O Caibalion é uma fraude?
Eu já não lembro mais o que exatamente me levou a adquirir o exemplar antigo do Caibalion que tenho na minha estante, mas certamente não foi pela beleza da capa, que é somente um símbolo semelhante a um meio círculo por cima de um fundo verde chapado. Poderia ser o título em si, mas duvido que soubesse do que se tratava “O Caibalion”. Quiçá fosse pelo “Três Iniciados” logo acima dele, mas acho que não: visualizando ela agora, posso apostar que foi pelo outro texto abaixo do título:
Estudo da filosofia hermética do antigo Egito e da Grécia
Até então eu nunca tinha lido nada de relevante sobre o antigo Egito, mas talvez as palavras “filosofia” e “Grécia” tenham me levado a um interesse maior, pois naquela época eu certamente já havia lido Platão. Em todo caso, uma vez que se pega o Caibalion numa estante de livraria e começa a folhear, fica difícil não ser seduzido – ao menos se você, como eu, se interessa por espiritualidade e mitologia. Também ajudou, é claro, o fato da edição da editora Pensamento ser bem em conta na época.
Isso possivelmente se passou no final do século passado, e de lá para cá eu não somente reli o Caibalion algumas vezes, como cheguei eu mesmo a traduzi-lo do inglês original. E, se eu sempre soube que era uma obra de autoria anônima, com o tempo alguns outros “mitos” em torno dela foram caindo: ela não foi escrita na Antiguidade, mas em 1908; seus autores, portanto, não eram sábios milenares, mas espiritualistas anônimos (ou nem tão anônimos, como veremos a seguir); e, finalmente, até mesmo os famosos “Sete Princípios Herméticos” não necessariamente advinham todos de textos herméticos mais antigos. Assim, uma dúvida desconfortável passou a transitar em minha mente:
O Caibalion é uma fraude?
Antes de respondermos a tal pergunta, é preciso considerar que atribuir antiguidade a uma doutrina ou filosofia, particularmente as que se conectam com o campo da religião, é uma prática muito comum na história da humanidade. Se formos nos ater estritamente à pesquisa acadêmica, o próprio hermetismo não é algo tão antigo quando se imagina, ao menos não antigo ao ponto de ter se originado no antigo Egito.
Segundo Mircea Eliade, um dos grandes estudiosos do campo em questão no século XX, “sob a denominação de hermetismo compreendemos a totalidade das crenças, ideias e práticas transmitidas na literatura hermética”. Depois, ele prossegue [1]:
“Trata-se de uma coletânea de textos de desigual valor, redigidos entre o século III a.C. e o século III d.C. Distinguem-se duas categorias: os escritos pertencentes ao hermetismo popular (astrologia, magia, ciências ocultas, alquimia) e a literatura hermética erudita, em primeiro lugar os 17 tratados, em grego, do Corpus Hermeticum.”
Eliade situa o hermetismo popular como algo mais antigo do que os tratados herméticos, que vieram a se tornar definitivamente populares somente no século II d.C. Ele também dá destaque a trajetória conturbada do hermetismo ao longo dos séculos:
“A transmissão do hermetismo constitui um capítulo apaixonante na história do esoterismo: efetuou-se através das literaturas siríaca e árabe, e sobretudo graças aos sabeus de Harran, na Mesopotâmia, que sobreviveram no Islã até o século XI. [...] No entanto, o verdadeiro “renascimento” do hermetismo na Europa ocidental teve início com a tradução do Corpus Hermeticum, empreendida por Marsílio Ficino por solicitação de Cosme de Médicis, e concluída em 1463.”
Assim, chegamos a duas datas importantes acerca do hermetismo: século II d.C., quando surgiu o Corpus Hermeticum no mundo grego, e 1464, quando ele foi redescoberto na Europa latinizada. Mas, e o Caibalion?
O Caibalion foi publicado pela primeira vez em 1908 na língua inglesa pela Yogi Society, ligada a um templo maçônico de Chicago, nos EUA. A obra é anônima, assinada somente pelo codinome ou pseudônimo “Três Iniciados”. No entanto, existem indícios de que o livro esteja ligado ao Movimento Novo Pensamento, que surgiu nos Estados Unidos no final do século XIX. Esse movimento era formado por filósofos, espiritualistas, escritores e pessoas que compartilhavam crenças e participavam de estudos metafísicos associados a temas diversos da espiritualidade e da parapsicologia.
Das diversas teorias ligadas à autoria do Caibalion a mais aceita é a de que o livro foi escrito pelo espiritualista americano William Walker Atksinson (mais conhecido como Yogi Ramacharaka, e também popular por usar diversos pseudônimos em suas obras) em parceria com outros estudiosos, como o maçom Paul Foster Case ou a teosofista Mabel Collins. Por exemplo, na própria introdução do Caibalion há uma citação em destaque do trecho de um poema de Edward Carpenter, e esse mesmo trecho aparece em um dos livros (oficiais) de Atkinson. Em todo caso, a verdade é que nunca saberemos ao certo quantos foram os colaboradores da obra, e quais os seus nomes, principalmente porque, sejam quem forem, simplesmente optaram pelo anonimato.
Ora, era isso que eu pensava até pouco tempo atrás: que os autores do Caibalion optaram pelo anonimato para exaltar a obra em si, e não para aumentar sua “aura de mistério”. Afinal de contas, se é óbvio que o Caibalion se trata de um extenso comentário acerca de alguns poucos trechos de obras herméticas mais antigas, fato é que ele traz alguns princípios muito conhecidos do hermetismo, como o famoso Princípio da Correspondência: “O que está em cima é como o que está embaixo; o que está embaixo é como o que está em cima”. E, se ele traz pelo menos um princípio que sabemos ser de fato antigo, ou pelo menos do século II d.C., é claro que os demais também são, certo?
Mais ou menos. Pois se isso fosse inteiramente verdade, teríamos de explicar como diabos algum sábio, ou grupo de sábios, chegou à conclusão que “Nada está parado; tudo se move; tudo vibra” (o Princípio da Vibração) muito antes do advento do microscópio ou da física de partículas!
Mesmo Demócrito, quando observou pequenas partículas de poeira dançando na brisa matinal em um faixo de luz solar, jamais chegou a afirmar que tudo, absolutamente tudo, vibra. Pois ele não tinha um microscópio para dizer que até mesmo um átomo, então pura construção teórica, vibra e nunca está parado. Isso só foi descoberto muito, muito tempo depois. Em 1908, quando o Caibalion foi publicado, era uma ideia da vanguarda científica.
Por muito tempo essa questão me inquietou, e por muito tempo eu considerei que ela era talvez a maior prova de que os sábios herméticos tinham de fato alcançado um conhecimento da natureza inexplicável em sua época. Talvez tivessem aprendido a alcançar estados alterados de consciência que lhes permitisse observar as menores partículas em vibração, e daí tivessem intuído que tudo, absolutamente tudo vibra, até mesmo o que parece estar parado e imóvel: uma pedra, um galho seco, a sua mão, uma igreja, uma ponte de concreto, até mesmo um continente inteiro. E, se de fato sabemos disso com certeza há cerca de 150 anos, tal conhecimento era inacessível aos sábios herméticos de outrora.
Tal questão foi resolvida recentemente, quando vi o depoimento de um amigo que já frequentou incontáveis ordens iniciáticas, desde as discretas as invisíveis, e garantiu que o chamado Princípio da Vibração foi uma invenção dos autores do Caibalion, que simplesmente nunca existiu nem no Corpus Hermeticum nem em qualquer outro texto ou tratado hermético. De fato, hoje não tenho razão alguma para duvidar dele, e sim da intenção real dos autores do Caibalion. Mas, afinal, o Caibalion é uma fraude?
Mais ou menos. É inegável que o Caibalion foi extremamente bem sucedido no que seus autores se propunham: tornar a divulgação do hermetismo algo mais simples, mais acessível ao público leigo e aos curiosos em geral. Afinal, quantos de nós não demos nossos primeiros passos no hermetismo, e até mesmo nas ciências ocultas em geral, graças ao Caibalion?
Dito isso, o fato de os autores do Caibalion terem se valido justamente de mistificações para auxiliar na divulgação de um conteúdo místico não deve ser ignorado por nenhum estudioso sério do hermetismo. Assim, podemos muito bem agradecer aos “Três Iniciados” por nos fazerem chegar ao Corpus Hermeticum e obras similares, mas jamais endeusá-los nem considerar tudo o que disseram, principalmente os seus “Sete Princípios Herméticos”, como alguma espécie de verdade absoluta. Assim somos obrigados a continuar pensando por nós mesmos, a prosseguir tateando no escuro da história oculta, sem usar atalhos perigosos para alcançar algum mítico “conhecimento superior”. Este sim seria o grande pecado do hermetista moderno.
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[1] Trechos retirados de História das crenças e ideias religiosas, volume II, XXVI, 209. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda.
Crédito das imagens: [topo] Editora Pensamento (capa do Caibalion – edição de capa verde); [ao longo] Gravura de autoria anônima, vista primeiramente (em preto e branco) em um livro de Camille Flammarion intitulado L’atmosphère: météorologie populaire (1888).
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9 comentários:
Já vejo essa discussão sobre o Caibalion há algum tempo, então resolvi comprá-lo no final do ano passado. Ainda não tive tempo (e, talvez, nem disposição) para lê-lo, infelizmente. Cheguei à conclusão que meu aprendizado sobre ocultismo e misticismo foi às avessas. Por exemplo, comecei lendo Blavatsky com 14 anos de idade, mas só fui ler Kardec 20 anos depois! Ler Blavatsky continua enfadonho (por ser prolixo), como era naquele tempo, mas acho que eu teria sido menos critico com Kardec se eu fosse adolescente, pois, naquela época, tudo era novidade, tudo era fascinante. Confesso que tenho um certo receio de ler o Caibalion hoje em dia e achar um livro chato, que "fala mais do mesmo".
Excelente texto. Quais dos 7 princípios, se é que há algum, estão expressos no Corpus Hermeticum?
Otávio, eu creio que você vai adorar ler o Caibalion, justamente por ser uma releitura do hermetismo à luz da ciência do início do século passado. Tendo isso em mente, acredito que vai se divertir muito lendo ele :) Abração!
DFL, com todas as palavras, encontramos somente o Princípio da Correspondência expresso na Tábua de Esmeralda (e, talvez com outras palavras, também no Corpus Hermeticum). Os demais princípios do Caibalion fazem parte de uma releitura moderna, embora todos eles tenham a ver com a ideia central do hermetismo, de que tudo que há emana de um único Ser.
Então, eu concordo com a observação do Otávio Fossa, estou ainda lendo o Caibalion, mas estou achando maçante, cansativo, porque ele fala muito do mesmo. Os princípios se parecem demais, sempre no vasto campo da dualidade.
Concordo com o Eduardo Fossa.
Fala muito do mesmo. Os princípios parecem se repetir e sempre no campo da dualidade. Cansativo demais.
O maior erro foi associar o conteúdo do livro a um hermetismo histórico antiguíssimo. Diversas vezes vi pessoas falarem do Caibalion com essa conotação. Pra mim a leitura segue válida no contexto espiritualista, principalmente ao Novo Pensamento.
Acho que ter a certeza de que os antigos herméticos que são discípulos dos ensinamentos de Hermes Trimegisto, não poderiam afirmar com os conhecimentos que tinham (muito superiores ao nosso) que tudo vibra é no mínimo positivista da sua parte.
Muitas coisas foram observadas antes da Ciência poder comprovar de diversos autores diferentes, os filósofos atomistas são uma boa evidencia disso.
O fato de ser um texto anônimo com tamanha potência, já evidencia o desinteresse nas recompensas, tal como ensina Blavatsky que foi a compiladora de toda essa tradição esotérica Oriental, mostrando um proposito nobre que pouquíssimos autores puderam executar na Modernidade.
Como você mesmo indicou precisamos ter discernimento para separar o joio do trigo nessa busca histérica da vida, e este autor citado, ao ler qualquer obra do mesmo, se percebe uma diferença total de ID na escrita.. ainda que tenha sido escrito juntamente à outros autores, é muito improvável por essa diferença de maturidade explícita.
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