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2.12.21

A vida de Éliphas Lévi

Prefácio de Dogma e Ritual da Alta Magia, por Arthur Edward Waite, retirado da sua tradução inglesa de 1896. Alguns trechos foram suprimidos em prol da fluidez da leitura e de um melhor entendimento do público leigo nos detalhes da história do ocultismo europeu.

Arthur Edward Waite (1857-1942) foi um célebre poeta, tradutor e ocultista estadunidense, que é mais conhecido por ter sido o cocriador do Tarot de Rider-Waite, ou Tarot de Waite-Smith.

Tradução ao português por Rafael Arrais.


ÉLIPHAS LÉVI ZAHED é o pseudônimo adotado por Alphonse Louis Constant em seus escritos acerca do ocultismo, e aparentemente se trata do equivalente hebraico do seu nome de batismo. O autor de Dogma e Ritual da Alta Magia (Dogme et Rituel de la Haute Magie no original, em francês) nasceu em circunstâncias humildes no ano de 1810, e era o filho de um sapateiro. Como demonstrou ter uma inteligência acima da média desde cedo, o padre da paróquia local desenvolveu um amável interesse pelo garoto, e o trouxe para a fundação de São Sulpício, onde ele recebeu educação gratuita, sendo encaminhado para a vida do sacerdócio. Ao que tudo indica, ele atravessou o período de estudos no seminário sem desapontar as expectativas que se formaram em torno dele. Além de grego e latim, ele provavelmente adquiriu um considerável conhecimento do hebraico; entretanto, seria um erro supor que qualquer uma de suas obras nos trouxe realizações linguísticas notáveis.

Ele entrou em ordens religiosas como noviço e, pouco a pouco, acabou se tornando um diácono, portanto vinculado a um voto de celibato perpétuo. Porém, não muito tempo depois disso ele foi expulso de São Sulpício por expressar opiniões contrárias aos ensinamentos da Igreja Católica. Os relatos existentes acerca de sua expulsão são nebulosos, e trazem elementos inverossímeis como, por exemplo, de que ele havia sido enviado por seus superiores eclesiásticos para discursar em igrejas de cidades afastadas, onde pregou com grande eloquência, mas em dados momentos se desviou da doutrina oficial da Igreja – no entanto, eu creio que não há precedentes para pregações de diáconos na Igreja Latina. O certo é que, para além da biografia que circulou por alguns anos na França, nós temos pouquíssimo material disponível sobre a vida de “Abbé” Constant.

Em todo caso, ele foi enviado de volta ao mundo lá fora, ainda com as limitações de seus votos religiosos, mas com sua carreira sacerdotal barrada. O que ele fez da vida, ou como sobreviveu ao longo dos anos seguintes, nos é desconhecido. Fato é que lá pelo ano de 1839 ele tinha adquirido alguns amigos no meio literário, incluindo Alphonse Esquiros, o autor esquecido de um romance fantástico intitulado O Mago; e Esquiros eventualmente o apresentou a Simon Ganneau, uma espécie de profeta naqueles tempos, que usava vestidos de mulher e morava em um sótão, de onde pregava um tipo de iluminismo político. Ele era, de fato, a reencarnação do rei Louis XVII, “de volta à Terra para cumprir um trabalho de regeneração”. Constant e Esquiros, que um dia visitara Ganneau por pura zombaria, foram seduzidos por sua eloquência, e tornaram-se seus discípulos. Alguns elementos do socialismo devem ter se mesclado com o iluminismo visionário de Ganneau, e tudo isso parece ter frutificado no cérebro de Constant, o que eventualmente deu origem a um livro, ou panfleto ideológico, intitulado A Bíblia da Liberdade (La Bible de la Liberte), para o qual só se dá alguma importância hoje em dia pelo fato de ter levado o autor a ser preso por seis meses. Há alguma razão para supormos que Esquiros teve uma parte tanto na escrita da obra quanto na punição de Constant.

Com o fim do período de encarceramento, Constant retornou destemido, ainda seguindo seu profeta, e iniciou uma espécie de missão apostólica pelas províncias francesas, falando diretamente ao povo, e sofrendo, conforme ele mesmo nos contou, uma perseguição dos invejosos. No entanto, o tal profeta desistiu de seguir com suas próprias profecias, presumivelmente por falta de uma audiência para a qual falar, e assim o discípulo retornou à Paris, onde, a despeito de seus votos como um diácono, ele teve um envolvimento amoroso com uma bela garota de dezesseis anos, chamada Marie-Noémi Cadiot. Com ela, ele eventualmente teve dois bebês, que infelizmente morreram ainda na tenra infância. Pouco depois de tais eventos trágicos, ela o abandonou. Dizem que, além de belíssima, ela foi muito talentosa, e mais tarde veio a se tornar uma escultora de renome.

Quando exatamente Alphonse Louis Constant se iniciou no estudo das ciências ocultas é algo incerto, como quase tudo em sua vida. A declaração dada no Dogma e Ritual da Alta Magia, de que no ano de 1825 ele entrou em um caminho fatídico que, através do sofrimento, o encaminhou ao conhecimento, não deve ser entendida no sentido de que sua iniciação ocorreu exatamente nesse período, que de fato se deu em sua adolescência. Ele obviamente se refere a sua entrada em São Suplício, o que, em certo sentido, o levou ao sofrimento, quiçá à ciência, e certamente lhe conduziu a uma boa educação. Todo o episódio com Ganneau o conectou a uma forma de transcendentalismo, ao menos na parte da alucinação, e pode ter tido algum impacto decisivo ou duradouro em sua mente. Dessa forma, o período em que Constant se devotou a fundo ao estudo do ocultismo muito provavelmente se deu entre a separação de sua mulher e a publicação de Dogma e Ritual da Alta Magia, em 1854.

Nesse interim ele também achou tempo para escrever o extenso Dicionário de Literatura Cristã (Dictionnaire de Littérature Chrétienne), que no entanto não faz nenhum tipo de menção às ciências ocultas – de fato, nele Constant veste a máscara da ortodoxia, e suas palavras estão perfeitamente alinhadas à Igreja em Roma. Em 1860, ele publicou História da Magia (Histoire de la Magie); no ano seguinte, veio A Chave dos Grandes Mistérios (La Clef des Grands Mystères). Em 1864 e 1865 chegaram, respectivamente, Fábulas e Símbolos (Fables et Symboles) e A Ciência dos Espíritos (La Science des Esprits).

Se em sua juventude Constant não dispunha de recursos suficientes, no restante de sua vida a sua situação financeira não teve melhora significativa. Seus livros nunca chegaram a ter grandes tiragens, mas lhe garantiam admiradores e alguns pupilos, de quem volta e meia ele recebeu remuneração por cursos de escrita ou aconselhamentos em geral. Ele costumava circular com vestes de mago medieval, o que pode ser perdoado pelo fato de ter sido um ocultista francês. Constant passou incólume pela guerra franco-prussiana, e eventualmente substituiu a crença no socialismo por uma espécie de “imperialismo transcendentalista”. Em 1875, sua vida contraditória se encerrou em meio ao trabalho na Igreja que por pouco não o expulsou de seu seio. Ele nos deixou diversos manuscritos, muitos dos quais se encontram em processo de publicação. Também há inúmeras cartas enviadas a seus pupilos, como é o caso do Barão Spedalieri, que preservou farta correspondência entre os dois – que, de certa maneira, é mais valiosa que muitos dos livros já publicados [Nota do Tradutor: essa correspondência hoje se encontra no livro Curso de Filosofia Oculta, publicado pela Editora Pensamento].

Nenhum divulgador moderno das ciências ocultas pode ser comparado a Éliphas Lévi. Já entre os antigos, apesar de muitos estarem em maior patamar, nenhum nos é tão interessante de ser estudado, pois ele representa o próprio espírito dos tempos modernos tentando reinterpretar, por vezes forçadamente, os oráculos da antiguidade. É óbvio que há nomes mais grandiosos, mas ninguém excede o fascínio que o mago francês trouxe para a literatura ocultista. Os demais são destinados aos especialistas e aos típicos estudantes sérios capazes de escavar significado em tomos quase incompreensíveis, enquanto nos livros de Lévi conseguimos apreciar de fato a leitura, da mesma forma que podemos apreciar poetas modernos. No texto de Lévi as concepções antigas são devidamente revisitadas e consideradas, mas de cada parágrafo emana um novo espírito primaveril.

Por outro lado, o período de estudo que veio a produzir Dogma e Ritual da Alta Magia como resultado literário não é indicado com exatidão na vida do autor, e tampouco considero que Lévi era capaz de realizar o tipo de estudo profundo e extensivo dos tomos antigos que pudesse produzir resultados mais historicamente consistentes. Assim, seu texto é ao mesmo tempo intenso e fascinante, mas sem muita profundidade de análise; esplêndido em suas generalizações, porém pobre em detalhes. Na realidade, como guia histórico, não pode sequer ser recomendado. Aliás, o seu História da Magia deixa isso muito evidente. Como um ensaio filosófico é admirável, e não há na literatura ocultista nada que chegue perto da sua excelência de escrita, mas ele está inundado de erros históricos. Dessa forma, podemos dizer que se trata de um trunfo literário, mas não de um livro erudito. Para falar a verdade, não creio que Lévi sequer se deu ao trabalho de ler as obras completas dos autores citados.

O seu método de estudo se aproxima mais do verbo francês parcourir (navegar) do que de outro verbo do seu idioma, approfondir (aprofundar). Ou seja, ele mais navega pela história oculta do que se aprofunda em seus detalhes. Assim, não me parece irracional afirmar que se Lévi tivesse sido deixado a sós, jamais teria avançado tanto nas ciências ocultas, pois sua vivacidade teria sido rapidamente apagada pelos horrores da pesquisa em si. Mas, de alguma forma, ele eventualmente encontrou algum círculo iniciático que encurtou enormemente suas necessidades de pesquisa, e o colocou no caminho certo. Aí está, portanto, a importância de Dogma e Ritual da Alta Magia. Ele carrega a voz da iniciação, embora disfarçada. De qual escola, não faz diferença, até mesmo porque nada pode ser dito a céu aberto nesse ramo. E, nesse caso, eu só posso pedir a meus leitores que confiem em mim em tal julgamento.

Lévi ainda estava no meio do caminho de ascensão nos graus iniciáticos quando publicou Dogma e Ritual da Alta Magia. E, se ele havia sido expulso de São Sulpício por ter se desviado em demasia de sua estrutura doutrinária, é provável que tenha sido expulso de sua ordem por haver exposto o que não devia ser exposto. Se foi assim, tais fatos explicariam, em primeiro lugar, a importância dessa obra, pois ela carrega um tipo de conhecimento que não deriva unicamente da leitura de livros de ciências ocultas; em segundo lugar, a falta de detalhamento da mesma, pois ela não é o resultado de um conhecimento completo e absoluto dos temas em questão; e, finalmente, eu penso que isso também evidencia o motivo de vermos tantas retratações e subterfúgios nos livros que se seguiram à sua publicação. Tendo avançado tanto no desvelar dos Mistérios, Lévi naturalmente tentou voltar atrás, e assim como ele se esforçou para seguir o modo de vida eclesiástico em sua adolescência, da mesma forma ele se empenhou em fazer as pazes com tal iniciação ao jogar areia nos olhos dos leitores de suas demais obras. Entretanto, ele falhou em ambos os casos.

Só me resta declarar, portanto, o que eu pessoalmente acredito ser a maior limitação de Lévi: o fato de ter sido um transcendentalista, mas não um místico. Além disso, ele era um cético quanto a qualquer tipo de comunicação com o mundo dos espíritos. Ele define o misticismo como a sombra que limita a luz do intelecto, e não perde oportunidades para destacar seu falso iluminismo, seus excessos e futilidades. Finalmente, não há via direta possível do homem para Deus em seu sistema, e as avenidas de Deus para o homem estão atravancadas por todo tipo de sacramento. Dessa forma, o homem deve se contentar apenas com a intelectualidade se deseja permanecer no reino da razão. A esfera da experiência material é onde deve residir todo o seu conhecimento – além dela, só nos resta confiar em presunções e analogias.

Eu suponho que essa não é a doutrina ensinada pela maioria das ciências ocultas, muito menos o resultado final da via iniciática, da “grande iniciação”. A ordem das coisas do mundo visível tem o seu complemento no invisível, e esse tipo de analogia nos leva a um melhor discernimento da realidade, de modo que todo o processo depende mais de um aprimoramento da nossa própria percepção do que de seguir alguma lei rígida que governa a manifestação de todas as coisas, visíveis e invisíveis. A iniciação nos leva aos primeiros degraus da escada para o mundo invisível, e nos instruí em como subi-la, mas efetivamente subir seus degraus depende inteiramente de nós. As vozes de alguns que nos precederam podem ser ouvidas acima, mas elas também pertencem aqueles que ainda estão subindo – pois que vão morrendo, pouco a pouco, dentre aqueles que alcançaram o Silêncio. E é para lá que nós também devemos ascender sós, lá onde a iniciação já não poderá nos auxiliar, lá na fronteira do limiar, de onde nenhum viajante retorna, e cuja luz só está envolta em mistérios para aqueles que se encontram abaixo.

LONDRES, Setembro de 1896.

***

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search [Éliphas Lévi]; [ao longo] Google Image Search [Igreja de São Sulpício, em Paris; Estátua de Baphomet, de acordo com a ilustração original de Lévi em Dogma e Ritual da Alta Magia].

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4 comentários:

Blogger Trinity disse...

Que presente Raph!

4/12/21 08:11  
Blogger raph disse...

Teremos mais novidades sobre Éliphas Lévi em breve :)

6/12/21 19:44  
Blogger Um ex fumante disse...

Gostei muito, obrigado. Seria um entendimenti correto pensar então que ele foi importante em questões de iniciação mas não de aprofundamento no oculto/místico?

7/12/21 06:20  
Blogger raph disse...

Ao que tudo indica, ele foi um grande divulgador de conhecimentos iniciáticos, mas não necessariamente tinha o domínio completo de tudo o que ele próprio divulgou. Pelo menos segundo o que diz o Waite, e ele era bem mais entendido do tema do que eu - não só por conhecer mais, como por ter vivido numa época bem mais próxima. Abs.

7/12/21 11:27  

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