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10.1.12

Neuroteologia, parte 1

Experiências místicas e religiosas (EMeRs) são experiências subjetivas em que um indivíduo diz ter tido um encontro ou uma união com uma entidade divina, ou ter tido contato com uma realidade transcendental.

O incrível caso do capacete de deus

Em 2003, o celebrado biólogo e ativista Richard Dawkins concordou em participar de uma experiência pretensamente científica na qual ele teoricamente teria finalmente contato com uma “realidade transcendente”. Não faltaram chamadas “de efeito” nos intervalos da BBC, anunciando o programa Horizon, onde esta experiência seria registrada: “Será que Dr. Parsinger terá êxito onde o papa, o arcebispo de Cantuária e o Dalai Lama fracassaram?”.

O Dr. Michael Parsinger é um neurocientista cognitivo com “um pé na parapsicologia”. O experimento em questão consistia em expor Dawkins a fraquíssimos estímulos de campos magnéticos direcionados aos seus lobos temporais por um “artefato” que foi chamado de capacete de deus. A sessão duraria exatos 40 minutos, em uma câmara (quarto) fechada com luz fraca, totalmente silenciosa... Muitos outros “pacientes” já haviam se submetido a tal sessão, com alguns resultados surpreendentes, pelo menos se formos considerar alguns relatos subjetivos e as manchetes da “mídia especializada”:

“Coisas espantosas aconteceram nesta câmara. Uma mulher acreditou que sua mãe morta se materializara ao lado dela. Outra sentiu uma presença tão forte e benigna que chorou quando ela desapareceu.” – Robert Hercz, Saturday Night [1].

“Minha mente iniciou toda uma nova excursão, dessa vez com um visível toque oriental, tibetano. [...] Vi-me de fato em um templo, numa fila de solenes monges tibetanos. [...] Tive a certeza de que era um deles.” – Ian Cotton [2].

Até mesmo a parapsicóloga Susan Blackmore, membro do CSICOP e celebrada entre muitos céticos, além de grande contribuidora da teoria dos memes de Dawkins (autora de The Meme Machine), se rendeu a extraordinária experiência do capacete de deus:

“De modo inesperado, mas intensa e vividamente, senti-me de repente furiosa, só que não havia nada nem ninguém sobre o que agir. [...] Depois [a sensação] foi substituída por um igual ataque de medo. Fiquei subitamente aterrorizada – com nada em particular. Jamais em minha vida tivera sensações tão fortes” [3].

Há muitos espiritualistas que julgam o ceticismo e/ou o materialismo científicos barreiras para as experiências místicas. Talvez pelo fato de o capacete de deus prometer uma explicação reducionista e totalmente materialista para tal fenômeno, os céticos “baixariam as barreiras de suas mentes para novas possibilidades”, e poderiam efetivamente vivenciar uma EMeR.

Para muitos simpatizantes do materialismo científico, reduzir as EMeRs a estímulos de um capacete não era somente algo perfeitamente plausível, como quase inevitável – um confirmação de sua crença [4]. Vejamos o que Jack Hitt, jornalista da revista Wired, teve a dizer sobre o assunto:

“Talvez pareça sacrilégio e presunção reduzir Deus a algumas sinapses vulgares, mas a neurociência moderna não se inibe em definir nossas mais sagradas ideias – amor, alegria, altruísmo, piedade – como nada mais que estática de nosso cérebro impressionante e grandioso.

Persinger vai um passo além. Sua obra quase constitui uma Grande Teoria Unificada do Outro Mundo: ele acredita que o emperramento de nosso cérebro é responsável por qualquer coisa que se pode descrever como paranormal – alienígenas, aparições celestiais, sensações de vidas passadas, experiências de quase morte, consciência da alma, é só especificar” [5].

Parece simples não? Toda a aparentemente insondável complexidade da mente humana, todas as nossas crenças, sensações, sentimentos, experiências, nosso próprio senso de um “eu”, sendo finalmente explicadas pelo mero tilintar neuronal, estimulado aqui e ali em nosso cérebro por um quase miraculoso capacete... Seria o sonho de muitos materialistas e jornalistas “especializados” sedentos por “furos de reportagem” finalmente realizado... Seria?

Claro, ninguém esperava convencer todos os religiosos e espiritualistas do mundo do dia para a noite, passando por cima de “milênios de lendas e devaneios místicos”... Mas provavelmente seria um belo começo se o ícone dos ativistas antiteístas relatasse que finalmente experimentou o mundo transcendental, e que ele nada mais era do que outro delírio do cérebro, como Deus. Faltava o próprio Dawkins passar os 40 minutos com o capacete bem afivelado na cabeça. A transcrição de “Deus no Cérebro” diz [6]:

[Dawkins] Se eu me tornasse um religioso e crente devoto, minha esposa ameaçaria me deixar. Sempre tive curiosidade de saber como seria ter uma experiência mística. Estou ansioso para tentar essa tarde [...]

[Dawkins] Eu me sinto meio tonto.

[Narrador] Inicialmente, o Dr. Parsinger aplicou um campo [magnético] ao lado direito da cabeça de Richard Dawkins.

[Dawkins] Muito estranho.

[Narrador] Depois, para aumentar as chances da sensação de uma presença sentida, o Dr. Persinger começou a aplicar o campo magnético nos dois lados da cabeça.

[Dawkins] É uma espécie de torção em minha respiração. Não sei o que é. Sinto a perna esquerda se mexendo e a direita, se contraindo [...]

[Narrador] Assim, após 40 minutos, Richard Dawkins havia chegado mais perto de Deus?

Ao que parece, não. Ele nada sentiu de extraordinariamente incomum, e descreveu-se como “bastante decepcionado”. Na realidade, Dawkins gostaria de sentir o que os religiosos dizem sentir. Persinger deu uma explicação para a insensibilidade de Dawkins ao capacete de deus. Segundo ele, o biólogo britânico estava “muito abaixo da média” em sensibilidade lobo-temporal a campos magnéticos – Isto é, segundo um “questionário” chamado sensibilidade ao lobo temporal, desenvolvido pelo próprio Persinger e utilizado apenas por ele mesmo...

Ao que parece, como espiritualistas podemos ser antipáticos a Richard Dawkins e todo o seu ativismo antiteísta, mas pelo menos nesse episódio em específico devemos parabeniza-lo por seu ceticismo... Talvez Dawkins também estivesse muito interessado em poder se convencer de que as EMeRs se resumem a “estados neuronais alterados”, e que toda a religiosidade e espiritualidade humanas poderiam ser explicadas pela “neuroteologia” da qual o Dr. Parsinger era um dos maiores entusiastas. Mas no fim o seu bom senso, o seu ceticismo, falaram mais alto.

» Na continuação, o ceticismo unidirecional e o duplo-cego no caminho do Dr. Parsinger.

***

Leitura recomendada: O cérebro espiritual, por Mario Beauregard (Ph. D.) e Denyse O’Leary. Editora Bestseller. Particularmente o Cap.4.

[1] O artigo foi intitulado God Helmet.

[2] Ian Cotton descreveu suas experiências no livro Hallelujah Revolution.

[3] Relatado por Susan no artigo Alien Abduction da revista New Scientist, em 19/11/94.

[4] O materialismo, o materialismo científico (ver minha série de artigos sobre o tema), assim como o espiritualismo, o monismo, o dualismo, etc., são todos apenas teorias, sem a devida comprovação científica em experimentos objetivos e replicáveis.

[5] O artigo de Hitt se chama This is Your Brain on God, publicado na revista Wired em Novembro/99.

[6] God on the Brain, episódio de Horizon, foi transmitido pela BBC em 17/04/03.

***

Crédito das imagens: [topo] Corbis (gravura em cobre ilustrando o pensamento humano, sec. XVII. Sudhoff-Institut/Alemanha); [ao longo] BBC/Divulgação (God on the Brain).

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3 comentários:

Blogger Rafael disse...

Queria ver se o Dawkings tomasse um gole de Ayahuasca se não teria uma EMeR...

30/1/12 15:10  
Blogger raph disse...

Ele provavelmente sentiria algo bem mais intenso do que sentiu vestindo o capacete de Deus, mas provavelmente diria que se trata de uma alucinação.

Quando atingimos estados de EMeR sem o uso de quaisquer substâncias psicoativas, entretanto, a neurologia tem tido dificuldades em entender o processo (por exemplo, nos estudos de monges budistas em meditação e médiuns durante a incorporação).

Abs
raph

30/1/12 15:37  
Blogger raph disse...

Hoje sabemos que a maior parte dos que afirmam ter uma experiência religiosa não estão fingindo. A ciência **comprovou** isso por experimentação com ferramentas de neuroimagem. O estudo citado abaixo é somente mais um deles (ler, por exemplo, "O cérebro espiritual", do Dr. Mario Beauregard)...

"Recentemente, alguns estudos revelaram que regiões e sistemas cerebrais medeiam os diferentes aspectos da experiência religiosa, descartando, assim, a teoria "ponto de Deus", que postulava um local no cérebro como responsável pela experiência com o "divino". As experiências religiosas são complexas e multidimensionais na medida em que envolvem alterações na percepção (por exemplo, imagens mentais visuais); cognição (por exemplo, representações do self), e emoção (paz, alegria e amor incondicional)."

http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol40/n6/225.htm

8/1/14 15:38  

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