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13.7.15

Entre a esquerda e a direita: os comentários (parte 5)

Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo responderam minhas perguntas, e agora estou comentando os assuntos abordados. Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.

De Obelix a Rasputin
Gérard Depardieu afirmou recentemente que “está pronto para morrer pela Rússia, pois lá as pessoas são fortes, e não tolas como os franceses”. Ele não estava brincando. Apesar de ter nascido na França, desde 2013 adquiriu a cidadania russa, e abandonou definitivamente sua terra natal.

O premiado ator, muito lembrado por sua atuação como Obelix nos filmes de Asterix, na verdade não parece ter nada contra a cultura francesa em geral, mas sim uma enorme preocupação com os seus rumos políticos. Na prática, o que fez Depardieu abandonar os papéis frugais franceses e encarnar russos mais misteriosos, como o místico Rasputin, foi algo um tanto quanto prático: ele queria pagar menos impostos.

Apesar de ter origem humilde, Depardieu fez fortuna como astro do cinema europeu. Mas não foi só: ele também se tornou um grande empreendedor, dono de diversos vinhedos e restaurantes, com cerca de 80 empregados em sua folha de pagamento.

A ironia da coisa toda é que Obelix se mudou da França para a Rússia para fugir do... socialismo! Ou pelo menos é assim que ele classifica a ideologia política do atual governo de François Hollande, e a sua proposta de taxar grandes fortunas. O projeto do presidente francês foi vetado pelo Tribunal Constitucional de seu país, mas somente a possibilidade de haver passado, e que todos os franceses com renda anual acima de um milhão de euros fossem taxados em 75%, já foi motivo suficiente para Depardieu rumar para Moscou, com o aval do presidente russo, Vladimir Putin.

Estima-se que na Rússia ele não vá pagar mais do que 13% de imposto, podendo chegar a míseros 6%! E depois dizem que a Rússia é comunista...

Mas este exemplo de “fuga fiscal” passa longe de ser exclusividade da França ou de um ou outro milionário. Não importa se tiveram origem humilde e se beneficiaram do estado de bem estar social de seus países natais, a maioria dos europeus que se tornam milionários rapidamente se tornam irredutíveis defensores de baixos impostos. Taxar as grandes fortunas, então, soa quase como um ato terrorista.

Aqui no Brasil, apesar de previsto na Constituição de 1988, o imposto sobre grandes fortunas nunca passou de um “princípio de discussão” no Congresso. E, mesmo assim, sempre que o tema surge na pauta, há um verdadeiro exército midiático preparado para jogá-lo a lona o mais breve possível. Mesmo em época de pleno ajuste fiscal, falar em taxar milionários, neste país, é a heresia das heresias.

Mas é preciso reconhecer que, de fato, já existem muitos impostos no Brasil. Sobretudo para os pobres...


O imposto do champanhe
No “país do futuro”, aquele que sonha em ser uma “Suécia tropical”, temos sim uma alta carga tributária, assim como um retorno pífio nos serviços públicos que deveriam garantir o tal bem estar social “sueco”, como saúde, educação e transportes. Isso faz com que aqueles brasileiros que se consideram “classe média”, e que pagam escola e plano de saúde particular para a família, reclamem que “precisam pagar duas vezes pelo mesmo serviço”: uma pelo serviço precário que o Governo não presta, e outra pelo serviço em si, via rede privada.

Ora, disso tudo todos vocês devem saber, afinal não falei nenhuma grande novidade. De fato, isso tudo não está inteiramente errado, mas tampouco inteiramente de acordo com a realidade do país... Uma realidade, aliás, que dificilmente é mostrada nas grandes vias da mídia. Vejamos, ponto a ponto, o que precisa ser “acrescentado” aos fatos do último parágrafo:

1. O que é a tal classe média brasileira
A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República determinou em 2012 que a classe média brasileira tem renda familiar per capta entre R$291,00 e R$1.019,00. Muitos de nós encaramos tais valores como absurdos, mas isso ocorre sobretudo porque temos visto muitos filmes de Hollywood. Ora, a renda da “classe média” de um país é sempre relativa à renda média de seus habitantes. Nesse caso, tais valores equivalem à renda de famílias que recém saíram da miserabilidade, e é isso mesmo o que eles refletem: que a maior parte da população brasileira é pobre, muito pobre, se comparada às classes médias dos filmes americanos.
É muito difícil que uma família brasileira que consiga pagar escolas particulares para os filhos, e planos de saúde privados, seja efetivamente de “classe média”. Segundo a média do país, seriam famílias de classe média alta, ou ricas.

2. Nossos impostos são mesmo injustos, mas não da maneira que muitos imaginam
O que torna toda essa situação ainda mais grotesca é que, comparativamente a renda, é exatamente a tal classe média brasileira que arca com os maiores impostos, talvez os mais injustos de todo o planeta.
A taxa máxima do imposto de renda no país é de 27,5%. Nesse quesito, ainda estamos mesmo distantes de uma Suécia, onde ela pode chegar a 58%. Mas, da mesma forma, estamos abaixo de muitos países desenvolvidos, como Alemanha (51%), EUA (46%) e Coreia do Sul (41%), assim como de alguns de nossos vizinhos na América Latina, como Chile (45%) e Argentina (35%).
Ora, e como nossa carga tributária total é tão alta se nosso imposto de renda passa longe de estar entre os maiores do mundo? A resposta é o que torna nossos impostos tão injustos: os impostos indiretos, que são aplicados ao consumo (e não a renda).
É assim que vivemos num país onde um quilo de arroz ou feijão, uma geladeira ou fogão, e quase tudo o que há num supermercado, possuem impostos altíssimos e fixos, ou seja: tanto um milionário quanto um miserável pagam exatamente o mesmo imposto quando fazem as compras do mês ou precisam trocar um eletrodoméstico.

3. Para os ricos, há muitos impostos “simbólicos”
Segundo o abrangente estudo do economista José Roberto Afonso, A Economia Política da Reforma Tributária: o caso Brasileiro, somente o bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, arrecada mais com o IPTU, ou seja, o imposto sobre o patrimônio imobiliário, do que toda a área rural do país, com todas as grandes fazendas e latifúndios de terra (ver pág. 9 do estudo). É isso o que chamo de “imposto simbólico”, algo que existe basicamente só para os fazendeiros poderem reclamar que também pagam impostos. Ora, se isso fosse revisado e atualizado, a própria reforma agrária talvez ocorresse naturalmente, sem grandes conflitos além da chiadeira geral dos latifundiários.
É por uma razão muito parecida que pagamos o IPVA, o imposto sobre automóveis, enquanto jatinhos particulares, helicópteros e lanchas luxuosas jamais foram taxadas. Mesmo o nosso imposto sobre heranças é irrisório perto do que é praticado em boa parte do mundo.
Todo o nosso sistema tributário reflete o nosso passado de colônia e de grandes coronéis: se antes a carga pesada do trabalho recaía sobre os escravos, hoje algo muito parecido ocorre com a nossa carga tributária, que pressiona muito mais as camadas pobres da população, enquanto faz cócegas nos realmente ricos, ou nem isso...

Levando tudo em consideração, a nossa carga tributária sobre os ricos ainda é maior do que a russa, mas ao menos aqui Depardieu poderia pegar uma praia e tomar uma caipirinha, ao invés de curtir uma sauna siberiana. Em todo caso, é certamente mais vantajoso para um milionário viver no Brasil do que na Suécia ou na França, ao menos a nível de pura tributação sobre a renda.

Mas a pior notícia é que, a despeito da melhoria do padrão de vida dos nossos miseráveis nas últimas décadas, com o Plano Real e a distribuição de renda (trunfos dos governos tucanos e petistas, respectivamente), a triste realidade é que a carga tributária veio se tornando com o tempo cada vez mais injusta, isto é, aumentou como um todo, mas aumentou bem mais para as camadas mais pobres (ver pág. 9 do estudo).

E, se após décadas de governos que se dizem de esquerda ou centro-esquerda, não houve nenhuma reforma significativa que pudesse ao menos aplainar um pouco tanta desigualdade tributária, fica cada vez mais difícil imaginar que a nossa geração ainda verá um Brasil com impostos mais justos.

Mas em algum iate caríssimo, ancorado em alguma belíssima praia do nosso litoral, eles estão celebrando o “país do futuro”... Quanto será que pagaram de imposto no champanhe? Pouco lhes importa.

» Em breve, Zingales vs. Piketty...

***

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Crédito da imagem: Rasputin/Divulgação (Gérard Depardieu no papel de Rasputin)

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8 comentários:

Blogger Unknown disse...

Lembrando que a cesta básica foi completamente desonerada pelo governo federal, desde 2013:

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"Três meses após desoneração da cesta básica, itens beneficiados ficam mais baratos"

http://goo.gl/PzRC30

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"A presidente Dilma Rousseff anunciou, em pronunciamento oficial à nação, a desoneração de impostos federais de todos os produtos da cesta básica.
Com a medida, nenhum dos 16 produtos da cesta básica (eram 13 e foram acrescentados mais três) pagará tributos federais. O ICMS, imposto estadual, no entanto, continuará a ser cobrado."

http://goo.gl/54Gu2g

13/7/15 22:34  
Blogger Unknown disse...

E volto a insistir. A solução para todos os nossos problemas, é Auditoria da dívida pública.

13/7/15 22:36  
Blogger raph disse...

A desoneração da cesta básica, ainda que somente dos impostos federais, é sem dúvida um passo muito importante para tornar o sistema tributário mais justo... Pena que os estados ainda não puderam, ou quiseram, seguir o exemplo.

Já a auditoria da Dívida Pública é algo que optei por não incluir nos comentários, devido a complexidade do tema, mas recomendo a todos que se informem sobre como uma boa parte do nosso Orçamento anual serve somente para pagar juros. Quase o mesmo que gastamos com Saúde no país todo!

Abs
raph

14/7/15 00:32  
Blogger raph disse...

Desculpem, na verdade o que pagamos de juros da Dívida Pública dá um pouco mais que o gasto com Previdência, e consideravelmente mais do que o gasto com Saúde:

http://m.oglobo.globo.com/brasil/pagamento-da-divida-consome-23-de-tudo-que-governo-federal-gasta-14699944

14/7/15 00:38  
Blogger Alfredo Carvalho disse...

O caso do Gérard Depardieu, na minha opinião, é o exemplo mais claro de como o imposto sobre grandes fortunas, apesar de parecer justo na teoria, é um desastre na prática. Veja só. Gérard tem (ou tinha, sei lá) 80 funcionários na França, para quem ele paga salários. Se o governo Francês resolve taxar a fortuna do Gérard, o que ele faz? Demite os 80 funcionários e vai embora da França. Ou seja, o país passa a ter um milionário a menos, e 80 desempregados a mais. Agora considere que existem diversos Gérards na França, alguns até mais ricos que ele, mas que, por sua vez, empregam muito mais que 80 pessoas.

O resultado dessa brincadeira é claro. A desigualdade diminui? Claro que sim. Mas por meio do maravilhoso mecanismo socialista de empobrecer a todos.

14/7/15 10:59  
Blogger raph disse...

Na verdade eu usei o caso do Depardieu mais como ironia mesmo, por ter se refugiado na Rússia e acusado a França de ser socialista :)

É claro que uma taxação em 75%, ou qualquer mudança brusca de valores taxados, não pode ser feita da noite para o dia, e precisa ser progressiva. É preciso encontrar um equilíbrio: se taxar demais os ricos, eles vão embora, se taxar de menos, aumenta a desigualdade. Então não há mesmo uma "receita de bolo" nesse caso.

Nos países Escandinavos, os ricos aceitam pagar até 58% de imposto porque viram que isso teve retorno, e que eles efetivamente construíram o maior IDH do planeta. Mas isso não significa que "tudo esteja resolvido", é claro - a Economia jamais será uma ciência exata, mas muito mais uma espécie de "arte de navegação".

Mas fato é que, no Brasil, os milionários estão com a vida ganha... Principalmente os milionários rentistas, que não precisam se preocupar em tocar empresas, investir no país, nada, só o juros da renda fixa já são mais do que suficiente para eles.

Abs
raph

14/7/15 12:39  
Blogger Unknown disse...

Fala raph,

Tem que lembrar também que o Gérard não foi um caso único. De fato, como o Alfredo disse, tal medida é totalmente ineficaz na prática, tanto que não foi só na França que tal medida não deu certo, mas em outros países também (segundo uma pesquisa rápida que fiz aqui: Alemanha, Finlândia, Áustria, Suécia...).

Desigualdade, na minha visão, não é o problema maior, e sim a pobreza. Tornar todo mundo igualmente pobre em nome da "igualdade" não parece algo inteligente de se fazer. Uma outra crítica a essa taxação (adorada por socialistas) é de que a economia não é um jogo de soma 0. Alguém não fica pobre porque outro alguém ficou rico.

E auditoria da dívida pública não é a solução de todos os males né! E realmente, é complexo e passa bem longe da tal "visão" de banqueiros sádicos que adoram quebrar países por ai ahuahauhauhauhau.

(off-topic: Vi uma entrevista recente do Cunha. Ele disse que muito provavelmente o PMDB lançará um candidato a presidente em 2018...)

Abraço

14/7/15 22:22  
Blogger raph disse...

Também acho que o próprio termo "taxação de grandes fortunas" traz uma mensagem meio equivocada. A ideia é chegarmos a um sistema tributário justo, com grupos gradativos, até um certo limite que combine com os desejos da maioria da população...

Como falei, na Escandinávia os ricaços não fazem tanto escândalo sobre o teto de 58% de impostos, pois não chegaram a ele da noite pro dia, e lá o Estado funciona, há um estado de bem estar social que é claramente percebido por todos; não somente subjetivamente, mas também objetivamente, no ranking de IDH.

Tanto que em países como a Suécia, o grande debate entre esquerda e direita não gira tanto em torno de "enxugar o Estado", mas sim em torno de abrir ou não as fronteiras para todo o tipo de imigrante em busca do maior IDH do mundo...

Já países como Austrália e Canadá são muito bem sucedidos com um Estado mais enxuto e uma economia bem mais liberal... Só que temos de analisá-los em contexto: ao contrário da Escandinávia, tais países se tornaram ricos com a ajuda dos imigrantes do último século, ou seja, eles precisavam mesmo oferecer benefícios para atrair grandes mentes e empreendedores, daí os baixos impostos.

Tudo bem, tais análises são mesmo superciciais, e a Economia real é muito mais complexa do que isso, mas o que estou querendo dizer é que tanto políticas de esquerda quanto de direita **podem dar certo**, se forem bem implementadas e combinarem com o desejo geral da população.

A tragédia do Brasil é querer os benefícios de um Estado sueco sem querer passar pelas décadas de reformas pelas quais eles passaram, tornando o Estado transparente e eficiente.

Abs!
raph

14/7/15 23:02  

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