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13.9.21

Porque é importante conhecer a filosofia islâmica

O texto abaixo prefaciou o livro A Filosofia Islâmica: Pensadores Islâmicos de todos os tempos, de Thiago Tamosauskas, disponível na Amazon em e-book.


O italiano Cosme de Médici foi um dos homens mais importantes do Renascimento na Europa. Não foi pintor, nem escultor, nem escritor ou mesmo pensador, foi um banqueiro. Herdou do pai a fortuna, a saúde e o talento para os negócios. Além disso, governou Florença durante muitos anos, e ajudou a torná-la a capital da arte em todo o Ocidente. Isso tudo porque Cosme foi um homem rico que soube fazer bom uso de sua fortuna, quiçá o melhor uso: patrocinar as artes em geral.

Ele também amava livros, e como na sua época não existia internet, enviava diversos agentes pelo mundo afora para tentar encontrar tomos raros. Eram caçadores de cultura. Cosme estava particularmente interessado em obras gregas da Antiguidade, uma vez que mais ou menos após o advento do cristianismo, toda a Europa foi, século após século, se esquecendo do grego, e se apegando exclusivamente às obras em latim. Mas Cosme não estava numa busca às cegas, pois sabia exatamente para onde enviar seus agentes: o mundo árabe islâmico.

Ninguém questiona a importância das obras de Platão para o pensamento ocidental, mas quando Cosme cresceu, poucas eram as obras platônicas disponíveis em latim. Já ao leste, principalmente na junção com o Oriente Médio, a situação era outra. Os bizantinos que conheciam o grego podiam continuar a ler Platão no original. Dessa forma, os filósofos do mundo islâmico desfrutavam de um extraordinário grau de acesso à herança intelectual da antiguidade grega. Por exemplo, na Bagdá do século X, leitores árabes tinham o mesmo grau de acesso às obras platônicas quanto os leitores em inglês nos dias de hoje.

Isto foi graças a um movimento de tradução que se iniciou durante o califado Abássida, começando na segunda metade do século VIII. Patrocinado pelo próprio Califa, este movimento almejou importar a filosofia e a ciência grega para a cultura islâmica. O império deles tinha recursos para tal, não só financeiramente, mas culturalmente também. Desde a antiguidade tardia até a ascensão do Islã, o grego sobreviveu como língua de atividade intelectual entre cristãos, especialmente na Síria. Então, quando a aristocracia muçulmana decidiu ter a ciência e a filosofia gregas traduzidas para o árabe, foi para os cristãos que eles se voltaram. Foi um imenso desafio. Mas, já no tempo de Cosme, grandes obras de Platão, Aristóteles, Plotino, assim como o famoso Corpus Hermeticum, estavam não somente preservadas em seu original grego nos califados islâmicos, como traduzidas para o árabe e outras línguas da região.

Enquanto durante muitos séculos os europeus “se esqueceram” de tais ideias, no mundo islâmico elas eram conhecidas a fundo. Em boa medida, o chamado Renascimento foi mais uma redescoberta das ideias da antiguidade grega. Mas, se tais ideias puderam ser revisitadas, foi porque os islâmicos as salvaram da aniquilação. Quando os agentes de Cosme retornaram à Florença, ele logo deu a ordem para que todas as obras encontradas fossem traduzidas para o latim. E o resto é história: tais obras jamais voltaram a ser esquecidas pelo Ocidente.

Mas, estranho de se pensar: se foi o mundo árabe islâmico que preservou tais conhecimentos, será que também não existiram grandes pensadores do Islã? Será que eles se limitaram apenas a preservar tal conhecimento, sem terem dialogado com ele? E, se existiram grandes filósofos islâmicos, por que nós raramente ouvimos falar deles no Ocidente?

Não cabe a mim responder tais perguntas neste prefácio, mas a quem ficou curioso sobre o tema, o restante desta obra será de grande valia. O seu autor, Thiago Tamosauskas, tem se revelado um investigador incansável de escolas de pensamento mundo afora. Antes de falar da filosofia islâmica, ele também já se debruçou sobre a filosofia africana e a filosofia chinesa. Sua intenção, obviamente, não é descrever em minúcias cada uma das ideias dos pensadores islâmicos, mas antes dar uma introdução geral ao assunto, e deixar que cada leitor busque se aprofundar por conta própria no pensamento dos filósofos que mais chamaram a sua atenção – de preferência, lendo-os no original.

Uma grande vantagem do texto do Tamosauskas é que, ao contrário do seu sobrenome, ele é altamente legível e explicativo, às vezes com uma pitada de humor aqui e ali. Em suma: é algo que informa e diverte. Se tudo correr bem, logo logo você estará buscando pelos outros livros desta série, se é que já não os leu.


Rafael Arrais

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Crédito da imagem: Pintura de Osman Hamdi Bey (1902).

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2 comentários:

Blogger Denis Cunha disse...

Muito se tem dito, escrito, divulgado por décadas e décadas sobre o Oriente, só que com tamanha injustiça, pois apesar da abundância de conhecimentos sobre Budismo, Taoísmo, Xintoísmo, Hinduísmo, observamos a escassez de obras sobre o Sufismo. Se não fosse através de Rumi, bem possível seria o Sufismos matéria de quase ou nenhuma referência. Contudo, por mais esquecida que possa ficar a verdade, chega uma hora que ela vem à tona. E graças a pessoas com o Raph Arrais e outros poucos, temos hoje, mais acesso à região do Oriente, onde floresceu com raríssima beleza toda a sabedoria Sufi. O livro de Tamosauskas,tema do texto acima, para minha grande satisfação, figura hoje em minha estante.

13/9/21 16:00  
Blogger raph disse...

Obrigado Denis! E boa leitura :)

14/9/21 14:16  

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