Intoxicados, parte 2
Parece cocaína, mas é só tristeza... Muitos temores nascem do cansaço e da solidão; Descompasso, desperdício – herdeiros são agora da virtude que perdemos... (Legião Urbana)
A guerra dos 50 anos
Se você quer afastar seu filho, filha, ou algum familiar querido, ou amigo, das drogas, fará bem em começar por desiludi-los da lenda de que as drogas fazem sempre mal... Não é verdade, obviamente: se fosse assim, na primeira dose de cachaça um adolescente iria cuspir aquele terrível gosto amargo no chão e nunca mais pensaria em beber novamente. Porém, se esta fosse à regra, não haveriam bebidas alcoólicas sendo vendidas quase como água pelo mundo afora. Pode ser amargo no início, mas depois fica doce, e depois, se exagerarmos na dose, fica amargo de novo; Só que uma amargura muito mais triste – a amargura que anestesia a alma.
Outras drogas podem ser doces desde a primeira dose, gerando “grandes viagens psíquicas” que já chegaram até a inspirar alguns grandes artistas, contanto que sejam usadas com parcimônia – o que raramente é o caso. Você pode subir no pedestal da moralidade e avisar aos desavisados: “Tomem muito cuidado, pois o caminho das drogas é doce somente no início, depois provoca grande tristeza!” – Mas, devemos considerar que há alguns seres civilizados e cultos da pós-modernidade, assim como muitos miseráveis e oprimidos, que, de uma forma ou de outra, constataram que na vida só existe tristeza – Se pelo menos nas drogas conseguem um pouco de doçura aqui e ali, ainda estarão saindo no lucro... São essas tais máquinas tristes, com tendências suicidas, que não veem nenhum problema em se suicidar aos poucos, uma bala, uma cheirada, uma seringa de cada vez.
O vício em drogas produz verdadeiros zumbis psíquicos, incapazes de sentir quase nada de realmente profundo (ou seja, capaz de lhes tocar a alma) no transcorrer de sua fase viciada. Pode parecer terrível, mas ainda assim conseguem o que queriam desde o princípio: não sentir mais aquela melancolia, aquela angústia de terem de cuidar das próprias almas... Ainda que assim também se abstenham de sentir felicidade, está tudo bem: podem então “viajar” nas drogas, até que sua viagem pela vida, uma viagem que não veem muito sentido de ser, em todo caso, finalmente chegue ao fim.
Porém, o mais incrível em toda essa história é o fato de que alguns dos maiores governos do mundo, influenciados ou não pelas grandes doutrinas religiosas, acreditem até hoje que a repressão é o melhor caminho para se resolver o problema, deixando o tratamento dos zumbis em (décimo) segundo plano, como que se eles fossem efetivamente zumbis, e não mais seres; Não mais pessoas em busca de alguma doçura real nessa vida; Não mais almas atormentadas, mas que podem ainda ser curadas.
A chamada lei seca total entrou em vigor nos EUA em 1920, promulgada durante o segundo mandato de Woodrow Wilson. Seu cumprimento foi amplamente burlado pelo contrabando e fabricação clandestina de bebidas alcoólicas. A lei seca foi abolida em 1933, já no primeiro mandato de Roosevelt. Permaneceu ativa por quase 14 anos... Enquanto esteve efetiva, veio contribuir para o aumento das fortunas de vários mafiosos, dos quais o mais conhecido é, sem dúvida, Al Capone. A sua revogação veio ajudar a débil recuperação econômica (devido ao “crash” da Bolsa em 1929), mas essencialmente contribuiu para o final do período de ouro da máfia norte-americana. Esta década e meia de proibição do álcool em uma sociedade capitalista – e que preza a liberdade – nos ensinou muito acerca da natureza humana, e de sua propensão para a ilegalidade e violência, se for o caso, para conseguir chegar aos seus objetos de desejo ou, pelo menos, aos seus anestesiadores de almas...
No Corão (5:91) é dito que “Satã apenas deseja suscitar a inimizade e o ódio entre vós com intoxicantes e jogo, e impedir-vos de lembrardes de Alá e da prece. Sendo assim, não ireis vos abster?”; Não chega a ser uma proibição cabal, mas uma espécie de aconselhamento... Mesmo assim, ainda que as bebidas alcoólicas tenham sido largamente consumidas no mundo islâmico (e principalmente no período de ouro do Islã, em Al-Andalus), ainda hoje há inúmeros países islâmicos que punem o tráfico de entorpecentes mais pesados, como cocaína e heroína, com a pena de morte. Aparentemente funciona: com a pena de morte em estados totalitários, o tráfico de drogas ilegais é quase nulo nos países do Islã. A questão é que não apenas os traficantes são punidos e perseguidos, mas também os usuários. Aqui está a solução: matar todos os zumbis (que, em todo caso, já buscam a morte)... E então estaremos supostamente seguindo o desejo de algum deus estranho. Para os islâmicos, parece ter resolvido, ou pelo menos enquanto mantém sua população sob o jugo totalitário de seus estados teocráticos. Até que venham as primaveras árabes.
Mas, estranho de se pensar, a grande diversão dos bares islâmicos é fumar narguilé enquanto conversamos com os amigos... Lá, na terra onde quase todos os entorpecentes são proibidos, fuma-se tabaco (e outras especiarias) com essa espécie de cachimbo d’água, à vontade... Então, talvez nem lá, nem lá a questão esteja totalmente resolvida. Hoje a ciência sabe que o tabaco é bem mais prejudicial à saúde do que, por exemplo, a cannabis, entretanto a cannabis é ilegal em quase todo mundo, e a grande fonte de renda dos traficantes de drogas ilegais, enquanto que o tabaco é perfeitamente aceito (com algumas ressalvas) em todo o mundo, inclusive no islâmico...
Segundo a AVAAZ, nos últimos 50 anos as políticas atuais de combate às drogas falharam em toda a América Latina, mas o debate público está estagnado no lodo do medo, da corrupção e da falta de informação. Todos, até o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, que é responsável por reforçar essa abordagem, concordam – organizar militares e polícia para queimar plantações de drogas em fazendas, caçar traficantes, e aprisionar pequenos traficantes e usuários – tem sido completamente improdutivo. E ao custo de muitas vidas humanas – do Brasil ao México, e aos Estados Unidos, o negócio ilegal de drogas está destruindo nossos países, enquanto as mortes por overdose continuam a subir.
Enquanto isso, países com uma política menos severa – como Suíça, Portugal, Holanda e Austrália – não assistiram à explosão no uso de drogas que os proponentes da guerra às drogas predisseram. Ao invés disso, eles assistiram à redução significativa em crimes relacionados a drogas, e são capazes de focar de modo direto na destruição de impérios criminosos.
Lobbies poderosos impedem o caminho da mudança, inclusive militares, polícias e departamentos prisionais cujos orçamentos estão em jogo. E políticos de toda nossa região temem ser abandonados por seus eleitores se apoiarem abordagens alternativas. Mas pesquisas de opinião mostram que cidadãos de todo o mundo sabem que a abordagem atual é uma catástrofe.
Parece complexo, mas pode ser simples como uma partida de futebol: em time que esta ganhando não se mexe, mas em time que está perdendo ou, no máximo, amargando um empate em 0 a 0 ou 1 a 1, devemos pensar em mudanças, nem que sejam provisórias, nem que sejam apenas para que ganhemos o primeiro jogo deste longo campeonato... Se pararmos de dar murro em prego nos próximos anos, a guerra de 50 anos do combate às drogas no mundo ocidental poderá ficar conhecida por nossa história como a primeira tentativa, mas que não deu certo, e nos levou as próximas. Mas, se não pararmos para reavaliar a situação, poderemos chegar a um século de guerra inútil, com máquinas tristes cada vez mais tristes, grandes cidades cada vez mais violentas, playboys cada vez mais alienados, e zumbis cada vez mais aterrorizantes... Para um filme de horror, não está nada mal.
Nós pedimos que vocês acabem com a guerra às drogas e o regime de proibição, e movam-se em direção a um sistema baseado em descriminalização, regulamentação, saúde pública e educação. Essa política de 50 anos falhou, abastece o crime organizado violento, devasta vidas e está custando bilhões. É hora de uma abordagem humana e efetiva (AVAAZ; Manifesto endereçado a ONU, que neste momento conta com quase 650mil assinaturas online).
» Na continuação – um passeio pelo Inferno.
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» Veja também o post Intoxicados: o fim da guerra, que complementa esta parte da série.
Crédito da foto: Mauricio Abreu/JAI/Corbis
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2 comentários:
Para saber mais sobre a guerra as drogas em todo o mundo, e sobre como a legalização da cannabis é bem mais importante do que pode parecer a primeira vista, recomendo a leitura deste livro:
O fim da guerra, de Denis Russo Burgierman (Ed. Leya)
Outra fonte recomendada, a entrevista com Mujica, presidente do Uruguai, sobre a legalização da maconha por lá:
https://www.youtube.com/watch?v=HW2UgoBN0Rg
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