Através do olhar de Maria Madalena
Ao contrário das outras poucas análises de filmes que já fiz por aqui, desta vez vou trazer a vocês um texto sem tantos spoilers, para que possam ler mesmo antes de ver o filme Maria Madalena (2018; direção de Garth Davis). Aliás, como poderão ver, não é bem um filme agradável para todos os públicos...
Uma coisa que posso contar é sobre a belíssima cena inicial do filme, justamente porque é a primeira coisa que irão ver. Nela, vemos uma mulher mergulhando nas profundezas do Mar da Galileia (na verdade um extenso lago perto de Tiberíades, onde provavelmente ficava a aldeia de Magdala) enquanto ouvimos uma parábola de Jesus descrita em Mateus 13:31-32:
O Reino dos céus é semelhante ao grão de mostarda que o homem, pegando nele, semeou no seu campo; o qual é, realmente, a menor de todas as sementes; mas, crescendo, é a maior das plantas, e faz-se uma árvore, de sorte que vêm as aves do céu, e se aninham nos seus ramos.
É interessante como, no restante do filme, todo o desenrolar se dá no sentido de nos explicar, não como palavras, mas sobretudo com imagens e profundas atuações, isto é, com cinema, o que poderia ser este tal Reino. E é nesse sentido que o filme não é para todos. Sua narrativa é mais mística e contemplativa do que cheia de ação e narrativas paralelas. Não há uma grande trama por ser desvendada (até mesmo porque todos já devem conhecer a história principal), não há maiores polêmicas em relação a Jesus e Maria (apesar da histeria usual dos ortodoxos com os trailers iniciais, uma espécie de “crítica preventiva”), nada disso: o filme trata do encontro com o Reino, e portanto não será mesmo do gosto de todos.
Aliás, em sua fotografia e figurino de época extremamente realistas, ele lembra muito A última tentação de Cristo (de Martin Scorsese). Neste sentido, nalguns momentos dos trechos iniciais no entorno da aldeia de Magdala e, mais ainda, nas cenas de Jerusalém (com o Templo de Salomão ainda de pé) vista de longe, a beleza do filme supera o antigo; ainda que, como cinema em si, esteja relativamente bem aquém do clássico de Scorsese.
Logo após a cena inicial no lago somos apresentados a Maria e sua vida em Magdala, uma pequena aldeia de pescadores. Logo fica muito claro, mesmo para quem ainda não sabia, que se trata de um roteiro escrito por mulheres (Helen Edmundson e Philippa Goslett): o retrato da função feminina nos lidos domésticos e do seu espaço limitado na vida religiosa da comunidade é claramente algo novo e intencional. Durante todo o restante do filme, aliás, o que vemos é a história de Jesus e seus apóstolos através do olhar de Maria Madalena. É assim que, muitas vezes, vemos os outros pelas costas enquanto caminham à frente (ela ficava geralmente atrás, para não chamar atenção) e cochichando pelos cantos (os apóstolos não se sentiam tão à vontade com ela, principalmente quando era a única mulher do grupo)... Vale lembrar, aliás, que em nenhum momento o filme comete o antigo erro de associar Maria a uma prostituta, algo que já foi inclusive corrigido pelo próprio Vaticano, que em 2016 a proclamou a apóstola dos apóstolos.
O primeiro apóstolo a se aproximar mais intimamente de Maria é Judas. É interessante e, ao mesmo tempo infeliz, a maneira como o caracterizam no filme. Judas já foi o tradicional traidor maléfico dos filmes mais ortodoxos, e o confidente belicista, o apóstolo mais próximo de Jesus na Última tentação (...) de Scorsese. Aqui, entretanto, ele é mais como um fanático religioso ingênuo, que tem altas expectativas acerca da chegada iminente do Reino. Não sei se ele foi pensado como uma crítica aos cristãos fanáticos de hoje em dia (o tipo de gente que acha que a ida da embaixada dos EUA para Jerusalém vai apressar a vinda do messias), mas o considero como o grande ponto fraco do filme, ainda que o ator seja em geral bem simpático.
Já a caracterização de Pedro vai muito além de ser um (excelente) ator negro (sim, havia negros naquela época); ele é basicamente neste filme o que Judas é, em boa parte, no filme de Scorsese: a “rocha firme” que mantém o grupo forte e unido, e aquele que protege Jesus nos momentos em que à força física se faz necessária. No entanto, as roteiristas trouxeram para o filme, como era de ser esperado, o famoso conflito entre Pedro e Maria que se passa no Evangelho de Maria, um dos chamados “apócrifos”:
Pedro [...] questionou sobre o Salvador: “Ele realmente falou com uma mulher sem o nosso conhecimento (e) não abertamente conosco? Vamos todos mudar de posição e ouvi-la? Ele preferiu a ela a nós?”
Então Maria lamentou e disse a Pedro, “Meu irmão Pedro, o que pensas? Tu crê que eu mesma inventei essas coisas no meu coração, ou que esteja mentindo sobre o Salvador?” Levi respondeu e disse a Pedro, “Pedro, tu sempre foste o exaltado. Agora eu te vejo te opondo a uma mulher como (a) adversários. Mas se o Salvador a fez digna, quem és tu de fato para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece muito bem. Por isso ele a amava mais do que a nós. Vamos nos envergonhar e nos vestir do homem perfeito e recebê-lo em nós como ele nos comandou e pregar o evangelho, sem proclamar outra regra ou lei além daquilo que o Salvador disse.”
Este “ciúme” de Pedro em relação às conversas a sós entre Jesus e Maria é retratado no filme como teria de ser: não como a suspeita de uma possível relação amorosa (como personagens históricos, ambos provavelmente eram essênios e celibatários), mas como um entendimento de que ele simplesmente “estava perdendo tempo com uma mulher, que não poderia compreendê-lo”. Afinal, Maria era uma mulher, e o fato de ser tratada como um “igual intelectual” era, para aquela época e região do planeta, algo extremamente revolucionário (e que foi convenientemente esquecido por Paulo e muitos “doutores da Igreja” ao longo dos séculos).
O grande “pulo do gato” no roteiro, e onde ele é sem dúvida mais original, é justamente no andamento da relação entre Pedro e Maria, e como o próprio Jesus toma providências para que eles, ao menos, entendam e respeitem um ao outro. Jesus manda os dois, sós, para evangelizar numa aldeia que, talvez, ele já soubesse estar devastada pela fome. Fato é que, lá chegando, Pedro se recusa a batizar pessoas moribundas, que teriam no máximo alguns dias de vida. Já Maria, tal qual faria Madre Teresa de Calcutá muitos séculos depois, decide mesmo assim batizá-los e assisti-los em suas mortes. Pedro fica boquiaberto, e repete a palavra “misericórdia” algumas vezes, como se a tivesse compreendido pela primeira vez naquele dia, ao lado de Maria. É uma das cenas marcantes do filme.
Ao final, obviamente, eles ainda tomam rumos distintos: Pedro vai fundar sua Igreja de homens, e Maria vai evangelizar por todo o sul da Europa, onde eventualmente dará origem aos mitos das “virgens negras” (sim, para os padrões europeus da época, uma mulher vinda da Galileia poderia muito bem ser considerada negra – ainda que a atriz escolhida para o filme não o seja).
Já Jesus e Maria estão ambos fantásticos em suas atuações (Joaquin Phoenix e Rooney Mara, respectivamente). Jesus é, desde a cena inicial, o chamamento, o enigma que precisa ser decifrado por ela. Como esta relação é precisamente o que há de mais precioso no filme, eu prefiro não dar spoilers sobre ela. Há, porém, uma cena que inclusive aparece no trailer, em que Maria lhe pergunta enquanto estão ambos a sós nos montes galileus:
“É isso que se sente quando se é um com Deus?”
Ao que Jesus diz:
“Nunca me perguntaram como é a sensação.”
Mas isto não chega a ser respondido completamente em nenhum momento do filme, pois que isto não é para ser dito. E é precisamente assim que Maria Madalena deve ser visto: como uma experiência religiosa. Para os que têm olhos para ver, um belíssimo filme lhes aguarda nos cinemas.
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Crédito da imagem: Divulgação/Maria Madalena
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