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25.11.11

Educação secular, parte 2

« continuando da parte 1

Texto de Alain de Botton em “Religião para ateus” (Ed. Intrínseca), tradução de Vitor Paolozzi – Trechos das pgs. 101 a 104, e 134. Os comentários ao final são meus.

Na esfera secular, podemos ler os livros certos, porém frequentemente deixamos de fazer perguntas diretas a partir deles, declinando de propor questionamentos vulgares e neorreligiosos porque temos vergonha de admitir a verdadeira natureza de nossas necessidades interiores. Estamos inevitavelmente apaixonados pela ambiguidade, sem espírito crítico contra a doutrina modernista de que a grande arte não deveria ter conteúdo moral ou desejo de mudar seu público [1]. Nossa resistência a uma metodologia parabólica vem de um confuso desprazer por utilidade, didatismo e simplicidade, e de uma inquestionável suposição de que qualquer coisa que uma criança possa entender seja infantil por natureza [2].

No entanto, o cristianismo sustenta que, apesar das aparências externas, partes importantes de nós mantêm as estruturas mais básicas da primeira infância. Por conseguinte, da mesma maneira que as crianças, precisamos de assistência. Devemos ser alimentados, de modo lento e cuidadoso, com conhecimento, assim como a comida é cortada em pedacinhos para as crianças conseguirem mastigar. Qualquer coisa além de umas poucas lições em um dia nos esgotará indevidamente.

[...] As técnicas que a academia tanto teme – a ênfase na conexão entre ideias abstratas e nossa vida, a lúcida interpretação de textos, a preferência por sumários em detrimento de totalidades – sempre foram os métodos das religiões, que precisavam enfrentar, séculos antes da invenção da televisão, o desafio de apresentar ideias vívidas e pertinentes a plateias impacientes e distraídas. Elas sempre souberam que o maior perigo não era a simplificação excessiva de conceitos, mas a erosão do interesse e do apoio devido à incompreensão e à apatia. Reconheceram que a clareza preserva as ideias, em vez de as enfraquecer, pois cria uma base sobre a qual o trabalho intelectual de uma elite pode mais tarde se apoiar.

O cristianismo tinha confiança em que seus preceitos eram robustos o bastante para ser compreendidos em diversos níveis, que podiam ser apresentados na forma de xilogravuras toscas para o homem simples da paróquia ou discutidos em latim por teólogos na Universidade de Bolonha, e que cada repetição endossaria e reforçaria as outras [3].

No prefácio de uma compilação dos seus sermões, John Wesley explicou e defendeu sua adesão à simplicidade: “Planejo verdades simples para pessoas simples: portanto (...) abstenho-me de todas as especulações belas e filosóficas; de todas as argumentações complicadas e intrincadas; e, tanto quanto possível, até mesmo da exibição de conhecimento. Meu plano é (...) esquecer tudo o que já li na minha vida.” [4]

[...] Os maiores pregadores cristãos foram vulgares no melhor sentido. Ao mesmo tempo em que não abdicavam das suas aspirações à complexidade ou às percepções, desejavam ajudar aqueles que os ouviam. Em contraste, construímos um mundo intelectual cujas instituições mais celebradas raras vezes consentem em perguntar, quanto mais em responder, sobre as questões mais sérias da alma.

Para lidar com as incoerências da situação, poderíamos reformar nossas universidades e eliminar campos como história e literatura, que, no fim das contas, são categorias superficiais que, ainda que cubram um material valioso, em si mesmas não percorrem os temas que mais atormentam e atraem nossa alma [5].

As universidades redesenhadas do futuro recorreriam ao mesmo catálogo de cultura tratado por suas equivalentes tradicionais, promovendo o estudo de romances, histórias, peças e pinturas, mas ensinariam esse material visando a iluminar a vida dos estudantes, em vez de apenas estimulá-los a atingir objetivos acadêmicos. Anna Karenina e Madame Bovary seriam, desse modo, alocados em um curso sobre as tensões do casamento, e não em um outro, focado em tendências narrativas na ficção do séculos XIX, da mesma maneira que as recomendações de Epicuro e Sêneca apareceriam no currículo de um curso sobre morrer, e não em uma pesquisa acerca da filosofia helenística.

Seria exigido que os departamentos confrontassem diretamente as áreas mais problemáticas de nossa vida. Ideias de assistência e transformação, que hoje pairam de maneira fantasmagórica sobre discursos em cerimônias de formatura [6], ganhariam forma e seriam explorados em instituições locais com a mesma abertura com que são nas igrejas. Haveria aulas sobre, entre outros tópicos, estar sozinho, reavaliar o trabalho, melhoras as relações com as crianças, reconectar-se à natureza e enfrentar doenças. Uma universidade interessada nas verdadeiras responsabilidades dos artefatos culturais dentro de uma era secular estabeleceria um Departamento de Relacionamentos, um Instituto de Morrer e um Centro para o Autoconhecimento [7].

[...] Muitos dos métodos das religiões, embora distantes das concepções contemporâneas de educação, deveriam ser considerados essenciais a qualquer plano para transmitir ideias, sejam elas teológicas ou seculares, de modo mais eficaz a nossa mente porosa. Essas técnicas merecem ser estudadas e adotadas, a fim de que tenhamos, no tempo que nos resta, uma chance de cometer pelo menos um ou dois erros a menos que a geração anterior.

***

[1] Paradoxalmente, conforme Tolstói já dizia, “todos pensam em mudar a humanidade, mas quão poucos pensam em mudar a si próprios”. E, além de não pensarem em mudar a si próprios, os “modernistas” ainda condenam quem sugira qualquer mudança “aos outros”. Entretanto, continuam esperançosos em “mudar a humanidade”, sabe-se lá como ou quando.

[2] Este é sem dúvida o livro mais original de Alain; Neste parágrafo encontram-se resumidos tantos conceitos que merecem uma avaliação mais cuidadosa, principalmente no trecho final, que eu recomendaria que o lessem e relessem...

[3] Aqui Alain está sendo otimista demais com a questão da “interpretação em vários níveis”. Se com isso quer dizer que tal evangelização em vários níveis ocasionou apenas o crescimento da Igreja, tem até razão. Mas se quer dizer que a essência dos textos bíblicos foi compreendida corretamente – ou seja, como metáforas em vários níveis de interpretação – pela maioria dos ditos cristãos, obviamente está equivocado.

[4] O ateu secular intelectual pode estar se indagando se isso não seria “infantilizar o conhecimento” (no contexto do primeiro parágrafo), mas aí é que se engana – simplificar não é “infantilizar”, e muitas vezes nossa educação é falha em supor que todos estamos perfeitamente familiarizados com, por exemplo, questões científicas. Em sua lendária série de TV Cosmos, Carl Sagan nos deu um belo exemplo de simplificação da ciência, da filosofia, e até da mitologia e religião, sem, no entanto, “infantilizar” nada: a isso também chamamos divulgação científica.

[5] Não se assustem: ele está propondo que eliminemos as aulas de história e literatura, e passemos a estudá-las de verdade: através de algo mais próximo dos sermões, das questões da alma.

[6] Ou, nem tão fantasmagórica assim, neste discurso de Steve Jobs. Aliás, Jobs, que nunca se graduou, provavelmente seria um assíduo estudante em um Curso de Caligrafia e Design Aplicado a Existência.

[7] Alain está aqui indo muito a frente de nosso tempo. Provavelmente morreremos sem ver a Academia aderindo a sermões, mas me parece inevitável que isso venha a ocorrer lá na frente, após o fim de todas as primaveras árabes e capitalistas... Nesse meio tempo, entretanto, talvez fosse uma boa reflexão para as pequenas igrejas, centros espíritas e terreiros (etc.): não poderíamos ajustar nossa linguagem, de modo a não necessariamente exigir que alguém creia em Deus, ou espíritos, para que possa assistir a nossas palestras e, por que não, participar efetivamente de nossas atividades de caridade? Humanos, todos nós somos humanos!

***

Crédito da foto: Divulgação (Ed. Intrínseca - Noite de palestra e autógrafos do autor, na Livraria Cultura do Shop. Fashion Mall, no Rio de Janeiro, em 24/11/11)

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4 comentários:

Blogger Stepherson Darkchet disse...

O "falar" de forma simplória é algo que relaciono com a sabedoria do homem simples. Muitas vezes escuto e admiro poemas, cantorias e outras palavras que vem de pessoas simples, as quais vem carregadas de sabedoria.

Muitas pessoas desprezam o campo por acreditarem que mesmo providas de contato com o divino por mais tempo que as pessoas da cidade, não são capazes de entender filosofia de mais alto nível. Mas eles entendem, a diferença é que sua linguagem é mais simples, e meu palpite é que por estarem em contato com o divino mais "puro", essa sabedoria vem a eles com facilidade.

25/11/11 16:15  
Blogger raph disse...

Pois é, se até mesmo entre os ditos "selvagens", como é o caso dos povos indígenas, surgiram seres tão sábios quanto o Chefe Seattle (e muitos, muitos outros), imagine nas zonas rurais dos povos "civilizados"... É tudo, portanto, uma questão de adequação da linguagem, e sobretudo de valorização do real conhecimento: a sabedoria.

Abs
raph

25/11/11 16:39  
Anonymous Mariana disse...

Que texto lindo! Como eu gostaria de ter aulas assim, que me ajudassem com a minha humanização em vez de só me fazer engolir um excesso de informações desconexas.

Qualquer mínima sabedoria sobre relacionamentos humanos é mil vezes mais proveitoso do que saber tudo sobre tendências narrativas da ficção do século XIX...

Raph, você já leu "O Homem que Sabe", da Viviane Mosé? Eu li o prefácio na livraria e me pareceu fantástico. Vou comprá-lo essa semana, e aproveitar para dar uma olhada no "Religião para Ateus".

Abraço!

28/11/11 12:53  
Blogger raph disse...

Oi Mariana,

Adoro a Viviane Mosé, acho que ela faz parte (junto com o Cortella e a Marcia Tiburi) do grande trio da filosofia brasileira atualmente... Mas, ainda não li esse livro, então vou deixar na minha lista aqui :)

Abs
raph

28/11/11 15:55  

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