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26.1.23

Terra, fogo, água e ar (parte 2)

« continuando da parte 1


Tudo estava cheio de deuses

Para os antigos caçadores-coletores, a terra significava sobrevivência. Seja em que parte do mundo caminhassem, era dela que extraíam os frutos, plantas e raízes. Afora isso, havia os demais animais: alguns, presas fugidias; outros, feras selvagens, que tornavam caça os caçadores. Era a guerra da fome e da morte, onde tudo o que importava era atravessar mais um dia vivo; e, se possível, bem alimentado.

Se existia algum espaço para se pensar na vida e nos deuses, era na noite, onde dançavam e entoavam seus rituais em torno da fogueira do xamã da tribo, o único que tinha o privilégio de poder se dedicar inteiramente à vida, e não à sobrevivência. Naquele tempo, a vida era mágica, e tudo o que existia fazia parte do sopro divino. Não havia grandes lamentações acerca do passado, que era apenas ontem, nem angústia pelo futuro, que ainda não chegou a existir. Apenas o presente era concreto. O pão nosso de cada dia era de fato sagrado, de fato celebrado, pois não se sabia do amanhã.

Então, algum cientista pré-histórico percebeu que onde a tribo jogava as sementes dos frutos consumidos, por vezes surgiam novas árvores e novos frutos. Um grande espanto se sucedeu ante tamanho milagre tecnológico: para aquelas plantas já não havia aniquilação, e sim morte e renascimento. Elas poderiam crescer em qualquer solo fértil para sempre, e abastecer os antigos nômades de dias futuros, de um amanhã garantido. Era o começo da vida e o fim da sobrevivência.

Os deuses já não habitavam somente as estrelas distantes da noite, agora eles estavam aqui, na própria terra. As plantações eram sagradas, eram oferendas dos deuses da terra para os andarilhos cansados de perambular por vales e desfiladeiros. Tudo, em toda a volta de onde se assentaram para plantar, estava cheio de deuses. Não era mais preciso batalhar por mais um dia de comida: agora, era possível relaxar, e pensar na existência em si. Até hoje, os artistas, os poetas e os magos são devedores deste dia.

Este poderia ter sido o Éden prometido, se os homens não tivessem se cansado da contemplação dos deuses, se não tivessem chegado a acreditar que uma pedra era somente uma coisa sólida qualquer. Em sua ganância, eles ansiavam por pedras mais bonitas, e silos cada vez mais abarrotados de grãos. Eles descobriram que havia tribos que tinham mais coisas, mais riquezas, mais terras, e outras menos. Eles passaram a acreditar, enfim, que algum homem poderia ser dono dessas coisas.

Por isso, jamais houve paz, e sim mais e mais guerra. Não o embate sagrado do homem contra si mesmo, mas a estupidez das batalhas externas, pela conquista de mais e mais coisas que não significavam nada no fim das contas: eram apenas coisas. O homem já não vivia mais junto aos deuses, seu entusiasmo havia sumido, lentamente, de tal forma que ele já não se lembrava mais o que era estar entusiasmado, preenchido de sentido, cheio de espírito.

Mas não foram todos que padeceram da doença de crer que a terra era tudo o que há. Alguns conservaram a chama acesa, carregada cuidadosamente em tochas acesas nas fogueiras dos primeiros xamãs. Com o fogo, eles eram capazes de renovar inteiramente a natureza dos homens, em cerimônias de morte e renascimento, que ocorriam no refúgio das cavernas, escondidas da ignorância do mundo.

Rebatizados no ventre da terra, tais homens se tornavam irmãos pelo resto da existência. Foram tais guias que mantiveram a família dos deuses na memória dos homens, de modo que não pudessem se esquecer definitivamente de sua origem. Foram eles que não nos deixaram esquecer do caminho.

Era preciso o fogo para tornar a terra sagrada outra vez. E todos que aprenderam tais segredos se tornaram irmãos e irmãs: não somente amigos de deuses, mas da família, da linhagem divina.

Por isso todo xamã ancestral que é capaz de andar descalço pela terra, e sentir toda a imensidão da rocha, sem se desconectar dos deuses da noite, do sagrado que há acima, e abaixo, e por todos os lados, bate no coração e diz:

“Eu também sou da raça dos deuses.”


» Na sequência, as marés da água.

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Bibliografia
Kabbalah Hermética (Marcelo Del Debbio). Wikipédia.

Crédito das imagens: [topo] Hikersbay Hikersbay/unsplash

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