O óbito da ignorância
Foi por conta de uma certidão de óbito que os EUA finalmente foram incluídos no rol dos países que deixaram de proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ao lado de Holanda (a pioneira) e diversos países europeus, assim como Uruguai, Argentina, Brasil, Canadá, México, África do Sul e Nova Zelândia:
“Quando conheci meu marido, eu soube que queria ficar com ele pelo resto da minha vida, até que a morte nos separasse. A maioria das pessoas sente isso quando encontra o amor de sua vida”, disse a BBC o americano Jim Obergefell, 48 anos, ao falar sobre John Arthur, seu parceiro por 21 anos.
Eles se conheceram em 1992 e durante duas décadas construíram uma vida juntos em Cincinnati, Ohio. Em 2011, Arthur foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica, doença que não tem cura, e começou a perder o controle de seus movimentos musculares e a fala. Ambos sabiam que o tal “até que a morte os separe” estava cada vez mais próximo, e decidiriam aproveitar uma decisão prévia da Suprema Corte americana, de 2013, que permitia o seu casamento em certos estados da federação.
O casal arrecadou US$ 13 mil com familiares e amigos e alugou um jato com equipe médica para viajar a Maryland, Estado onde o casamento gay já era permitido na época. Em 11 de julho de 2013, Obergefell e Arthur trocaram votos e alianças em uma cerimônia de menos de dez minutos, realizada dentro do avião, na pista de um aeroporto em Baltimore.
Após voltarem para casa, entraram com uma ação para que o casamento fosse formalmente reconhecido na certidão de óbito, quando Arthur morresse. Após decisão favorável de um juiz federal, o Estado de Ohio recorreu, e o caso chegou à Suprema Corte.
Foi precisamente este caso que acarretou na decisão histórica e acirrada (5 votos a 4) do último dia 26 de julho de 2015, que basicamente estendeu o direito ao casamento homossexual de alguns estados para todo os EUA. Foi para que na certidão de óbito do grande amor de sua vida não constasse a palavra “solteiro” no lugar de “casado” que Obergefell, indiretamente, ajudou a acelerar o óbito da intolerância e da ignorância na maior potência do mundo ocidental.
Claro que, não fosse por este caso, teria sido por outros. Para além do apoio incondicional a decisão da maior rede social da internet, o Facebook, o que acarretou no florescimento de milhões de fotos de perfil mais coloridas nos dias subsequentes, essas foram algumas das grandes empresas que demonstraram explicitamente o seu apoio à decisão americana:
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Uma questão bíblica
No Levítico, a Bíblia nos explica que “quando um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão” (Le 20:13). Teoricamente, todos os judeus andarilhos, que então viviam em tribos nos desertos do Oriente Médio, deveriam seguir estritamente tal lei ou seriam “punidos por Javé”. Isto fazia algum sentido na época, pois era um povo nômade, que não dispunha de cadeias para punir infratores, e nem podia se dar ao luxo de contar com homens “efeminados” que, para além de não poderem guerrear, não ajudariam na procriação, que era vital naqueles tempos.
Estar ainda ancorado nas leis do Levítico, mesmo no século XXI, é no mínimo uma enorme ignorância, até mesmo porque quem se vale dessa passagem para condenar a homossexualidade está sendo algo hipócrita, na medida em que provavelmente não segue as demais leis do mesmo livro da Bíblia, como por exemplo: “não cortar o cabelo muito curto, nem danificar as extremidades da barba” (Le 19:27); “sacrificar dois pombos a Deus 8 dias após cada menstruação” (Le 15:13-14); “jamais comer carne de porco” (Le 11:7) etc.
Pederastia
A origem desta palavra remonta a antiga Grécia, berço da democracia e de inúmeras ideias que até o nosso século ainda iluminam o Ocidente. Ela significa, literalmente, “amor por garotos”.
Na Antiguidade, a pederastia era uma relação entre um homem mais velho e um adolescente. Em Atenas este indivíduo mais velho era chamado de erastes, e sua função era a de educar, proteger, amar e agir como um exemplo para seu amado – chamado de eromenos, cuja recompensa para seu amante estaria em sua beleza, juventude e potencial.
Não está claro se tal relação passava muito além de uma iniciação sexual que durava não mais do que alguns anos, mas fato é que a sociedade grega não distinguia entre desejo e comportamento sexual com base no gênero de seus participantes, mas sim pela extensão com que tais desejos ou comportamentos se conformavam às normas sociais, que eram baseadas por sua vez no gênero, idade e status social.
Naquela época, o sexo entre homens era aceito, contanto que não deixassem de buscar constituir família nem de se alistarem para a defesa de suas cidades.
Bonobos
Os estudiosos perceberam apenas em 1928 que os bonobos formavam uma família diferente dentro da espécie dos chimpanzés, com um comportamento muito peculiar, em que o sexo está em primeiro lugar, funcionando como substituto da agressividade. O bonobo é um dos raros animais para quem não existe relação direta entre sexo e reprodução. Ou seja, como os humanos, eles fazem mais amor do que filhos. Ao contrário da maioria dos primatas, a sociedade dos bonobos é dominada pelas fêmeas e não pelos machos.
Este “matriarcado” só se torna efetivamente possível porque, ao contrário da maioria das fêmeas de outras espécies, que só são receptivas ao sexo no período fértil, as fêmeas bonobos são atrativas e ativas sexualmente durante quase todo o tempo. Além de intensa atividade sexual com seus parceiros, em que tomam a iniciativa, elas simulam relações com outras fêmeas – é justamente através do sexo que estabelecem as alianças entre si. Os machos também participam dessa espécie de homossexualidade light.
Este é apenas o mais evidente de muitos casos de relações homossexuais na natureza. Assim, se por acaso algum dito pastor, seguidor de algum estranho deus raivoso, lhe disser que ser gay é “antinatural”, você pode lhe responder assim: “Senhor Pastor, o senhor por acaso já ouvir falar dos bonobos?”.
A visão budista
Um dos alunos de Chagdud Tulku Rinpoche, o Precioso Senhor da Dança, um reconhecido mestre budista tibetano, conta que uma vez presenciou tal conversa do mestre com uma senhora que havia acompanhado uma de suas palestras:
Ela: “Mestre, o que é um homossexual?”; Ele: “Um homossexual é uma pessoa que faz sexo com o mesmo sexo.”; Ela: “Acho que o senhor não entendeu… Como o budismo vê o homossexualismo?”; Ele: “Nós não vemos o homossexualismo. No budismo, não temos o costume de ver as pessoas fazendo sexo.”; Ela: “Mestre, o que eu quero saber é a opinião do budismo sobre pessoas que fazem sexo com o mesmo sexo.”; Ele: “Alguém pode dar opinião sobre quem não conhece? Você está falando em “pessoas”. Que pessoas?”; Ela: “Qualquer uma! Qualquer uma!”; Ele: “Todas as pessoas são milagres.”; Ela: “Mas afinal o homossexualismo é certo ou errado?”; Ele: “Atos homossexuais consensuais são atos de amor.”
Tudo isso com a mesma expressão de quem vê um passarinho azul. Seguem-se aplausos e gargalhadas. Rinpoche sorri...
Há ainda este vídeo onde outro mestre, Dzongsar Khyentse Rinpoche, do Butão, fala mais prolongadamente sobre o tema. Em ambos os casos, vemos que os budistas estão mais preocupados com seu autoconhecimento e iluminação do que com a sexualidade alheia [1].
A Igreja, o Pecado e a Verdade
“Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”, afirmou o Papa Francisco em 2013, durante a entrevista concedida aos jornalistas que o acompanhavam no voo de volta à Itália depois da visita de uma semana ao Brasil, surpreendendo boa parte dos vaticanistas presentes.
É óbvio, no entanto, que não há nenhuma chance no horizonte próximo de que a Igreja Católica apoie o casamento homossexual. E nem há qualquer problema nisso... A luta pelos direitos dos gays é uma luta travada na esfera secular e laica, e não na esfera religiosa. O casamento gay nada tem a ver, nem poderia ter, com o casamento conforme os rituais da doutrina cristã.
Da mesma forma, além de certos ativistas da causa gay mais agressivos e ignorantes, nenhum gay ou simpatizante está querendo atacar ou denegrir a Igreja, e muito menos o Cristo, ao lutar por seus direitos, pela igualdade, a tolerância, o amor e, sobretudo, o fim da ignorância.
Afinal, foi ele mesmo, o doce rabi da Galileia, quem nos enxortou a amar a todos, a todos, sem exceção. E, se você ainda crê realmente que a homossexualidade é um tenebroso pecado, então eu lhe convido a conhecer a Verdade e se livrar das trevas da ignorância. Espero que o conteúdo deste artigo possa lhe ajudar em parte – afinal, foi também o rabi quem nos disse que a Verdade nos libertará...
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[1] Vale lembrar, no entanto, que o casamento homossexual ainda não é permitido oficialmente nem no Tibete (China) nem no Butão.
Crédito das imagens: [topo] Monica M. Davey/EPA (Casa Branca com iluminação em homenagem a decisão histórica da Suprema Corte americana); [ao longo] Quartz (mapa com os países onde o casamento homossexual já se tornou legal); FCKH8.com (algumas das grandes companhias que apoiaram a decisão da Suprema Corte; para boicotá-las será necessário abandonar a era da internet e voltar a vida dos anos 1970/80).
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3 comentários:
Lembrando, meus caros, que ainda há padres e pastores do Cristo, como esses aqui:
Padre e pastor lavam os pés de transexual que se crucificou
O preconceito que os homossexuais sofrem e a empatia que todos temos por eles estão entre os fatores que fizeram com que a sociedade ocidental abandonasse o erro elementar de tentar delegar a uns a tarefa de escolher os amores de outros.
Acontece que a sociedade ocidental não abandonou este erro. Aceitamos casais homossexuais, desde que sejam apenas dois os parceiros. Relações entre mais de duas pessoas são pelo menos tão comuns quanto relações entre pessoas do mesmo gênero. Enquanto o casamento gay passou a ser aceito, a poligamia ou poliandria não.
Pior ainda, reservamos o direito de constituir famílias às pessoas que mantenham intercurso sexual. Uma família composta por dois irmãos, por exemplo, não tem os mesmos privilégios que uma família composta por cônjuges. Um irmão não herdaria do outro. Um filho que vive com a mãe idosa e despende todos os esforços para seu sustento, não poderia lhe dar uma casa sem temer que um irmão distante viesse reivindicar a casa quando do falecimento da mãe.
O fato é que o erro não estava em proibir o casamento gay, mas em supor que o estado pode decidir o que é e o que não é uma família. Este erro prossegue, talvez até mais forte.
Nelson, sou obrigado a concordar contigo. Mas, neste caso, temos de ter paciência, afinal essas coisas também não são mudadas da noite para o dia... Acredito que o fim da proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo (talvez o melhor termo fosse "união consensual") seja mais um passo muito importante nesta direção de uma fraternidade entre os homens e mulheres, sejam quantos forem.
O amor apara as arestas e dá o seu jeito de nos fazer caminhar à frente. Mas infelizmente insistimos em caminhar muito, muito devagar...
Abs
raph
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