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11.1.12

Neuroteologia, parte 2

« continuando da parte 1

A "neuroteologia", também conhecida como “bioteologia” ou neurociência espiritual, estuda os processos cognitivos que produzem experiências subjetivas tradicionalmente categorizadas como místicas (ou religiosas) e as relaciona com padrões de atividade no cérebro, tentando desvendar como e porque elas evoluíram nos humanos, bem como seus benefícios.

Ceticismo unidirecional

Em 1991 Susan Blackmore recebeu o CSICOP Distinguished Skeptic Award, uma espécie de “oscar do ceticismo”, mas nem sua fama de cética lhe fez pensar com mais cuidado nas declarações que fez após experimentar o capacete de deus. Afinal, seria muito bom que ele realmente funcionasse... Pelo menos para ela, do “time dos materialistas científicos”.

Mas, afinal, porque o ceticismo, a genuína dúvida científica, parece ocorrer em apenas um sentido? Porque o ceticismo da Academia é unidirecional? Como Susan e tantos outros “céticos distintos” caíram como patinhos no “conto do capacete” sem sequer parar para pensar nas inúmeras falhas do experimento? Diga-se de passagem, as mesmas falhas que o ceticismo genuíno aponta em pesquisas espiritualistas:

Subjetividade vs. objetividade
A descrição de uma experiência genuinamente mística ou religiosa não poderá nunca ser completa somente pelo uso da linguagem, das palavras, que nada mais são do que cascas de sentimentos. Sensações subjetivas, como reconhecer a “vermelhidão” da cor vermelha, o “adocicado” de um morango silvestre, a “dor na alma” de uma separação traumática, ou ainda o contato com uma realidade que transcende nossa compreensão, por sua própria natureza pertencem ao reino subjetivo, psicológico, que não parece ser compatível com a objetividade exigida pela experimentação científica moderna... Porém, ainda mesmo que ignoremos este primeiro item, passamos então para as falhas do experimento em si...

Não houve duplo-cego
Para evitarmos problemas com o sugestionabilidade da mente dos pacientes desse tipo de experimento, em que relatos subjetivos são a única “materialidade” dos resultados, é padrão que o experimento seja feito em duplo-cego, ou seja: (1) os pacientes da experiência em si e o grupo de controle [1] não podem saber nada ou quase nada acerca do que se trata o estudo; (2) os pacientes não podem saber se fazem parte do grupo experimental ou do grupo de controle; e (3) os condutores da experiência se separam em pares: o primeiro condutor, não informado acerca do objetivo do estudo, interage com os pacientes; o segundo condutor liga e desliga os campos magnéticos do capacete de deus sem informar ninguém – nem o primeiro condutor, nem quaisquer pacientes.
No caso dos experimentos do Dr. Parsinger através de décadas, ele mesmo ou colaboradores próximos conduziam o experimento, não havia duplo-cego algum.

Havia acesso a informações prévias dos pacientes
A grande maioria dos pacientes do experimento de Parsinger precisava preencher “fichas cadastrais” onde informavam acerca de experiências paranormais pregressas, o que fazia parte do seu “método” para avaliar se os seus lobos temporais eram “sensíveis” o suficiente para poderem ser afetados pelos campos do capacete de deus. Além destes, muitas personalidades reconhecidamente céticas passaram pelo experimento (como Dawkins e Blackmore), talvez numa tentativa do Dr. Parsinger de demonstrar que o efeito dos campos persistia independente da crença do paciente...
Ocorre que esses tais questionários prévios obviamente já sugestionavam a mente dos pacientes. Com ênfase no obviamente.

Havia uma “midiatização” dos experimentos
Desde meados da década de 80, quando Parsinger iniciou seus experimentos, a mídia “especializada” foi aos poucos se entusiasmando cada vez mais com o tal capacete de deus... Afinal, não se chamava “capacete de deus” a toa. Esse tipo de coisa interessa a mídia porque vende mais revistas e livros, interessa aos leigos por se tratar de um assunto que naturalmente desperta a curiosidade humana desde os primórdios da civilização; e, sobretudo, interessava ao Dr. Parsinger porque alavancava a sua fama no ramo científico, e provavelmente lhe rendia mais verbas para continuar a pesquisa.
Mas a “midiatização” não interessa a ciência genuína, que deve tentar permanecer o mais imparcial possível às expectativas alheias, até mesmo porque expectativas são subjetivas, e a ciência é objetiva.
Além disso, mesmo que os questionários prévios feitos aos pacientes fossem cada vez mais cuidadosos em não revelar a natureza exata dos experimentos, bastava pesquisar na internet, ou ler artigos na mídia científica, para saber exatamente o que Parsinger pesquisava.

***

Em Dezembro de 2004, uma nota discreta da revista Nature News relatou que uma equipe de pesquisadores da Uppsala University, na Suécia, chefiada por Pehr Granqvist, reproduziu a experiência de Parsinger testando 89 universitários, alguns dos quais foram expostos efetivamente aos campos magnéticos, enquanto outros faziam parte apenas do grupo de controle. Além disso, a experiência foi feita em duplo-cego, sem questionários prévios aos pacientes e, certamente, sem nenhuma mídia “especializada” acompanhando cada passo dos experimentos.

Dentre os universitários haviam estudantes de teologia e psicologia, distribuídos indistintamente entre o grupo a ser experimentado e o grupo de controle. Durante a avaliação dos resultados, a equipe de Granqvist não conseguiu detectar que o magnetismo teve qualquer efeito perceptível. Não foram encontradas evidências de um efeito de “presença sentida” de campos magnéticos fracos. A característica que determinou significativamente os resultados foi a personalidade. Dos três indivíduos (de 89!) que relataram intensas experiências místicas, dois eram membros do grupo de controle (não receberam campo magnético algum). Os que foram classificados como altamente suscetíveis, com base em um questionário preenchido após o estudo ter sido concluído [2], relataram a ocorrência de experiências “estranhas” enquanto usavam o capacete, independente de o campo magnético estar ligado ou não.

A despeito da baixíssima divulgação desta pesquisa sueca, no meio científico o capacete de deus continuou sendo tratado como uma “hipótese com diversas falhas”, e então lentamente a mídia abandonou o Dr. Parsinger e seu capacete. Susan Blackmore pareceu bastante decepcionada:

“Quando fui ao laboratório de Parsinger e me submeti a seus procedimentos, vivi as mais extraordinárias experiências pelas quais já passei. Ficarei surpresa se acabarem se revelando um efeito placebo.”

No que tange a decepção de Susan, ao menos temos uma boa notícia para ela: a Academia tampouco faz vaga ideia do que vem a ser exatamente o efeito placebo [3].

No que tange a via única de seu ceticismo, que parece funcionar apenas contra os experimentos espiritualistas, podemos somente lamentar... Assim como lamentamos que toda a disciplina da “neuroteologia” seja muito mais uma pseudociência fincada no sonho da comprovação do materialismo científico, do que uma ciência genuína, que ao menos tente ser imparcial [4].

Pois o que não faltam são pesquisas científicas que recorrem a certas explicações espiritualistas – muitas delas “estranhas” a Academia –, mas que são muito bem conduzidas, muito mais do que as do Dr. Parsinger com seu capacete “miraculoso”. Não quer dizer que tenham provado nada, o problema é a falta de atenção que recebem da mídia científica, enquanto qualquer doutor afirmando que descobriu a Deus em um gene, em algum “módulo mental”, ou nos campos magnéticos de um capacete, ganhe todos os holofotes para si.

» Na continuação, alguns experimentos “estranhos”...

***

Leitura recomendada: O cérebro espiritual, por Mario Beauregard (Ph. D.) e Denyse O’Leary. Editora Bestseller. Particularmente o Cap.4.

[1] Em experimentos científicos do tipo é comum a divisão do grupo a ser estudado em dois: um grupo passará efetivamente pela experiência em si, o outro é apenas um grupo de controle, onde o capacete de deus não terá campo magnético algum ligado. Assim é possível verificar o efeito placebo, ou o efeito que se deve teoricamente apenas a imaginação sugestionável dos pacientes, e não ao fato de estarem ou não usando um capacete que emite campos magnéticos.

[2] Ao contrário do Dr. Parsinger, que usava um método próprio para avaliar seus pacientes, a equipe de pesquisadores suecos usou métodos largamente utilizados por outros pesquisadores em todo mundo, tais como a escala de misticismo Hood e a escala de absorção de Tellegen.

[3] Ver meu artigo, “Placebo-nocebo”.

[4] Embora a imparcialidade científica total seja bem mais uma lenda do que uma realidade. Ver o que Miguel Nicolelis, um grande neurocientista brasileiro, tem a dizer sobre o assunto.

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Crédito das imagem: Arthur Ash/Corbis

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10.1.12

Neuroteologia, parte 1

Experiências místicas e religiosas (EMeRs) são experiências subjetivas em que um indivíduo diz ter tido um encontro ou uma união com uma entidade divina, ou ter tido contato com uma realidade transcendental.

O incrível caso do capacete de deus

Em 2003, o celebrado biólogo e ativista Richard Dawkins concordou em participar de uma experiência pretensamente científica na qual ele teoricamente teria finalmente contato com uma “realidade transcendente”. Não faltaram chamadas “de efeito” nos intervalos da BBC, anunciando o programa Horizon, onde esta experiência seria registrada: “Será que Dr. Parsinger terá êxito onde o papa, o arcebispo de Cantuária e o Dalai Lama fracassaram?”.

O Dr. Michael Parsinger é um neurocientista cognitivo com “um pé na parapsicologia”. O experimento em questão consistia em expor Dawkins a fraquíssimos estímulos de campos magnéticos direcionados aos seus lobos temporais por um “artefato” que foi chamado de capacete de deus. A sessão duraria exatos 40 minutos, em uma câmara (quarto) fechada com luz fraca, totalmente silenciosa... Muitos outros “pacientes” já haviam se submetido a tal sessão, com alguns resultados surpreendentes, pelo menos se formos considerar alguns relatos subjetivos e as manchetes da “mídia especializada”:

“Coisas espantosas aconteceram nesta câmara. Uma mulher acreditou que sua mãe morta se materializara ao lado dela. Outra sentiu uma presença tão forte e benigna que chorou quando ela desapareceu.” – Robert Hercz, Saturday Night [1].

“Minha mente iniciou toda uma nova excursão, dessa vez com um visível toque oriental, tibetano. [...] Vi-me de fato em um templo, numa fila de solenes monges tibetanos. [...] Tive a certeza de que era um deles.” – Ian Cotton [2].

Até mesmo a parapsicóloga Susan Blackmore, membro do CSICOP e celebrada entre muitos céticos, além de grande contribuidora da teoria dos memes de Dawkins (autora de The Meme Machine), se rendeu a extraordinária experiência do capacete de deus:

“De modo inesperado, mas intensa e vividamente, senti-me de repente furiosa, só que não havia nada nem ninguém sobre o que agir. [...] Depois [a sensação] foi substituída por um igual ataque de medo. Fiquei subitamente aterrorizada – com nada em particular. Jamais em minha vida tivera sensações tão fortes” [3].

Há muitos espiritualistas que julgam o ceticismo e/ou o materialismo científicos barreiras para as experiências místicas. Talvez pelo fato de o capacete de deus prometer uma explicação reducionista e totalmente materialista para tal fenômeno, os céticos “baixariam as barreiras de suas mentes para novas possibilidades”, e poderiam efetivamente vivenciar uma EMeR.

Para muitos simpatizantes do materialismo científico, reduzir as EMeRs a estímulos de um capacete não era somente algo perfeitamente plausível, como quase inevitável – um confirmação de sua crença [4]. Vejamos o que Jack Hitt, jornalista da revista Wired, teve a dizer sobre o assunto:

“Talvez pareça sacrilégio e presunção reduzir Deus a algumas sinapses vulgares, mas a neurociência moderna não se inibe em definir nossas mais sagradas ideias – amor, alegria, altruísmo, piedade – como nada mais que estática de nosso cérebro impressionante e grandioso.

Persinger vai um passo além. Sua obra quase constitui uma Grande Teoria Unificada do Outro Mundo: ele acredita que o emperramento de nosso cérebro é responsável por qualquer coisa que se pode descrever como paranormal – alienígenas, aparições celestiais, sensações de vidas passadas, experiências de quase morte, consciência da alma, é só especificar” [5].

Parece simples não? Toda a aparentemente insondável complexidade da mente humana, todas as nossas crenças, sensações, sentimentos, experiências, nosso próprio senso de um “eu”, sendo finalmente explicadas pelo mero tilintar neuronal, estimulado aqui e ali em nosso cérebro por um quase miraculoso capacete... Seria o sonho de muitos materialistas e jornalistas “especializados” sedentos por “furos de reportagem” finalmente realizado... Seria?

Claro, ninguém esperava convencer todos os religiosos e espiritualistas do mundo do dia para a noite, passando por cima de “milênios de lendas e devaneios místicos”... Mas provavelmente seria um belo começo se o ícone dos ativistas antiteístas relatasse que finalmente experimentou o mundo transcendental, e que ele nada mais era do que outro delírio do cérebro, como Deus. Faltava o próprio Dawkins passar os 40 minutos com o capacete bem afivelado na cabeça. A transcrição de “Deus no Cérebro” diz [6]:

[Dawkins] Se eu me tornasse um religioso e crente devoto, minha esposa ameaçaria me deixar. Sempre tive curiosidade de saber como seria ter uma experiência mística. Estou ansioso para tentar essa tarde [...]

[Dawkins] Eu me sinto meio tonto.

[Narrador] Inicialmente, o Dr. Parsinger aplicou um campo [magnético] ao lado direito da cabeça de Richard Dawkins.

[Dawkins] Muito estranho.

[Narrador] Depois, para aumentar as chances da sensação de uma presença sentida, o Dr. Persinger começou a aplicar o campo magnético nos dois lados da cabeça.

[Dawkins] É uma espécie de torção em minha respiração. Não sei o que é. Sinto a perna esquerda se mexendo e a direita, se contraindo [...]

[Narrador] Assim, após 40 minutos, Richard Dawkins havia chegado mais perto de Deus?

Ao que parece, não. Ele nada sentiu de extraordinariamente incomum, e descreveu-se como “bastante decepcionado”. Na realidade, Dawkins gostaria de sentir o que os religiosos dizem sentir. Persinger deu uma explicação para a insensibilidade de Dawkins ao capacete de deus. Segundo ele, o biólogo britânico estava “muito abaixo da média” em sensibilidade lobo-temporal a campos magnéticos – Isto é, segundo um “questionário” chamado sensibilidade ao lobo temporal, desenvolvido pelo próprio Persinger e utilizado apenas por ele mesmo...

Ao que parece, como espiritualistas podemos ser antipáticos a Richard Dawkins e todo o seu ativismo antiteísta, mas pelo menos nesse episódio em específico devemos parabeniza-lo por seu ceticismo... Talvez Dawkins também estivesse muito interessado em poder se convencer de que as EMeRs se resumem a “estados neuronais alterados”, e que toda a religiosidade e espiritualidade humanas poderiam ser explicadas pela “neuroteologia” da qual o Dr. Parsinger era um dos maiores entusiastas. Mas no fim o seu bom senso, o seu ceticismo, falaram mais alto.

» Na continuação, o ceticismo unidirecional e o duplo-cego no caminho do Dr. Parsinger.

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Leitura recomendada: O cérebro espiritual, por Mario Beauregard (Ph. D.) e Denyse O’Leary. Editora Bestseller. Particularmente o Cap.4.

[1] O artigo foi intitulado God Helmet.

[2] Ian Cotton descreveu suas experiências no livro Hallelujah Revolution.

[3] Relatado por Susan no artigo Alien Abduction da revista New Scientist, em 19/11/94.

[4] O materialismo, o materialismo científico (ver minha série de artigos sobre o tema), assim como o espiritualismo, o monismo, o dualismo, etc., são todos apenas teorias, sem a devida comprovação científica em experimentos objetivos e replicáveis.

[5] O artigo de Hitt se chama This is Your Brain on God, publicado na revista Wired em Novembro/99.

[6] God on the Brain, episódio de Horizon, foi transmitido pela BBC em 17/04/03.

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Crédito das imagens: [topo] Corbis (gravura em cobre ilustrando o pensamento humano, sec. XVII. Sudhoff-Institut/Alemanha); [ao longo] BBC/Divulgação (God on the Brain).

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16.12.11

Teísmos e ateísmos

Ao longo de vários anos participando e observando discussões filosóficas e religiosas, pude observar que, muitas e muitas vezes, as pessoas se digladiam muito mais por não conseguirem compreender o que a outra efetivamente pensa, do que por qualquer outro motivo mais importante. Usualmente, o que causa esse tipo de desentendimento é o fato de que alguns termos – particularmente os que englobam a crença ou descrença em um Criador – são compreendidos de maneiras diversas pelas pessoas.

Por exemplo, para alguns um ateu é alguém que afirma categoricamente que Deus não existe (seja quem ou o que for). Para outros – incluindo ateus – o ateísmo não chega a fazer tal afirmação. Para alguns atenienses Sócrates era ateu, embora ele estivesse um tanto longe disso, tanto que mais tarde sua filosofia influenciou decisivamente um grande teísta: Sto. Agostinho. Já Epicuro dizia não se preocupar com os afazeres dos deuses – e também foi taxado de ateu. Dizem que Einstein acreditava no “deus de Espinosa”, mas seria esse deus o mesmo deus do Antigo Testamento? Richard Dawkins deixa claro que não, e em seu polêmico Deus, um delírio se dedica a atacar apenas o deus bíblico, e não a concepção panteísta do Cosmos. Confuso, não?

Para tentar auxiliar em tantas definições, teísmos, ateísmos e outros “ismos”, elaborei um pequeno glossário de termos abaixo, que é propositadamente curto – e, obviamente, não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas apenas de ajudar a resolver melhor alguns debates. Comece perguntando: “que tipo de ismo você segue exatamente, afinal?”, antes de ter certeza do que exatamente o outro crê ou não crê...

Teísmo
O teísmo, derivado do grego Théos (Deus), é a crença na existência de um ou mais deuses. No politeísmo acredita-se em diversos deuses, mas no henoteísmo, apesar de admitir-se a existência de um panteão, há também um Deus supremo, criador do Cosmos. No monoteísmo reduz-se a divindade a apenas um único ser supremo, usualmente taxando outros deuses de semideuses, divindades ou demônios (do grego daemon) – que em certas doutrinas também podem assumir o papel de intermediários entre os homens e o Deus supremo.
O teísmo filosoficamente deriva diretamente do antigo questionamento: “porque afinal existe algo, e não nada?” – Que por sua vez remete a crença em uma espécie de ser consciente (embora não necessariamente um velho barbudo ou um avatar profético) que arquitetou todo o Cosmos. Pode ser, talvez, resumido como “a crença em um Criador pessoal”.
A grande maioria dos teístas também compartilha a crença de que Deus não somente pode intervir diretamente (e, usualmente, de forma sobrenatural) nos eventos da existência humana, como também pode transmitir revelações e segredos cósmicos através de profetas, sonhos e experiências religiosas em geral.

Creem em uma causa primeira: sim.
Creem em um Criador pessoal: sim.
Creem em intervenções sobrenaturais: quase sempre sim.
Creem em revelações divinas e dogmas: sim.

Deísmo
O deísmo tem suas raízes nos antigos filósofos gregos e, sobretudo, na doutrina aristotélica da “primeira causa”. Voltou a florescer no Iluminismo, sobretudo através de Galileu, Newton, Voltaire e outros. No deísmo admite-se que o Cosmos não é obra do acaso, e que portanto deva existir um Criador. Porém, os deístas creem que é papel do homem se aproximar de Deus através da razão, e não o contrário. Em suma, os deístas negam as revelações divinas e têm uma concepção naturalista do Cosmos, usualmente negando também a possibilidade de intervenções sobrenaturais.
Os deístas creem em um relojoeiro que sabia enxergar muito bem, tão bem que arquitetou todo o Cosmos de forma magistral. Tão perfeita, que lhe é mesmo desnecessário intervenções específicas. Conforme disse uma vez Voltaire a uma senhorita: “Minha senhora, acredito em uma providência geral, mas não numa providência particular que salvou o seu pássaro que estava machucado”.

Creem em uma causa primeira: sim.
Creem em um Criador pessoal: geralmente sim.
Creem em intervenções sobrenaturais: quase sempre não.
Creem em revelações divinas e dogmas: não.

Panteísmo (ou “espinosismo”)
O panteísmo associa o conceito de Deus ao próprio Cosmos: a totalidade de todas as coisas no universo, na natureza. Einstein dizia que havia duas formas de se enxergar a vida: uma é pensar que não existem milagres, a outra é conceber tudo a sua volta como um milagre. Obviamente, Einstein queria dizer que as próprias leis naturais, a própria simetria e harmonia do Cosmos, eram em si mesmas um milagre persistente – ao menos para aqueles que tinham olhos para ver.
Essa concepção de Cosmos remonta novamente a Grécia antiga, sobretudo aos estoicos. E foi bebendo dessa fonte que Benedito Espinosa concebeu a Deus como “a substância que não pode criar a si mesma, mas que gerou tudo o mais a partir de si”. Esta é uma bela síntese para um questionamento ancestral, e exatamente por isso Espinosa é até hoje tão admirado (apesar de ter sido excomungado do judaísmo, sob a acusação curiosa de ateísmo).
Se no início de sua Ética Espinosa engendra o conceito de Deus de forma geométrica e precisa”, é preciso se aventurar no restante do livro para perceber que o filósofo holandês também acreditava que esse tal Deus era capaz de nos trazer profunda felicidade existencial, sobretudo quando alinhamos nossa intuição com a “vontade do Cosmos”. Era esse deslumbramento que Einstein sentia constantemente, ao desvelar os segredos da natureza.

Creem em uma causa primeira: sim.
Creem em um Criador pessoal: não.
Creem em intervenções sobrenaturais: não.
Creem em revelações divinas e dogmas: não.

Pandeísmo
O pandeísmo nasceu da fusão do panteísmo com o deísmo, e se trata de um concepção divina do Cosmos, que só pode ser compreendida através da razão.

Panenteísmo
O panenteísmo é um doutrina muito similar ao panteísmo, mas compreende que Deus é “o Cosmos e algo a mais”. Ou seja, que o universo está contido em Deus, mas Deus não se limita apenas ao universo.

Agnosticismo
Thomas Henry Huxley, um biólogo inglês, cunhou o termo “agnóstico” (do grego agnostos, “ausência do conhecimento”) em 1869, mas a essência do agnosticismo foi melhor desenvolvida pelo filósofo alemão Immanuel Kant. No agnosticismo, admite-se que a questão ancestral acerca da natureza exata da “primeira causa” não pode ser resolvida com base no conhecimento atual da humanidade, e talvez jamais venha a ser efetivamente solucionada. Geralmente isso significa apenas que os agnósticos se posicionam com ceticismo em relação à existência de Deus: não podem afirmar que existe, nem tampouco que não existe. Ou, como dizia Carl Sagan, um grande agnóstico: “a ausência da evidência não é a evidência da ausência”.
O agnosticismo possuí algumas vertentes interessantes: os fideístas creem que essa mesma questão da “primeira causa” realmente não pode ser resolvida pela razão, mas sim pela fé. Também é possível ser um agnóstico teísta – que crê em Deus, mas não crê que pode compreendê-lo; ou ainda, bem mais comum, um agnóstico ateísta – que não crê em Deus, embora tampouco afirme que não exista.
Se formos considerar a essência do ceticismo filosófico, para um cético só é mesmo possível ser um agnóstico, há menos que este cético tenha passado por experiências religiosas subjetivas, e que por conta delas tenha passado a crer em Deus.

Creem em uma causa primeira: geralmente sim, embora não saibam resolve-la.
Creem em um Criador pessoal: não (exceto no fideísmo).
Creem em intervenções sobrenaturais: não (exceto no fideísmo).
Creem em revelações divinas e dogmas: não (exceto no fideísmo).

Ateísmo
Em sua origem antiga, o ateísmo (do grego atheos, “ausência de Deus”) sempre foi um termo profundamente arraigado na religião, visto que usualmente significava a negação dos deuses e práticas religiosas locais. Claro que o ateísmo na antiguidade também poderia significar literalmente a descrença em todo e qualquer deus, mas esses casos eram muitíssimo raros. Mesmo grandes profetas e filósofos foram acusados de ateísmo, a despeito de sua óbvia crença em Deus ou em deuses, dentre eles contamos até mesmo Sócrates e Jesus Cristo.
Com o passar dos séculos e, sobretudo, com o aflorar das ciências naturais após o Iluminismo, o ateísmo em seu sentido de “descrença total em Deus” passou a ser cada vez mais comum. Teoricamente, aquele que se declara ateu na era moderna estará afirmando categoricamente que “não existe um Criador”, e também geralmente poderemos adicionar à afirmativa: “tampouco existe uma causa primeira com objetivo definido”. Ou seja, um ateu moderno não vê sentido ou desígnio divino no universo.
Mas esse tipo de definição do parágrafo acima não é compartilhado por todos, tampouco pelos próprios ateus – e há muitos ateus que se colocam, em realidade, como agnósticos, ou agnósticos ateístas (ver acima), apesar de se definirem “apenas como ateus”. Esse tipo de afirmação gera muitos desentendimentos, pois há muitos teístas e mesmo deístas que se sentem ultrajados com o fato de alguém se sentir na condição de afirmar que “não existe um Criador nem um sentido para a causa primeira” – muito embora nem sempre seja o que alguém que se autointitule ateu queira realmente dizer.
Em suma, há muitos agnósticos que gostam de se dizer ateus apenas para se colocarem ainda mais claramente em oposição às concepções teístas, sobretudo aquelas originárias das doutrinas dogmáticas.

Creem em uma causa primeira: por vezes sim, embora em todos os casos neguem um sentido ou desígnio divino no universo.
Creem em um Criador pessoal: não, e por vezes podem ter “certeza que não existe Criador algum”.
Creem em intervenções sobrenaturais: não.
Creem em revelações divinas e dogmas: não.

Antiteísmo
O antiteísmo (alguns chamam de neo ateísmo ou novo ateísmo) é uma vertente moderna do ateísmo que não se contenta em apenas se declarar ateísta, como critica veementemente o teísmo e, por vezes, atua de forma militante, tentando convencer as pessoas de que Deus não existe. Embora os antiteístas provavelmente entendam a si mesmos como “evangelizadores da ciência e do racionalismo”, eles na prática lembram muito mais uma versão distorcida dos próprios evangelizadores teístas.

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Observação (1): É preciso sempre lembrar que a ciência não é ideologia ou doutrina, não é materialista nem espiritualista, monista ou dualista, teísta ou ateísta. A ciência é tão somente o conhecimento da natureza detectável, e o estudo de seus mecanismos. Há muitos grandes cientistas da história que eram teístas, deístas, panteístas, etc.

Observação (2): Embora um teísta fundamentalista provavelmente me julgue um ateu, e um antiteísta radical provavelmente me julgue um teísta, eu na realidade estou situado mais ou menos entre o Panteísmo, o Deísmo e o Pandeísmo.

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Vídeo
Este artigo serviu de base para o roteiro do vídeo O que é Deus para você? no canal Conhecimentos da Humanidade do YouTube.

» Veja também o artigo Monismos e dualismos, que trata da natureza da mente

Crédito da foto: Brian David Stevens/Corbis

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13.12.11

Nova Damanhur

Em 1992 a polícia italiana foi deslocada para o sopé do vale Valchiusella, 50Km ao norte de Turim, para investigar um possível crime de evasão fiscal de uma comunidade que ali vivia. Era já a segunda visita, e os policiais suspeitavam de que algo estava sendo construído no subterrâneo, sob o vale. Eles deram um ultimato: “Se não nos levarem até os túneis, vamos dinamitar toda a encosta até encontrar alguma coisa”.

Para os membros da comunidade, não restou outra alternativa que não levar os policiais até uma “porta secreta” num dos lados de uma casa da região... Uma vez aberta, aos polícias incrédulos revelou-se uma sala subterrânea de 8 metros de diâmetro suportada por colunas esculpidas e revestidas com folhas de ouro. As paredes estavam cobertas por pinturas de cores exuberantes; vitrais e uma imensa claraboia central derramavam luz multicolorida por todo o lado. Encontravam-se na Sala da Terra, apenas a primeira de um complexo arquitetônico de nove espaços que compõem Damanhur.

Tudo havia começado ainda na década de 60, quando Oberto Ariaudi, conhecido como Falco (Falcão), ainda criança começou a ter sonhos extremamente realistas de estranhos templos sagrados de civilizações há muito esquecidas, assim como de uma estrutura social bem distinta de nossa sociedade ocidental moderna. Seria apenas mais um dentre tantos casos de crianças que se lembram de vidas passadas (e, eventualmente, esquecem), não fosse pela persistência de Falco em tornar os seus sonhos realidade...

Com uma carreira consolidada de corretor de seguros, e mais 24 amigos e colaboradores que partilhavam de sua visão de uma nova sociedade, Falco fundou Damanhur, que na verdade é o nome de uma cidade do antigo Egito que existe até hoje [1], e começou a cavar... Cavar, cavar, e construir estruturas quase além da imaginação.

Quando foram descobertos, em 1992, pensaram que seria o fim: a primeira ordem das autoridades italianas foi para que tudo fosse parado até segunda ordem, já que se tratava de uma construção ilegal. Falco temeu que mandassem destruir tudo, mas então os governantes da região pensaram duas vezes, e perceberam que aquilo poderia auxiliar em muito a dinamização do turismo regional. Não só permitiram que Damanhur continuasse “de pé”, mas eventualmente foram liberados para continuar a construir mais e mais, para debaixo das montanhas de Valchiusella.

Hoje a Federação de Damanhur é um “experimento social para o futuro da humanidade”, e já conta com mais de mil moradores, dentre milhares de outros colaboradores que não vivem no local. Os Templos da Humanidade, como são chamados, comportam um complexo de templos interligados imenso e magnífico. São 300.000 m3 de salas e galerias de uma arquitetura grandiosa, interligadas em cinco níveis situados 30m abaixo da superfície, e profusamente decoradas com esculturas, pinturas, mosaicos e vitrais narrando à história da humanidade. Acima da terra, a comunidade já conta com sua própria universidade, escolas, mercados orgânicos, fazendas e casas ecológicas ganhadoras de prêmios.

Damanhur também têm sua própria constituição, que é revisada de tempos em tempos (atualmente é usada a de 2007), além de uma peculiar estrutura de “comunidades familiares” de 200 a 220 membros que se dedicam a uma atividade em particular. Tais atividades podem variar de pesquisas filosóficas e práticas espiritualistas até a pesquisa científica por novas soluções ecológicas, como o uso de energia eólica, por exemplo. Toda a estrutura da comunidade é dividida em 4 grandes “escolas”: a Escola de Meditação se fundamenta na tradição ritualística; A Escola Social se foca na realização da sociedade como um todo; O Jogo da Vida trata da parte dinâmica e em constante renovação da vida; Já a Tecnacarto, a mais recente, trata da realização individual e autoconhecimento.

Uma das máximas da constituição damanhuriana diz assim: “Da criação da tradição compartilhada, da cultura compartilhada, da história compartilhada, da ética compartilhada, as pessoas nascem”... E isso não ficou apenas na teoria, hoje Damanhur conta com a terceira geração de pessoas, ou seja: os netos dos primeiros damanhurianos que nasceram já dentro da comunidade, ainda na década de 70.

E pensar que no final do século 19 chegou-se a pensar que a religião e a espiritualidade entrariam em franco declínio, cedendo lugar a nova era da razão... Até mesmo ainda hoje, há muitos que creem que novas religiões não são formadas, e que toda a tradição religiosa remete a doutrinas milenares. De certa forma estão certos, pois uma seita recém criada só adquire o “status” de religião após aproximadamente um século, mas dito isso, o que não falta nessa verdadeira Nova Era são religiões e comunidades autossustentáveis surgindo a torto e a direito, seja aqui no Brasil, seja no Japão, seja nos Alpes italianos [2].

Você pode até achar irracional muitas das crenças de Nova Era, pode até achar confuso como tantas seitas diversas podem ter tantos pontos de crença em comum; Pode, sobretudo, achar absurdo que uma comunidade de mais de um milhar dedique suas vidas inteiras a construção do sonho de uma criança... Mas o que não poderá negar é o próprio assombro no olhar, ao constatar o que o sonho humano é capaz de construir – a Nova Damanhur.

Clique nas imagens abaixo para abrir em tamanho maior:

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Veja também:

» Tour vitual pelos Templos da Humanidade (clique nos Thumbnails ou no Mapa para ir avançando)

» Vídeo da Sala dos Espelhos (Hall of Mirros)

» Trailer do filme Sonhos de Damanhur (Dreams of Damanhur)

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[1] No antigo Egito a cidade era conhecida como Timinhor, "a cidade de Hórus". Na época ptolemaica a cidade era denominada Hermópolis Parva, para à distinguir de Hermópolis Magna, sendo a capital do 7º nomo do Baixo Egito (o nomo do "Arpão Ocidental"). Segundo o mito, o deus Toth seria oriundo deste local. Durante a Idade Média, a cidade tornou-se próspera devido a estar situada entre a rota de caravanas que passava entre o Cairo e Alexandria. Em 1302 foi destruída por um terremoto, mas foi restaurada pelo califa mameluco Barquq no final do século XIV. Segundo o próprio Falco, em uma de suas supostas vidas passadas ele teria vivido na antiga Damanhur. Outra curiosidade é que os Templos da Humanidade foram construídos em um dos locais da região em torno de Turim onde passa uma linha de Ley.

[2] Para um estudo elaborado do presente e futuro da espiritualidade humana, recomendo ler o livro “O futuro de Deus” (Bakas e Buwalda), publicado no país por A Girafa.

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Crédito das imagens: Divulgação (Tour virtual; Damanhur no Facebook; Artigo do Daily Mail)

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9.12.11

The spiritualist's belief

(translated by the author from the original portuguese article, “A crença do espiritualista”)

While chatting on the web, I once came upon a story, as told by a skeptic friend. He said that one of his friends, whom he admired the intelligence, suffered a car accident and stayed unconscious for a few days. When he awakened, he was beside him, and so he asked: “Am I still alive, or in the other side?” His friend was a spiritualist, and believed in life after death (or, to be more exact, in life after life). So, my skeptic friend asked over the web: “How can an intelligent person, like him, believe in such stuff?” – And that’s an excellent question…

Many skeptics, and those rated as “intellectuals and scholars”, seen to have a hard time in trying to solve that puzzle. It’s cause they stumble upon two interpretations that are somewhat prejudiced: the first one states that faith cannot be rational, and the second says that the vast majority of the spiritualists are alienated from reality. This article will try to open the eyes of those people, so maybe they can judge the spiritualists by what they really are: people like any other, but who consider the possibility of the existence of the spirit.

Reason and Faith
The etymology of the word “faith” brings us two origins that aren’t necessarily complementary. The first one derivates from the greek pistia, and means “to believe”. This is the most common meaning, but still incomplete, because it’s not enough to believe only, it’s also necessary to understand the reason by what we believe. This is the so called reasoned faith. Before being a contradiction, as some might think, the use of reason consolidates faith, because as we analyze the object of our faith, comprehending and accepting it, we are then creating the foundations that will make our faith unbreakable, fortifying it for the more arduous challenges. On the other hand, the faith without reason is fragile, subject to be unmade and break upon the slightest of the shocks. Or even worst, this irrational faith can conduce to fanaticism, the negation of everything that is against our own point of view. As it’s not opposed to reason, pistia by itself is non dogmatic and, so, perfectly compatible with skepticism.

But we also have another origin for the word “faith”, derivative from the latim fides, which also posses the same meaning of believing, but adds up the concept of fidelity, namely, it’s necessary that we have fidelity to the object of our faith. Speaking of religious faith, we are talking about God, so it’s necessary that we have fidelity to God, and that’s only possible when we follow his precepts: “Love God over all things and our neighbors as ourselves”.

Still, we need to take a lot of care on the definition of this God, because many times people will follow the God as defined by the church’s speech, while the path of spirituality brings us to the search of our own definition of God. And that brings us to the second type of prejudiced interpretation…

Each one’s God
Every religious doctrine brings their own conception of God, and in the majority of times those views are conflicting between them. This, by itself (and not without reason), already sounds absurd for those who cultivate a more skeptic and rational thought. It’s not for nothing that many end up judging the majority of the theists as alienated: if they can’t even come to an agreement about the nature of God, how can they dictate the rules of conduct to be followed?

This is a pertinent question because it touched the essence of religiosity. The true religious is not exactly those who enlisted themselves in a community of those elected by God (the origin of “church”, from the greek ekklesia), but those who practice a communion with God or the Cosmos, a path of returning into the comprehension of our own origin (from latin re-ligare, origin of “religion”). Unnecessary to say that those are two very distinct definitions – while every church follower can be religious, not every religious person will be a church follower. But, even more profound than that: to every true spiritualist it seems rather obvious that the form of communion with God (or the Cosmos) is exclusive to each one, personal and not transferable. It won’t be books, or preachers, or spiritual gurus, who will teach us how to walk in the path – in the end, every bit of knowledge helps, but each one will have to learn by himself, in practice.

A pertinent comparision can be made between learning spirituality and how to swim: it’s won’t help much to read extensive manuals about swimming, or watch long lectures from great swimmers – you will only turn into a great swimmer yourself if you get the courage to drop in the ocean, and face the waves by your own.

The true spiritualist is not, then, someone alienated from reality. He just dropped in his own consciousness, while others (not without reason) preferred to abstain from this adventure.

Sailing is needed
For the spiritualist in constant study and dazzling before the infinity of the Cosmos, reason and faith walk side by side with morality and love, and he finds in religion, as in philosophy and science, precious tools for his long journey…

He cannot have anything against the skeptic. If this one doesn’t believe yet, it’s surely for two reasons: because he didn’t passed by the same religious experience – and, so, subjective; or because the spirit simply doesn’t exist, and all spiritual questions can be resumed into psychological ones, to be analyzed deeper and deeper as science advances. In both cases, there’s no real reason for an enmity between the spiritualist and the one who does not believe.

Truth be told, if someone has the moral duty to avoid fights and stay into a peaceful and loving posture, this is the spiritualist – which, good or bad, assumed the responsibility to be like so, an harmonious and loving being. The others doesn’t have, by default, any responsibility, nor any God to be afraid of, and there’s no problem with that.

Because if the spiritual path was walked only because of the fear from God punishments, for ridiculous bargains in exchange of a heaven fitted for only a few, then it’s pointed to the wrong direction. Because those who still didn’t comprehended that all beings inside the Cosmos are sons of the same substance, and that everyone will enter heaven holding their hands, it’s because they are still in the beginning of the path.

So, forgive them, because they don’t know what they do. And forgive us, because we also don’t. But, from the depths of infinity an end of the long web is pulled, and we are all impelled into his direction… comprehending it or not.

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Note for portuguese audience / Nota aos leitores de português
Se você tem amigos que leem apenas em inglês, divulgue esta mensagem a eles. Ela tem sido muito bem recebida em todos os setores não dogmáticos, e acho que pode ser de alguma ajuda no entendimento mútuo entre céticos e espiritualistas em geral...

Image credits: 21guilherme

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29.11.11

Intoxicados, parte 3

« continuando da parte 2

A criança que fui chora na estrada / Deixei-a ali quando vim ser quem sou / Mas hoje, vendo que o que sou é nada / Quero ir buscar quem fui onde ficou (Fernando Pessoa)

Por onde andam os mortos

Um homem caminha pelas vielas do inferno. Ele se veste a caráter: parece mais um mendigo, numa das mãos traz um saco com alguns pães que acabou de comprar na padaria, a face foi cuidadosamente maquiada para parecer tão suja quanto às faces dos mortos que perambulam por lá – perdidos das próprias almas, perdidos de suas essências. No entanto, não há nada de sobrenatural nesse inferno... Os seres mortos são apenas mortos em vida, não mortos-vivos; O inferno fica bem no centro da maior cidade do Brasil; Um homem visita a cracolândia.

Uma menina aborda o homem no meio da rua. Parece menor de idade, mas mesmo assim se porta como se não fosse. Ela está suja – suja no corpo, suja no olhar, suja na alma. Mas não há nada mais a oferecer em troca de um pedaço de pão ou, quem sabe, de 30, 20, 10 reais... Ela oferece a alma, ela oferece o olhar... E o corpo. O homem entrega o saco com os pães, e vai-se embora. Ele queria poder ver mais, mas sua estada no inferno, embora breve, já pesava muito em sua própria alma. Por um momento, se imaginou como aqueles que vivem naquela escuridão, nas trevas do inferno terreno, perdido, sem esperança... Caminhando junto aos mortos... Não foi uma boa imagem [1].

O crack é uma droga feita da mistura de cocaína com bicarbonado de sódio e outros pedaços de sujeira pelo caminho. Geralmente, é fumada. A fumaça produzida pela queima da pedra de crack chega ao sistema nervoso central em dez segundos, devido ao fato de a área de absorção pulmonar ser grande. Seu efeito dura de 3 a 10 minutos, com efeito de euforia mais forte do que o da cocaína, após o que produz muita depressão, o que leva o usuário a usar novamente para compensar o mal-estar, provocando intensa dependência. Não raro o usuário tem alucinações e paranoia... Na cracolândia, vive-se em intervalos esporádicos de alguns minutos, numa semivida eufórica e mecânica que se esvai tão logo chega, como um estranho sonho curto em meio a um pesadelo. No resto do tempo, se morre.

Desde 2005, a Prefeitura de São Paulo tem se dedicado, timidamente, a restaurar a área da cracolândia. Sua ideia de restauração passa pelo fechamento de bares e hotéis ligados a prostituição e ao tráfico de drogas, o aumento do policiamento e a desapropriação de centenas de imóveis numa tentativa de criar “bolsões” onde a iniciativa privada se sinta a vontade para investir. Os moradores de rua, catadores de material reciclável e dependentes de drogas que perambulam pelo inferno vão sendo expulsos aos poucos – sabe-se lá para onde, mas certamente hão de levar seu inferno junto com eles... Muitos grupos de menores de rua dependentes, impedidos de caminhar por seu inferno particular, perambulam sem rumo pelos bairros vizinhos. Bandos e bandos de crianças que, mal tendo nascido, já se encontram mortas...

Na verdade, muitas grandes cidades do mundo em desenvolvimento têm suas cracolândias, seus infernos, para onde se dirigem todos aqueles sem rumo, perdidos de suas almas, que deixaram a si mesmos em algum canto, em alguma esquina, em alguma estrada, e nunca mais encontraram... E muitos se dizem sensibilizados, se dizem “cristãos”, mas se sentem mais a vontade o mais longe possível do inferno. Quase ninguém quer ir para o inferno, contanto que lá não se encontre nenhum parente, familiar, ou grande amigo. Ninguém quer em realidade saber de onde andam os mortos: “deixem que fiquem por lá, morrendo, aos poucos, mas longe, muito longe de nós!”.

E tratamos aos dependentes como seres perdidos, sem volta, condenados. Mas não são todos que pensam assim... A Missão Batista Cristolândia, como foi chamada, é a sede de todos os batistas que desejam capacitação no trabalho de evangelização de dependentes químicos e excluídos socialmente. Como apresenta a coordenadora local do Radical Brasil, missionária Soraya Machado: "A Missão é a resposta dos batistas brasileiros a esta atrocidade chamada cracolândia". O quartel general do Radical Brasil está localizado dentro da cracolândia e nesse espaço são oferecidas 300 refeições diárias - café, almoço e janta, espaço para banho, lavanderia, doação de roupas e calçados. Além do amparo social, o investimento espiritual é alto, com quatro cultos por dia nos períodos da manhã, tarde, noite e madrugada... Felizmente, alguns ainda são crentes o suficiente no ser humano, crentes a ponto de imaginarem que podem sim, adentrar ao próprio inferno, e sair de lá não com demônios ou mortos-vivos, mas com pessoas que podem sim viver uma vez mais.

Nós podemos criticar os evangélicos e crentes fervorosos por algumas de suas crenças descabidas, mas enquanto existirem crentes da esperança, crentes da vida que pode vencer a morte, todas as suas exaltações serão não somente perdoadas pelos que adoram a vida, mas admiradas... Nesse aspecto, pouco importa a crença ou descrença de cada um, e sim os frutos de suas obras, sua caridade, seu amor. É muito fácil desistir dos dependentes como se esses não fossem mais seres vivos, como se não tivessem mais almas, ou, pelo menos, como se não houvesse mais nenhuma esperança de as reencontrarem pela estrada... Mas a alma perdura, em meio ao mais pavoroso inferno, nos vales das sombras e da morte, ela não teme o mal, ela permanece ali, impávida, esperando ser resgatada – como a mais pura e inocente criança a chorar pela estrada: “Veja, aqui estou eu. Venha e salva-me! Venha e cuida de mim! Venha e me ame, que eu também te amarei...”

Paracelso já dizia que a diferença entre o veneno e o remédio é apenas a dose. As drogas e os vícios podem sim nos permitir escapar da tristeza perene da vida, mas o custo é alto: é a própria vida. Ao aprendermos a encarar a melancolia de frente, face a face, poderemos quem sabe perceber que mesmo ela, mesmo ela, era apenas uma dose do leve veneno da vida, mas dose esta que também pode virar um grande remédio... Se estamos intoxicados de angústias, devemos também tentar nos intoxicar de alguma sabedoria, e compreender que há sempre tempo de recomeçar – mesmo o nosso próprio corpo, em sua renovação incessante, será um novo corpo assim que nos limparmos do charco de toxinas químicas e nos banharmos na água cristalina de um rio, uma cachoeira, um oceano, ou da própria vida.

E então, quem sabe, poderemos passar a nos intoxicar da única substância que, independente da dose, só nos fará avançar, mais e mais, cada vez mais, para um céu de liberdade, e felicidade – sejamos todos dependentes do amor, e apenas dele, para que todos os infernos se façam céus, toda a indiferença se faça dor, e toda compaixão, fortaleza intransponível.

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[1] Este trecho foi inteiramente baseado no depoimento de um amigo.

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Crédito das fotos: [topo] AMCCE; [ao longo] ALESP

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25.11.11

Intoxicados, parte 2

« continuando da parte 1

Parece cocaína, mas é só tristeza... Muitos temores nascem do cansaço e da solidão; Descompasso, desperdício – herdeiros são agora da virtude que perdemos... (Legião Urbana)

A guerra dos 50 anos

Se você quer afastar seu filho, filha, ou algum familiar querido, ou amigo, das drogas, fará bem em começar por desiludi-los da lenda de que as drogas fazem sempre mal... Não é verdade, obviamente: se fosse assim, na primeira dose de cachaça um adolescente iria cuspir aquele terrível gosto amargo no chão e nunca mais pensaria em beber novamente. Porém, se esta fosse à regra, não haveriam bebidas alcoólicas sendo vendidas quase como água pelo mundo afora. Pode ser amargo no início, mas depois fica doce, e depois, se exagerarmos na dose, fica amargo de novo; Só que uma amargura muito mais triste – a amargura que anestesia a alma.

Outras drogas podem ser doces desde a primeira dose, gerando “grandes viagens psíquicas” que já chegaram até a inspirar alguns grandes artistas, contanto que sejam usadas com parcimônia – o que raramente é o caso. Você pode subir no pedestal da moralidade e avisar aos desavisados: “Tomem muito cuidado, pois o caminho das drogas é doce somente no início, depois provoca grande tristeza!” – Mas, devemos considerar que há alguns seres civilizados e cultos da pós-modernidade, assim como muitos miseráveis e oprimidos, que, de uma forma ou de outra, constataram que na vida só existe tristeza – Se pelo menos nas drogas conseguem um pouco de doçura aqui e ali, ainda estarão saindo no lucro... São essas tais máquinas tristes, com tendências suicidas, que não veem nenhum problema em se suicidar aos poucos, uma bala, uma cheirada, uma seringa de cada vez.

O vício em drogas produz verdadeiros zumbis psíquicos, incapazes de sentir quase nada de realmente profundo (ou seja, capaz de lhes tocar a alma) no transcorrer de sua fase viciada. Pode parecer terrível, mas ainda assim conseguem o que queriam desde o princípio: não sentir mais aquela melancolia, aquela angústia de terem de cuidar das próprias almas... Ainda que assim também se abstenham de sentir felicidade, está tudo bem: podem então “viajar” nas drogas, até que sua viagem pela vida, uma viagem que não veem muito sentido de ser, em todo caso, finalmente chegue ao fim.  

Porém, o mais incrível em toda essa história é o fato de que alguns dos maiores governos do mundo, influenciados ou não pelas grandes doutrinas religiosas, acreditem até hoje que a repressão é o melhor caminho para se resolver o problema, deixando o tratamento dos zumbis em (décimo) segundo plano, como que se eles fossem efetivamente zumbis, e não mais seres; Não mais pessoas em busca de alguma doçura real nessa vida; Não mais almas atormentadas, mas que podem ainda ser curadas.

A chamada lei seca total entrou em vigor nos EUA em 1920, promulgada durante o segundo mandato de Woodrow Wilson. Seu cumprimento foi amplamente burlado pelo contrabando e fabricação clandestina de bebidas alcoólicas. A lei seca foi abolida em 1933, já no primeiro mandato de Roosevelt. Permaneceu ativa por quase 14 anos... Enquanto esteve efetiva, veio contribuir para o aumento das fortunas de vários mafiosos, dos quais o mais conhecido é, sem dúvida, Al Capone. A sua revogação veio ajudar a débil recuperação econômica (devido ao “crash” da Bolsa em 1929), mas essencialmente contribuiu para o final do período de ouro da máfia norte-americana. Esta década e meia de proibição do álcool em uma sociedade capitalista – e que preza a liberdade – nos ensinou muito acerca da natureza humana, e de sua propensão para a ilegalidade e violência, se for o caso, para conseguir chegar aos seus objetos de desejo ou, pelo menos, aos seus anestesiadores de almas...

No Corão (5:91) é dito que “Satã apenas deseja suscitar a inimizade e o ódio entre vós com intoxicantes e jogo, e impedir-vos de lembrardes de Alá e da prece. Sendo assim, não ireis vos abster?”; Não chega a ser uma proibição cabal, mas uma espécie de aconselhamento... Mesmo assim, ainda que as bebidas alcoólicas tenham sido largamente consumidas no mundo islâmico (e principalmente no período de ouro do Islã, em Al-Andalus), ainda hoje há inúmeros países islâmicos que punem o tráfico de entorpecentes mais pesados, como cocaína e heroína, com a pena de morte. Aparentemente funciona: com a pena de morte em estados totalitários, o tráfico de drogas ilegais é quase nulo nos países do Islã. A questão é que não apenas os traficantes são punidos e perseguidos, mas também os usuários. Aqui está a solução: matar todos os zumbis (que, em todo caso, já buscam a morte)... E então estaremos supostamente seguindo o desejo de algum deus estranho. Para os islâmicos, parece ter resolvido, ou pelo menos enquanto mantém sua população sob o jugo totalitário de seus estados teocráticos. Até que venham as primaveras árabes.

Mas, estranho de se pensar, a grande diversão dos bares islâmicos é fumar narguilé enquanto conversamos com os amigos... Lá, na terra onde quase todos os entorpecentes são proibidos, fuma-se tabaco (e outras especiarias) com essa espécie de cachimbo d’água, à vontade... Então, talvez nem lá, nem lá a questão esteja totalmente resolvida. Hoje a ciência sabe que o tabaco é bem mais prejudicial à saúde do que, por exemplo, a cannabis, entretanto a cannabis é ilegal em quase todo mundo, e a grande fonte de renda dos traficantes de drogas ilegais, enquanto que o tabaco é perfeitamente aceito (com algumas ressalvas) em todo o mundo, inclusive no islâmico...

Segundo a AVAAZ, nos últimos 50 anos as políticas atuais de combate às drogas falharam em toda a América Latina, mas o debate público está estagnado no lodo do medo, da corrupção e da falta de informação. Todos, até o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, que é responsável por reforçar essa abordagem, concordam – organizar militares e polícia para queimar plantações de drogas em fazendas, caçar traficantes, e aprisionar pequenos traficantes e usuários – tem sido completamente improdutivo. E ao custo de muitas vidas humanas – do Brasil ao México, e aos Estados Unidos, o negócio ilegal de drogas está destruindo nossos países, enquanto as mortes por overdose continuam a subir.

Enquanto isso, países com uma política menos severa – como Suíça, Portugal, Holanda e Austrália – não assistiram à explosão no uso de drogas que os proponentes da guerra às drogas predisseram. Ao invés disso, eles assistiram à redução significativa em crimes relacionados a drogas, e são capazes de focar de modo direto na destruição de impérios criminosos.

Lobbies poderosos impedem o caminho da mudança, inclusive militares, polícias e departamentos prisionais cujos orçamentos estão em jogo. E políticos de toda nossa região temem ser abandonados por seus eleitores se apoiarem abordagens alternativas. Mas pesquisas de opinião mostram que cidadãos de todo o mundo sabem que a abordagem atual é uma catástrofe.

Parece complexo, mas pode ser simples como uma partida de futebol: em time que esta ganhando não se mexe, mas em time que está perdendo ou, no máximo, amargando um empate em 0 a 0 ou 1 a 1, devemos pensar em mudanças, nem que sejam provisórias, nem que sejam apenas para que ganhemos o primeiro jogo deste longo campeonato... Se pararmos de dar murro em prego nos próximos anos, a guerra de 50 anos do combate às drogas no mundo ocidental poderá ficar conhecida por nossa história como a primeira tentativa, mas que não deu certo, e nos levou as próximas. Mas, se não pararmos para reavaliar a situação, poderemos chegar a um século de guerra inútil, com máquinas tristes cada vez mais tristes, grandes cidades cada vez mais violentas, playboys cada vez mais alienados, e zumbis cada vez mais aterrorizantes... Para um filme de horror, não está nada mal.

Nós pedimos que vocês acabem com a guerra às drogas e o regime de proibição, e movam-se em direção a um sistema baseado em descriminalização, regulamentação, saúde pública e educação. Essa política de 50 anos falhou, abastece o crime organizado violento, devasta vidas e está custando bilhões. É hora de uma abordagem humana e efetiva (AVAAZ; Manifesto endereçado a ONU, que neste momento conta com quase 650mil assinaturas online).

» Na continuação – um passeio pelo Inferno.

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» Veja também o post Intoxicados: o fim da guerra, que complementa esta parte da série.

Crédito da foto: Mauricio Abreu/JAI/Corbis

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22.11.11

Intoxicados, parte 1

Droga é toda e qualquer substância, natural ou sintética, que quando introduzida no organismo, modifica suas funções de forma considerável; Particularmente alterações nos sentidos, no caso dos entorpecentes.

Um drama persistente

Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774) é um romance de Johann Wolfgang von Goethe. Marco inicial do romantismo, considerado por muitos como uma obra-prima da literatura mundial, é uma das primeiras obras do autor, de tom autobiográfico. Werther – o protagonista – é marcado por uma paixão profunda e tempestuosa, marcada pelo fim trágico. Com seu suicídio, devido ao amor aparentemente não correspondido, Goethe põe um pouco de sua vida na obra, pois ele também vivera um amor não correspondido, apesar de, evidentemente, não ter cometido o ato de se matar. Em todo caso, tão profundamente descrito foi o drama e o suicídio do jovem Werther, que nos anos seguintes a publicação, diversas pessoas se mataram de forma semelhante na Alemanha e, em vários casos, um exemplar do livro era encontrado ao lado do corpo.

É sempre complexo lidar com os momentos em que a vida simplesmente parece não se desenrolar da maneira que esperávamos, que gostaríamos, particularmente nos casos de sentimentos não correspondidos. Sem dúvida que, quando éramos caçadores nômades, tais angústias provavelmente sequer tinham espaço em nossa mente: era preciso sobreviver, não havia muito tempo para refletir sobre a vida... Estranho de se pensar: foi exatamente quanto nos assentamos em grandes e luxuosas cidades, quando tínhamos comida fresca na geladeira e acesso fácil ao conhecimento elaborado da natureza, que passamos a nos angustiar com a vida. Será que a vida foi feita para vivermos sem exatamente pensarmos sobre ela?

Paradoxalmente, ao termos tempo de sobra para refletir sobre nossa própria vida, por vezes acabamos por, ao invés de celebrá-la e aproveitar o tempo livre para viver, criar uma enorme dramaturgia que insiste em tornar tudo cinza e melancólico, ao nos reafirmar que, ao contrário do que pensávamos, a vida não transcorre sempre da maneira que gostaríamos... Se é assim, vale a pena viver? A grande ironia é que o “mal do século”, a depressão, quase que sempre se caracteriza por um medo persistente da morte. Então, por nos angustiarmos com a vida, principalmente por temer a morte, acabamos por deixar de aproveitar este precioso momento do existir. Então, parafraseando o Dalai Lama, vivemos como se não fôssemos morrer, mas com grande medo da morte, e por fim morremos como se não houvéssemos sequer vivido, pois que foi uma vida de medo.

A primeira causa de morte por atos de violência no mundo não são os acidentes de trânsito, os homicídios nem os conflitos armados, mas o suicídio. Esse dado desconcertante foi revelado em 2002, numa reunião da Organização Mundial de Saúde (OMS) em Bruxelas. Ao lê-las (aparentemente pela primeira vez) para os convidados da cerimônia, o então primeiro-ministro da Bélgica, Guy Verhofstadt, não conteve o susto e, quebrando o protocolo, indagou incrédulo: “É isso mesmo?”. Sim, é isso mesmo, a pós-modernidade tem nos relegado esta herança macabra, em que uns optam por findar sua dramaturgia encerrando a própria vida, enquanto outros optam por viverem como se nem mesmo estivessem por aqui...

Ao longo do tempo, muitos encontraram refúgio dessa angústia na anestesia da própria alma... A lista das substâncias que deveriam vencer as depressões, mas que sempre ajudaram apenas alguns afetados, é muito longa. No decorrer dos séculos, os médicos testaram quase tudo o que influenciava o cérebro de alguma forma. O ópio já era considerado na antiga China um meio eficaz contra as doenças do ânimo. O “tratamento com ópio” devia curar a melancolia, mas devido ao seu enorme risco de vício, ao longo dos séculos as pessoas desistiram da droga (mas nem todas), sendo que ela há muito deixou de ser compreendida como um remédio para a angústia.

Em 1802, um médico londrino recomendava um pesado Borgonha contra a melancolia. A cannabis e a cocaína também eram comumente utilizadas no século 19 como medicamento. Nos anos 50, entraram em voga as anfetaminas estimulantes. Em 1953, causou sensação uma notícia que dizia que o medicamento utilizado para tuberculose, a iproniazida, também tinha efeito antidepressivo. Alguns anos mais tarde, porém, ele foi tirado do mercado, pois pode causar graves efeitos colaterais no organismo. De lá para cá, entretanto, temos observado uma grande corrida da indústria farmacêutica mundial em busca de antidepressivos cada vez mais eficazes e com menos efeitos colaterais... Ou, pelo menos, é o que o grande mercado da melancolia gostaria que vocês acreditassem.

Em 2008, o psicólogo Irving Kirsch, da universidade britânica de Hull, examinou os documentos americanos da autorização de quatro novos depressivos. Os produtos, aparentemente ajudavam apenas pacientes com depressão grave. À primeira vista, parecia que as substâncias mitigavam os sintomas da patologia independentemente de sua gravidade. Ora, formas mais amenas de melancolia costumam regredir naturalmente após certo tempo. Essas “curas espontâneas” são tanto mais comuns quanto mais leves forem os estados depressivos. Nos estudos de Kirsch comprovou-se que nos estágios de depressão leve, faz pouquíssima diferença se os pacientes usaram antidepressivos ou placebo (por exemplo, pílulas de farinha). Somente em depressões mais sérias a diferença estatística entre o preparado e o placebo se torna realmente relevante.

Não quero aqui, obviamente, dizer que depressivos devem deixar de se medicar. Muito pelo contrário, estou, como Kirsch, enaltecendo que os remédios são de grande auxílio, contanto que o paciente esteja efetivamente depressivo... A indústria farmacêutica é, ironicamente, junto com a indústria do comércio ilegal de drogas, um dos grandes mercados mundiais, provavelmente com as taxas de lucro mais elevadas – ao lado da indústria de armamentos. Estamos, pois, vivendo na era do culto ao lucro, capitaneada pelo deus do consumo. Não é nenhuma surpresa, portanto, que o seu grande profeta, o deus da tarja-preta, surja como o grande agente de barganhas por todas as partes do mundo capitalista.

É fácil compreender: se as indústrias deixam de visar apenas o auxílio à cura efetiva, e passam a dar prioridade às margens de lucro, me parece óbvio que seja cada vez mais comum às pessoas serem diagnosticadas apressadamente como depressivas. E, igualmente compreensível, que cada vez mais remédios antidepressivos sejam facilmente recomendados, mesmo nos casos em que não têm eficácia muito distante de uma pílula de farinha... Cada vez mais, o tratamento psicoterápico, tão essencial, é relegado a uma mera medição mecânica onde supostamente se mede um estado de tristeza e se receita antidepressivos X ou Y como tratamento. Cada vez mais, somos que tratados como máquinas complexas que, por alguma estranha razão, estão preferindo se anestesiar a encarar a própria melancolia, e viverem como se não estivessem mais aqui... Para o deus tarja-preta, no entanto, tudo está perfeitamente bem, contanto que não se matem, contanto que não parem de comprar suas maravilhosas “pílulas de felicidade comprimida”.

Mas, as estatísticas da OMS não mentem: não tem dado certo. As máquinas tristes continuam se matando, continuam preferindo se desligar a enfrentar o drama persistente da vida... Talvez fosse a hora de voltarmos a uma medicina de vida, e não de anestesia da vida. A um entendimento de que somos, afinal, seres, e não máquinas, por mais que isso contrarie o materialismo em voga. No fim, o que parece nos salvar da angústia do mundo é algo que sempre esteve dentro de nós mesmos, mas que em nossa dramaturgia encenada cuidadosamente para que continuássemos a buscar algo lá fora, e não aqui dentro, acabamos por ignorar, e a viver como se não tivéssemos uma alma para tomar conta.

Tomar conta de uma alma é uma grande responsabilidade. Requer a compreensão dos eventos da vida que podemos mudar e, sobretudo, daqueles que não podemos. Requer o olhar para si mesmo, e encarar de frente os momentos de tristeza... Não como o jovem Werther, que apostou toda a sua felicidade, toda a sua vida, no sentimento de outro alguém, mas como todo ser que está em via de desenvolvimento, e de lenta aquisição de sabedoria, e que aposta toda a sua vida na própria vida, na existência em si, neste divino momento, e apenas nele.

Há outros, porém, que foram ainda mais iludidos: que aprenderam a se entorpecer, e se tornarem insensíveis para a melancolia, ainda antes que ela viesse...

» Na continuação – o grande dilema do combate às drogas: reprimir ou tratar?

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Bibliografia
As informações científicas e estatísticas do artigo foram retiradas dos artigos Antidepressivos são mesmo eficazes?, pelo psicólogo e jornalista Jochen Paulus, que foi matéria de capa da revista Scientific American – Mente & Cérebro #226 (Duetto); e Escalada do suicídio, pela jornalista científica Luciana Christante, autora do blog Efeito Adverso.

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Crédito da imagem: Corbis

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