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10.3.17

As filósofas

É estranho como o termo “filósofa” é tão pouco visto por aí. No entanto, se as grandes pensadoras da história humana pouco são mencionas ou lembradas pelos historiadores da filosofia, isto não significa que elas não existiram, significa apenas que aqueles que escreveram a história as ignoravam, ou não acreditavam que tenham sido “filósofas de verdade”.

No entanto, o próprio termo “filosofia” (amor [philos] ao saber [sophia]) surgiu da doutrina de uma filósofa, e assim é bem provável que tenhamos tido a primeira filósofa antes do primeiro filósofo.

Temistocleia foi uma eminente sacerdotisa do templo de Apolo em Delfos no século 6 a.C. (portanto cerca de dois séculos antes da famosa questão feita a outra pitonisa, que daria o pontapé inicial ao caminho de Sócrates na filosofia). Em sua época, Delfos era “o umbigo do mundo” não somente por conta do mito [1], mas porque se tratava de uma das principais cidades da Antiguidade e, ao centro dela, o oráculo mais importante era justamente aquele onde Temistocleia “batia ponto”.

E isto é quase tudo o que sabemos sobre ela, além é claro de provavelmente ter sido a mestra de Pitágoras, o “pai da filosofia”. A tradição atribui a ele a criação da palavra. Conforme essa tradição, Pitágoras teria criado o termo para modestamente ressaltar que a sabedoria plena e perfeita seria atributo apenas dos deuses; os homens, no entanto, poderiam venerá-la e amá-la na qualidade de filósofos.

A conexão entre Pitágoras e Temistocleia é feita num trecho da Vida dos Grandes Filósofos, de Diógenes Laércio, um historiador do século III d.C. Lá no livro, Diógenes nos diz que “Pitágoras derivou a maior parte de suas doutrinas éticas a partir dos ensinamentos de Temistocleia, sacerdotisa de Delfos”.

Há historiadores que afirmam que Temistocleia pode ter sido irmã de Pitágoras, mas embora isso seja improvável (Pitágoras era nativo da ilha de Samos, e não do continente), provavelmente torna o papel dela no pensamento pitagórico ainda mais primordial, e não o contrário. É provável que parte disso possa ter a ver com as lendas de que Pitágoras era filho do próprio deus Apolo (e assim, como sacerdotisa do deus, ela seria “sua irmã”), mas é preciso lembrar que na época em que ambos viveram, Temistocleia era incomparavelmente mais famosa e importante do que Pitágoras, pois o cargo de sacerdotisa do grande Oráculo de Delfos lhe conferia uma autoridade religiosa hoje comparável, quem sabe, a um dos cardeais mais eminentes do catolicismo.

Depois, como tantas outras sábias da Antiguidade, foi sendo esquecida, até desaparecer quase que por completo dos registros históricos. Mas, se não temos registro preciso do quanto ela influenciou Pitágoras, ao menos sabemos que “o pai da filosofia” teve por certo algumas discípulas, e não via nenhum problema em ensinar filosofia às mulheres.

Uma delas foi Teano, que segundo alguns relatos pode ter sido casada com seu professor. Num dos fragmentos sobreviventes de suas obras, temos um belo conselho, que foi seguido por suas três filhas, Agnotis, Damo e Mia, todas filósofas como a mãe: “Mais vale ser um cavalo louco em disparada do que uma mulher que não reflete” [2].

Quase um milênio depois, no século IV d.C., nascia em Alexandria uma das mulheres mais sábias da história, da qual felizmente nos restaram muito mais relatos. Era assim que Sinésio de Cirene, um dos seus discípulos mais fieis, que se tornou bispo da igreja cristã em seus primórdios, o “bispo filósofo”, se referia a ela em suas cartas:

A Filósofa,

Eu lhe saúdo, e lhe peço que saúde seus fortunados amigos por mim, majestosa Mestra. Há tempos venho lhe reclamando por não ser digno de uma resposta, mas hoje sei que não sou vítima do seu desprezo por nenhum erro de minha parte, mas porque sou desafortunado em muitas coisas, em tantas quanto um homem pode ser. [...] Eu perdi meus filhos, meus amigos, e a boa vontade de todos. A maior de todas as perdas, no entanto, é a ausência do seu espírito divino.

A “filósofa” em questão era Hipátia de Alexandria, que na época infelizmente não tinha condições de responder seu pupilo, que residia noutra cidade, devido a questões políticas que eventualmente a levariam a ser assassinada [3].

Um historiador de sua época chamado Sócrates Escolástico assim a descreveu na obra Historia ecclesiastica:

Havia uma mulher em Alexandria chamada Hipátia, filha do filósofo Théon, que galgou tantas realizações na literatura e na ciência, que ultrapassou em muito os filósofos de seu tempo. Tendo sido versada nos ensinamentos de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia para os seus ouvintes, muitos dos quais viajavam enormes distância para serem instruídos por ela. Por conta de seu autocontrole e serenidade, frutos do cultivo de sua mente, ela aparecia muitas vezes em público na presença dos magistrados da cidade, e não se sentia envergonhada em participar das assembleias dos homens. Pois todos os homens que tinham notícia de sua extraordinária dignidade e virtude eram seus admiradores.

Apesar de não nos restar nenhuma obra escrita de Hipátia que não seja relacionada à ciência [4], felizmente algumas cartas de Sinésio sobreviveram aos séculos, e nos confirmam em parte o que muitos estudiosos da sua vida intuíram.

Hipátia formou um círculo intelectual composto por discípulos que eram como que “alunos particulares”, alguns deles por muitos anos, outros ainda (como o próprio Sinésio) que a trataram como mestra até o fim da vida. Tais alunos vinham da própria Alexandria, de outras regiões do Egito, da Síria, de Cirene e Constantinopla. Pertenciam a famílias ricas e influentes; com o tempo, vieram a ocupar posições de comando na hierarquia do Estado ou na ordem eclesiástica do cristianismo nascente.

Em torno de sua mestra, esses discípulos formavam uma comunidade cujos fundamentos eram o sistema de pensamento platônico e os laços profundos de amizade. Aos conhecimentos transmitidos pelo “espírito divino” de Hipátia, davam o nome de “mistérios”. Tais conhecimentos, estes sim, eram mantidos inteiramente secretos, e jamais transmitidos a qualquer um que não fosse iniciado nos assuntos divinos e cósmicos.

Ainda que pouco saibamos atualmente sobre o que Hipátia e o seu círculo de discípulos estudavam em segredo, é certo que, entre os seus textos sagrados, contavam-se os Oráculos Caldaicos. Esses textos do hermetismo eram caros tanto ao pai de Hipátia, que os lecionou a própria filha em casa, quanto a Sinésio, que em suas obras demonstra estar plenamente familiarizado com a sua temática. Assim, a exemplo de Temistocleia, Hipátia foi mais uma filósofa com muito mais conexões com a espiritualidade do que pode julgar a “vã filosofia”, ou a filosofia como é entendida por boa parte da Academia em nossa época de grande esquecimento.

E essas são apenas dois exemplos de filósofas históricas que certamente não mereceriam serem ignoradas em quaisquer tratados do pensamento humano. Poderíamos citar tantas outras, como Safo de Lesbos, Aspásia de Mileto, Hildegarda de Bingen, Teresa de Ávila, Rabia Basri, Helena Blavatsky, Simone de Beauvoir etc. [5], mas o objetivo deste singelo artigo foi somente atiçar a sua curiosidade. Agora, o resto é com você... google it!

***

[1] A cidade de Delfos recebeu esta alcunha graças ao mito que narra a busca de Zeus pelo ponto médio da Terra. No intuito de delimitar esse local, Zeus enviou duas águias de extremos opostos do mundo, uma voando em direção à outra. Elas se encontraram em Delfos, designando a cidade como centro do mundo. O ponto de encontro das águias foi demarcado com uma pedra oval, o ônfalo (umbigo, em grego).

[2] Citado em A Odisseia da Filosofia, por José Francisco Botelho (Ed. Abril).

[3] Esta história triste está descrita em nosso artigo Hipátia e Sinésio.

[4] E mesmo essas são, em teoria, somente edições de célebres matemáticos e astrônomos da época. Devido à dificuldade em se atribuir autoria feminina a quaisquer obras da época, fica impossível confirmar o quanto dessas “edições” não se tratavam, na realidade, de “adições”.

[5] Recomendamos a leitura de Filósofas: a presença das mulheres na filosofia, organizado por Juliana Pacheco (Ed. Fi). Pode ser baixado em PDF gratuitamente, aqui. Veja também a lista de mulheres filósofas na Wikipédia e a lista de vídeos sobre as mulheres gnósticas no canal da Sociedade Gnóstica Internacional.

Crédito da imagem: Ágora/Alexandria/Divulgação (apesar de se valer de diversas “licenças poéticas e românticas”, este filme estrelado por Rachel Weisz no papel de Hipátia é, no geral, bem intencionado, e certamente merece ser visto)

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