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17.8.11

A descoberta do Cosmos, parte 2

« continuando da parte 1

Texto de Werner Jaeger em "Paidéia: a formação do homem grego” (Ed. Martins Fontes), tradução de Artur M. Parreira – Trechos das pgs. 204, 205, e 208 a 210. Os comentários ao final são meus.

Pitágoras é um homem universal, que abrange de fato muitas coisas heterogêneas: a doutrina dos números e os elementos da Geometria, os primeiros fundamentos da acústica, a teoria da música e o conhecimento dos tempos dos movimentos das estrelas; a partir daí pode-se atribuir também a Pitágoras o conhecimento da filosofia natural milesiana. Além disso, e sem qualquer conexão com tudo aquilo, a doutrina da transmigração de almas, vinculada à seita religiosa dos Órficos, está vinculada com certeza à pessoa de Pitágoras, e Heródoto considera-a típica dos mais antigos pitagóricos [1]. Relacionam-se com ela os preceitos morais atribuídos ao fundador. Heródoto afirma o caráter religioso da comunidade que ele fundou. Assim subsistiu na Itália meridional durante mais de um século, até a sua destruição, por motivos políticos, nos fins do séc. V.

A concepção pitagórica do número como princípio das coisas está prefigurada na simetria geométrica rigorosa do cosmos, de Anaximandro. Como concepção puramente aritmética, é incompreensível [2]. Segundo a tradição, deve a sua origem à descoberta de uma nova legalidade da natureza, a da relação entre o número de vibrações e o comprimento das cordas da lira. Mas, para estender o domínio do número a todo o cosmos e à ordem da vida humana, foi necessária uma audaciosa generalização das observações, baseada, sem dúvida alguma, na simbologia matemática da filosofia milesiana da natureza.

A doutrina pitagórica nada tem a ver com a ciência matemática natural, no sentido atual. Os números têm nela um significado muito mais vasto. Não significa a redução dos fenômenos naturais a relações quantitativa calculáveis. A diversidade dos números representa a essência qualitativa de coisas completamente heterogêneas: o céu, o casamento, a justiça, o kairos, etc. Por outro lado, quando Aristóteles nos diz que os pitagóricos faziam consistir as coisas em números, no sentido de matéria, refere-se indiscutivelmente a uma materialização indevida desta identificação abstrata do número com o ser. Não devia estar longe da verdade quando considerava as semelhanças dos números com as coisas um princípio não menos grosseiro que o fogo, a água, a terra, de que as especulações anteriores derivavam todas as coisas [3].

[...] Não sabemos que íntima ligação havia entre a especulação matemática e musical e a doutrina pitagórica da transmigração das almas [4]. O pensamento filosófico daqueles tempos era essencialmente metafísico. Assim, o mito irracional da origem das almas devia proceder do campo das crenças religiosas. A doutrina análoga dos órficos foi provavelmente a fonte da representação pitagórica da alma. Os filósofos posteriores também estão mais ou menos influenciados por ela.

O séc. VI, que, após o naturalismo dissolvente do séc. VII, é uma luta decisiva em prol de uma nova estruturação espiritual da vida, não representa só um vigoroso esforço filosófico, mas também uma pujante expressão religiosa. O movimento órfico é um dos mais significativos testemunhos desta nova intimidade que penetra até o mais profundo da alma popular. No seu anseio por um sentido novo e elevado da vida, está em contato com o esforço do pensamento racional das concepções filosóficas para atingirem uma “norma” objetiva no ser cósmico.

[...] Só por uma profunda necessidade dos homens daquele tempo, aos quais a religião cultural já não satisfazia, se explica a rápida difusão do movimento órfico nas metrópoles e nas colônias. Os outros movimentos religiosos desse tempo, a prodigiosa força do culto de Dionisios e a doutrina apolínea de Delfos, revelam também o crescimento das necessidades religiosas pessoais. É para a história das religiões um mistério a estreita vizinhança que no culto délfico une Apolo e Dionisios [5]. É evidente que os gregos sentiram que havia algo de comum na contraposição de um ao outro.

[...] Mas a religião grega alcançou em Delfos a influência mais profunda como força educativa, e ampliou-a para além das fronteiras da Grécia. As máximas mais célebres dos sábios da terra eram votadas a Apolo e apareciam como um simples eco da sabedoria divina. E quem entrava no templo via à porta as palavras “conhece-te a ti mesmo” [6], a doutrina da sophrosyne, a exortação a não perder de vista os limites do Homem, gravada com o laconismo legislativo próprio do espírito da época.

O sentido da sophrosyne grega seria mal compreendido se interpretado como expressão de uma natureza inata, de uma índole harmônica e jamais perturbada. Para compreendê-la, basta perguntar por que foi justamente naquele tempo que ela irrompeu de forma tão imperativa, de modo a penetrar subitamente, nas profundezas mais inesperadas da existência e, principalmente, da intimidade humana. A medida apolínea não é a excrescência da tranquilidade e do conformismo burguês. A autolimitação individualista é um dique para a atividade humana. A maior ofensa aos deuses é “não pensar humanamente” e aspirar à elevação exclusiva.

[...] A felicidade dos mortais é mutável como os dias. O Homem não deve, portanto, aspirar ao que está alto demais. No entanto, a necessidade humana de felicidade acha um remédio para este trágico saber, no mundo da sua intimidade, quer no alheamento da embriaguez dionisíaca, que aparece como o complemento da medida e rigor apolíneos, quer na crença órfica de que a “alma” é a parte melhor do Homem e está orientada para um destino mais alto e mais puro [7]. O sóbrio relancear do espírito de investigação pela profundidade da natureza oferece ao Homem o espetáculo da geração e da corrupção incessantes, governado por uma legalidade universal indiferente ao Homem e ao seu insignificante destino, e que transcende com a sua férrea “justiça” a nossa breve felicidade.

Daí surge no coração humano, como força interior que se opõe a esta dura verdade, a crença no seu destino divino. A alma, inacessível ao conhecimento natural, aparece nesse mundo inóspito como um estrangeiro que anseia pela sua pátria eterna. A fantasia dos simples pinta a imagem de uma vida futura no além, como uma vida de gozos sensíveis; o espírito dos nobres luta pela própria afirmação no meio da voragem do mundo, com a esperança de uma redenção pela consumação do seu caminho [8]. Ambos, porém, coincidem na certeza do seu destino superior.

E o fiel que chega aos umbrais do outro mundo pronunciará, como santo e senha da fé em que baseou a sua vida, a intrépida máxima: Também eu sou da raça dos deuses. Estas palavras estão gravadas, como passaporte para a viagem para o outro mundo, nas pequenas tábuas órficas de ouro, achadas nos sepulcros do sul da Itália.

***

[1] Em realidade, para qualquer espiritualista com certo conhecimento é até mesmo óbvio que existia uma conexão entre “tudo aquilo” o que Pitágoras estudava e ensinava – em suma: conhecimento naturalista, poesia, arte, padrões musicais e geométricos, filosofia e espiritualidade. No orfismo já tínhamos as bases religiosas presentes em religiões tão antigas e separadas umas das outras quanto o hinduísmo e as crenças do Egito antigo – e, no cerne de tudo, o conceito de reencarnação e vida espiritual.

[2] Tome muito cuidado com pretensas “ciências ocultas” como a Numerologia Pitagórica, e tantas outras, que como esta quase nada tem a ver com o que Pitágoras ensinava – se quiser compreender o sentido religioso dos ensinamentos pitagóricos, o melhor caminho é estudar diretamente o próprio orfismo, que era a sua fonte. Segundo o ocultista Marcelo Del Debbio, a “numerologia que funciona” é a Gematria, ligada diretamente a Kabbalah.

[3] Acaso Aristóteles tivesse vivido no século passado, quando os físicos teóricos conceberam a Teoria das Cordas, ou Teoria-M – que resumidamente afirma que toda a matéria e todas as coisas são formadas pela ondulação de minúsculas cordas (e não partículas), de cuja vibração são produzidas partículas de maior ou menor massa –, talvez não estivesse tão certo de sua crítica ao que os pitagóricos propuseram auxiliados pela pura intuição.

[4] Praticamente nenhuma. É tão simples: basta voltar o olhar para o que os hindus especulavam no oeste, e os antigos egípcios especulavam séculos antes, no sul. Assim como no orfismo, todos observavam uma mesma lei natural, e não poderia ser de outra forma – estavam todos no mesmo Cosmos.

[5] Nietzsche dedica um livro ao assunto (“O nascimento da tragédia”): do antagonismo existente entre Apolo, deus das artes plásticas, e Dionisios, deus da arte não-figurada – como, por exemplo, a música – surge a tragédia grega em seu pleno vigor, e se caracteriza por ser uma tragédia sem a total moderação apolínea ou o total desregramento dionisíaco.

[6] Complementada, em inscrição na parte interna do templo: “e conhecerás o universo e os deuses”... Porque a segunda parte é hoje, “oculta”, deixo que cada um julgue por si mesmo.

[7] Que deveria ser compreendido como um destino que se constrói desde hoje, e não num céu distante, conforme o cristianismo limitou tal conceito.

[8] Ou, em outras palavras, os simples querem se ver livres deste mundo o quanto antes, a fim de poder desfrutar de uma vida de gozos no além; Enquanto o nobre procura fazer deste mundo uma terra, senão de gozos eternos, ao menos de justiça e fraternidade. Esta é a essência da Paidéia.

***

Crédito da foto: Rosario Miranda.

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1 comentários:

Anonymous Petri disse...

Legal, tenho agora outra idéia da expressão "lei divina"

28/8/11 02:08  

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