O cão filósofo
Diz à lenda que num belo dia ensolarado, em Atenas, um grande leão conquistador de territórios encontrou-se com um cão filósofo em seu barril...
“Heféstion, meu amigo, eu já venho cansado de conselhos militares. Se tenho alguma esperança de avançar e conquistar toda a Pérsia, preciso do auxílio dos filósofos, dos sábios, como foi com meu professor na infância...”
“Mas Alexandre, o que buscas com tanta generosidade? De que adianta sustentar Anaxarco, o músico, e ficar distribuindo ouro e talentos para Pirro, Xenócrates, e quaisquer outros que te cruzem o caminho e se digam filósofos?”
“Heféstion, eu tenho muito sangue nas mãos... A guerra se faz necessária, e eu fui educado por meu pai para ser o maior conquistador do mundo, mas isso não me traz nenhuma paz de espírito, nenhuma sabedoria... Às vezes, eu gostaria de ter sido uma outra pessoa...”
Nisso cruzaram com Onesícrito, então soldado de Alexandre, a caminhar em direção ao Craneu. O conquistador angustiado pareceu perceber um brilho no olhar daquele homem, e mandou que o parassem:
“Onesícrito, te darei uma armada para comandar se me disseres de onde vem essa felicidade em teu olhar!”
“Vem da sabedoria de um cão, meu senhor...”
“Um cão? Ora, mas como sabe da sabedoria de um cão, se ele não pode lhe falar nada sobre ela?”
“Este cão é um homem, meu senhor, e mora em um barril numa viela do Craneu. Ele é o homem mais pobre de Atenas, e por isso lhe chamaram de cão. Mas é, não obstante, o cão mais sábio de todo o mundo.”
Alexandre ficou curioso, e pediu que apenas parte de sua escolta o seguisse até onde se encontrava o filósofo cão, para que ele não se assustasse, e pudesse, quem sabe, lhe ensinar alguma coisa de útil para as guerras vindouras.
Chegando ao Craneu, viram um homem perambulando em torno de um barril velho cheio de feno, com meia dúzia de cães em torno, carregando uma lamparina acesa numa das mãos...
“Quem és tu, ó cão?” – Perguntou Alexandre.
“Me chamam Diógenes, e venho de Sínope, o resto é apenas um elogio.” – Respondeu, como se a sua frente estivesse um homem como qualquer outro de Atenas, e não Alexandre, o Grande.
“Para que a lamparina? Está cedo, há sol.” – Alexandre já havia simpatizado com o homem, mesmo sem compreender exatamente o motivo...
“Procuro por homens verdadeiros: auto-suficientes, virtuosos, que não dependem de nada além de si mesmos para serem felizes.”
“E encontrou algum?”
“Até hoje, só meia dúzia de cães, mas nenhum homem.”
“Ora, mas dizem que você é um cão. Qual tipo de cão serias, Diógenes?”
“Quando tenho fome, um maltês, que não assusta nem uma donzela. Quando estou saciado, um cão caçador, daqueles que os homens jamais conseguirão acompanhar o ritmo nas caçadas, por que se cansarão primeiro. Por isso também moro só, neste barril... Apesar de ter muitos amigos, nenhum deles teria coragem de conviver comigo.”
“Pois, maltês ou caçador, é deveras um homem sábio, um cão filósofo! Eu fui educado por um de sua raça, de modo que reconheço sua ascendência entre os homens. Você é um digno cidadão de Atenas, ó cão!”
“Sou um cidadão do mundo. Apenas vivo em Atenas, mas em meu barril, em minha mente, eu penso sobre todo o mundo... Como poderia me limitar a uma só cidade?”
E, ao ouvir aquelas palavras, Alexandre sentiu-se como um reles escravo perante a um verdadeiro conquistador do mundo. Subitamente todas as cidades que havia conquistado tinham agora menos importância do que a sabedoria na voz daquele cão...
“És mesmo um sábio, Diógenes” – E interpondo-se entre o cão e sua escolta de soldados, prosseguiu – “Pede-me o que quiseres, e será teu.”
Diógenes então agachou-se, apagou sua lamparina e, sentando no feno de seu barril, retrucou:
“Não me faças sombra. Devolve o meu sol”.
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Alexandre espantou-se e ficou tão maravilhado pela vida e pela posição assumida por este homem, a ponto que, frequentemente, lembrando-se dele, dizia: “Se não fosse Alexandre, eu queria ser Diógenes”. O que significa: “Se eu não tivesse feito filosofia por meio das obras, eu teria me dedicado aos raciocínios”. Alexandre não disse: “Se eu não fosse rico ou Argeades”; com efeito, não colocou a fortuna acima da sabedoria e a púrpura real e a coroa acima do bornal e do manto desgastado, mas disse: “Se não fosse Alexandre, eu seria Diógenes”; o que significa: “Se eu não me tivesse proposto reunir entre si os bárbaros e os gregos, percorrendo todos os continentes para levá-los à civilização, e de alcançar os confins extremos da terra e do mar reunindo a Macedônia com o Oceano para lançar as sementes da Grécia e difundir entre todos os povos justiça e paz, não estaria em ócio no luxo, mas imitaria a simplicidade de Diógenes”.
Plutarco, Sobre a fortuna ou virtude de Alexandre.
***
Crédito da imagem: Wikipedia (Pintura de Jean-Léon Gérôme, 1860)
Marcadores: Alexandre o Grande, contos, contos (41-50), Diógenes, existência, filosofia, guerra, Plutarco
2 comentários:
Diógenes diz : "Não me faças sombra, devolve o meu sol". Mas qual é o sol de Diógenes ? O sol que anda pelo céu, o Apolo dos antigos ?
Ou o sol de Diógenes é sua decisão e seu raciocínio, embolados e envergonhados em frente a alguém que, por mais que pense em cidades e não no mundo, conhece e constrói as cidades, ao invés de sonhar apenas com elas ?
A bela mente só pode se completar pela obra, seja bela ou o mais perto possível disso.
Já a mente superior, e até mesmo a infinita, são ainda finitas em sua infinitude, pois são mentes apenas. Para haver o Todo, deve haver a mente, mas deve haver também a obra.
O que Plutarco diz acima (na citação do final do conto) também passa por essa ideia, mas vai mais além: Plutarco compreende que existe lugar no mundo tanto para os pensadores, idealizadores e filósofos, quanto para os construtores, pragmáticos e governantes.
Abs
raph
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