitude, como uma espécie de paisagem distante, e com um sentido aprofundado da conexão entre todas as partes. E isso não significa que minha vida acabou.
Pelo contrário, me sinto intensamente vivo, e quero e espero que no tempo que me sobra que eu aprofunde minhas amizades, diga adeus para aqueles que amo, escreva mais, viaje se tiver a força, e alcance novos níveis de entendimento e discernimento.
Isso demandará audácia, clareza e conversas diretas; tentar acertar minhas contas com o mundo. Mas haverá tempo, também, para alguma diversão (e até mesmo para alguma bobeira, sem dúvida).
Repentinamente me sinto possuidor de um foco muito claro, e de perspectiva. Não há mais tempo para nada que não seja essencial. Preciso focar em mim mesmo, no meu trabalho e nos meus amigos. Não vou mais assistir o jornal na TV todas as noites. Não vou mais prestar atenção para política ou para argumentos sobre aquecimento global.
Não se trata de indiferença, mas de desapego – ainda me importo muito com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com o crescimento da desigualdade, mas estas coisas não estão mais na minha alçada; pertencem ao futuro. Regozijo-me ao encontrar jovens capazes – até mesmo aqueles que fizeram minhas biópsias e diagnosticaram minhas metástases. Sinto que o futuro está em boas mãos.
Não posso fingir que não tenho medo. Mas meu sentimento predominante é a gratidão. Amei e fui amado; ofereci muito, e recebi algo em troca; li, viajei, pensei e escrevi. Comuniquei-me com o mundo com a comunicação especial dos escritores e leitores.
Acima de tudo, tenho sido um ser senciente, um animal pensante, nesse belo planeta, e isso por si só foi um enorme privilégio, e uma aventura.
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Comentário
O neurologista Oliver Sacks costuma referir-se a si mesmo como um “cientista romântico”, ele acredita que a mente não pode ser descrita de maneira mecanicista, e que a neurologia moderna só será completa quando considerar a forma icônica e sentimental com que experienciamos a consciência e armazenamos nossas memórias. Seus livros são verdadeiros dramas, descrevendo casos neurológicos sempre no contexto da vida e experiência pessoal de cada paciente. Muitos desses casos são devastadores, e somente a habilidade com a escrita (ele tem vários bestsellers no mundo todo) do autor faz com que a leitura seja pouco menos impactante do que um soco no estômago...
Sacks faz questão de destacar que cada doença é uma história, principalmente em se tratando de doenças da mente, algo ainda tão desconhecido, tão distante da visão mecanicista da ciência moderna. Em muitos casos as habilidades perdidas são compensadas por novas habilidades ganhas, o que fica muito bem explicado nos diversos casos de autistas savants descritos em seus livros – e principalmente no caso de Temple Grandin (tema principal do seu livro mais conhecido, Um antropólogo em Marte).
Sua partida será sentida por todos os seus leitores, amigos, pacientes e familiares, mas ele não será esquecido, pois viveu muito além das fronteiras de sua própria mente, e adentrou a vasta escuridão das mentes mais arruinadas, trazendo uma luz que vem muito mais do seu coração do que do seu conhecimento da medicina. Este sim, foi um curandeiro de almas, na acepção completa dos termos. Este sim, deixará imensa saudade. Este sim, cumpriu seu papel neste mundo.
E o que dizemos para seres assim? “Até a volta, Oliver, e obrigado por tudo!”
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Crédito da foto: Google Image Search/Divulgação
Marcadores: autores selecionados, autores selecionados (161-170), espiritualidade, existência, Hume, morte, neurologia, Oliver Sacks
1 comentários:
Belíssimo texto. Me pergunto se não estamos negligenciando nossas percepções reais do mundo, se não estamos distorcendo nossos reais potenciais que poderiam ser desenvolvidos antes que um câncer nos faça ressurgir como viventes reais de sonho.
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