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24.9.19

Do que é formado o espírito?

Neste vídeo contaremos com a ajuda de Allan Kardec para tentar responder se os espíritos são, afinal, materiais ou imateriais. Também adentraremos em conceitos da filosofia e da ciência para tentar compreender melhor a resposta desta questão.

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13.10.15

Sheldrake contra a ortodoxia científica

Entre 2007 e 2008, quando participava de produtivos fóruns de discussão online sobre fé e razão no saudoso Orkut, acabei dialogando com um sujeito (que chamarei aqui de Flávio, embora não seja o nome real, pois não se trata de pessoa pública) que tinha uma fé cristã tão arraigada que acreditava piamente que tudo o que ocorria no universo era uma ação direta de Deus.

Me lembro de haver perguntado ao Flávio assim: "Mas se eu estou aqui digitando e discordando de você, pois creio que guardo uma certa liberdade própria, então seria Deus que estaria me fazendo digitar cada tecla do meu teclado e enviar esse texto para você?"... Flávio respondeu que sim. Esse tipo de negação total de qualquer espécie de liberdade ou livre-arbítrio sempre me pareceu um tanto radical, embora não admirasse menos a fé de Flávio por conta disso, visto que ele sempre me tratou educadamente, apesar de discordar do meu pensamento.

O mesmo tipo de espanto eu senti ao me deparar com os materialistas mais radicais, ou poderia-se dizer, mais fiéis a premissa básica do materialismo. Filósofos como o americano Daniel Dennett defendem que a consciência não existe, e aquilo que entendemos pelo "ato de se estar consciente" não passa de uma ilusão cerebral. Materialistas eliminativos como Dennett creem piamente que todas as nossas escolhas são fruto de reações químicas em nosso cérebro, e que os cerca de 4% da matéria e energia detectadas no universo são suficientes para explicar todos os processos conscientes.

Eu continuo até hoje espantado com o fato da mente humana conseguir chegar a extremos de crença como os dois citados acima, e até já escrevi um artigo sobre isso...

Mas felizmente existem mentes mais céticas e curiosas, que ainda creem não somente em sua própria liberdade de conhecer e questionar o mundo, como conseguem fazer isso através do próprio método científico. Nesta palestra para o TED, o biólogo britânico Rupert Sheldrake questiona diretamente os maiores dogmas do materialismo científico, e critica a Academia por limitar o escopo da ciência moderna ao se manter presa a dogmas do século XIX. O mais interessante é que Sheldrake não é um "cientista qualquer": possui mais de 80 artigos científicos publicados (inclusive na Nature), além de 10 livros (um deles o monumental Ciência sem Dogmas, que ele menciona no vídeo) e diversos artigos que ainda hoje aparecem com certa regularidade em reconhecidos jornais ingleses.

Talvez por isso tal palestra tenha sido "banida" do canal do TED no YouTube, devido a pressão de cientistas mais ortodoxos, digamos assim. É claro que isso só fez o interesse pelo que Sheldrake diz nela aumentar enormemente, de modo que somente um dos "espelhos" dela no YouTube já se aproxima de um milhão de visualizações.

Antes de escutarem ao que ele tem a dizer, no entanto, vale lembrar duas coisas: (1) A intenção de Sheldrake não é substituir o dogma materialista por algum dogma religioso, tanto pelo contrário – a despeito do que dizem por aí, as suas teorias também vão contra visões de mundo muito mais antigas do que o materialismo do século XIX; (2) O fato de Sheldrake chegar a questionar consensos estabelecidos, como até mesmo se a velocidade da luz é realmente constante, não significa que ele tenha razão em sua crítica, apenas levanta uma via de pesquisa que pode eventualmente nos trazer uma visão mais abrangente das "leis naturais" – o que é certamente mais de acordo com a ciência genuína do que termos a velocidade da luz estabelecida "por decreto", como ocorre hoje.

E agora, com vocês, o homem que desafiou a Academia:

***

Crédito da imagem: Google Image Search/Red Ice Radio

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8.10.15

A ciência e os seus dogmas

Trechos de Ciência sem Dogmas, de Rupert Sheldrake (editora Cultrix). Tradução de Mirtes Pinheiro. Os comentários ao final são meus.


Há mais de duzentos anos, os materialistas prometeram que a ciência explicaria tudo sob a ótica da física e da química. A ciência provaria que os organismos vivos são máquinas complexas, que a mente nada mais é do que atividade cerebral e que a natureza é desprovida de propósito. As pessoas apoiam-se na fé de que as descobertas científicas justificarão suas crenças.

Karl Popper, filósofo da ciência, chamava essa postura de “materialismo promissório”, pois depende de notas promissórias por descobertas que ainda não foram feitas. Apesar de todas as conquistas da ciência e da tecnologia, atualmente o materialismo está enfrentando uma crise de credibilidade que seria inimaginável no século XX.

[...] A preposição fundamental do materialismo é de que a matéria é a única realidade. Portanto, a consciência nada mais é do que atividade cerebral. É como uma sombra, um “epifenômeno”, que não faz nada, ou apenas outra maneira de falar sobre atividade cerebral. No entanto, os pesquisadores de neurociência e estudos da consciência não chegaram a um consenso sobre a natureza da mente.

Revistas respeitadas como Behavioural and Brain Science e Journal of Counsciousness Studies publicam muitos artigos que revelam problemas profundos na doutrina materialista. O filósofo David Chalmers chamou a própria existência da experiência subjetiva de “problema difícil [da consciência]”. Difícil porque desafia uma explicação em termos de mecanismos. Mesmo que compreendamos como os olhos e o cérebro reagem ao farol vermelho, a experiência de [interpretar o] vermelho não é levada em consideração.

Na biologia e na psicologia, o grau de credibilidade do materialismo está em queda. Será que a física pode vir em seu socorro? Alguns materialistas preferem denominar-se fisicalistas, para enfatizar que suas esperanças dependem da física moderna, e não de teorias sobre a matéria do século XIX. Mas o grau de credibilidade do fisicalismo foi reduzido pela própria física, por quatro razões.

Em primeiro lugar, alguns físicos insistem em afirmar que a mecânica quântica não pode ser formulada sem levar em consideração a mente dos observadores. Eles alegam que a mente não pode ser reduzida à física, porque [a] física [também] pressupõe a mente dos físicos.

Em segundo lugar, as mais ambiciosas teorias unificadas da realidade física, a teoria das cordas e a teoria M, com dez e onze dimensões, respectivamente, levam a ciência para um território totalmente novo.

[...] Em terceiro lugar, desde o início do século XXI, ficou claro que os tipos conhecidos de matéria e energia representam apenas cerca de 4% do universo. O restante consiste em “matéria escura” e “energia escura”. A natureza de 96% da realidade física é literalmente obscura.

Em quarto lugar, o Princípio Antrópico Cosmológico afirma que, se as leis e constantes da natureza tivessem sido ligeiramente diferentes no momento do Big Bang, jamais poderia ter surgido vida biológica e, portanto, não estaríamos aqui para pensar sobre isso. Então, será que uma mente divina ajustou as leis e as constantes no início?

Para evitar que um Deus criador surgisse numa nova forma, quase todos os principais cosmólogos  preferem acreditar que o nosso universo é apenas um entre um vasto, talvez infinito, número de universos paralelos, todos com diferentes leis e constantes, como também sugere a teoria M. Acontece que simplesmente existimos no universo que tem as condições certas para nós.

A teoria do multiverso é a suprema violação da navalha de Occam, princípio filosófico segundo o qual “as entidades não devem ser multiplicadas além do necessário”, ou, em outras palavras, devemos fazer o menor número possível de pressuposições. Essa teoria também tem a desvantagem de não poder ser testada, tampouco consegue se livrar de Deus. Um Deus infinito poderia ser o Deus de um número infinito de universos.

O materialismo apresentou uma visão de mundo aparentemente simples e direta no final do século XIX, mas que a ciência do século XXI deixou para trás. Suas promessas não foram cumpridas e suas notas promissórias foram desvalorizadas pela hiperinflação.

Estou convencido de que a ciência está sendo restringida por pressuposições que se enrijeceram em dogmas, mantidos por fortes tabus. Essas crenças protegem a cidadela da ciência tradicional, mas age como uma barreira ao pensamento aberto.


Comentários
Quando um cientista “desafia a visão dogmática” da Academia, logo surgem os seus detratores. O que eles costumam afirmar é que “não se trata de um cientista relevante”, ou ainda levantar a questão, “mas qual foi a contribuição dele para a ciência”?

Como se fosse necessário que alguém fizesse uma grande contribuição científica, ou tivesse artigos publicados em revistas de renome, como a Nature, para poder criticar a ortodoxia da Academia...

De qualquer forma, no caso específico deste cientista, ambas as “exigências” acima foram cumpridas. Rupert Sheldrake é um biólogo e bioquímico inglês de renome, que além de ter publicado mais de oitenta artigos científicos e uma dezena livros, já foi o convidado de diversos programas de divulgação científica de grande audiência na TV, como por exemplo o Grandes Mistérios do Universo, apresentado por Morgan Freeman (no Brasil, passa no Discovery Science, na TV a cabo).

Entre as suas importantes contribuições científicas, se destacam a descoberta do mecanismo de transporte da auxina em vegetais, assim como o auxílio no detalhamento da “morte celular programada”, que se tornou um campo de pesquisa vital no estudo de doenças como o câncer e a Aids, bem como da regeneração de tecidos pelas células-tronco. Na Índia, ainda participou no desenvolvimento de técnicas de cultivo em clima semi-árido, hoje amplamente usadas em todo o mundo.

Ou seja, este livro incomoda, pois não se trata do pensamento de um cientista “de pouco renome”. Viva-se com esse barulho.

O objetivo de Sheldrake, no entanto, não é substituir o dogma materialista por algum antigo dogma espiritualista. Ele quer somente romper a represa dogmática que tem restringido enormemente o atual pensamento científico, particularmente dos cientistas que, exatamente por terem obtido relativo sucesso em suas carreiras, ficam cada vez mais preocupados com “o que vão pensar lá na Academia” a toda a vez que falam sobre assuntos científicos heterodoxos.

O biólogo inglês é, sobretudo, um grande crítico da ideia de um “relojoeiro cego”, uma metáfora alçada à fama por Richard Dawkins para explicar como um universo complexo pode ter surgido do “acaso cego”. Ora, o que Sheldrake combate não é propriamente a ideia de “cegueira”, mas o conceito de que o universo é como um “relógio”, ou “alguma espécie de máquina que está lentamente perdendo o vapor”.

Não, segundo ele, o universo se parece muito mais com um organismo vivo, assim como todos os seres vivos dentro dele. Ao longo desse livro extraordinário o que ele tenta nos explicar é que, no final das contas, o materialismo em sua visão mecanicista sequer consegue encontrar as metáforas adequadas para explicar o que quer dizer – em suma, que não somos consciências que interpretam o mundo, mas tão somente máquinas que computam e guardam informações.

Afinal de contas, nenhum gene pode ser realmente “egoísta” nem muito menos “aspirar a imortalidade”, e ainda que o universo inteiro operasse efetivamente como um relógio, tudo o que um relógio pode fazer é apontar para algo muito maior e mais transcendente. O tempo não pode ser reduzido às engrenagens de um relógio, assim como a consciência e a subjetividade ultrapassam em muito a tentativa de explicar o que são utilizando somente 4% do que existe.

***

Crédito da imagem: Harfian Herdi

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31.1.14

O ornitólogo confuso

O ponto de partida para a compreensão da filosofia de Arthur Schopenhauer é o conceito de representação.

Representação, em sua obra, é a atividade fisiológica que ocorre no cérebro de um ser humano (ou outro animal) ao fim da qual temos a formulação de uma imagem percebida pelo sujeito. A representação é uma tradução que nossos sentidos fazem a partir de informações advindas do “mundo exterior” – portanto, o mundo que percebemos se trata de uma construção mental.

Até aqui nem mesmo os materialistas eliminativos discordariam dele, pois, mesmo crendo que “a subjetividade é uma mera ilusão cerebral”, ainda assim devem crer que esta “ilusão” também faz parte de uma construção mental (embora no caso deles o termo “construção mental” queira dizer, sempre, “construção cerebral”).

Em sua obra prima, O mundo como vontade e representação, o filósofo alemão inicia seu argumento contra o materialismo eliminativo com um elogio aparente a filosofia objetiva, que “parte do objeto (no mundo exterior)” para “compreender o todo”:

A filosofia objetiva, quando se apresenta sob a forma do materialismo puro, é aquela cujo desenvolvimento pode ser mais completo. Este sistema coloca antes de tudo a existência absoluta da matéria, e por consequência a do espaço de do tempo, suprimindo assim a relação da matéria com o sujeito, relação essa da qual, não obstante, a matéria tira sua única realidade.

Depois, apoiado na lei da causalidade, que toma por uma ordem de coisas em si, prossegue a sua marcha, saltando sobre o entendimento, no qual e pelo qual apenas a causalidade existe. Feito isso, procura descobrir um estado primitivo e elementar da matéria de onde possa tirar, através de um desenvolvimento progressivo, todos os outros estados, desde as propriedades mecânicas e químicas até a polaridade, a vida vegetativa e por fim a animalidade. [...] O último elo da cadeia será a sensibilidade animal, ou o conhecimento, que aparecerá assim como uma simples modificação da matéria, produzida em consequência da causalidade.
[1]

Mas a esta aparente exaltação da capacidade da filosofia objetiva “explicar a tudo”, se segue um choque de realidade profundamente filosófico:

Admitamos que pudéssemos seguir até o fim e com o testemunho das representações intuitivas da explicação materialista; uma vez chegados ao topo, seríamos subitamente tomados desse riso inextinguível dos deuses do Olimpo, quando, despertando de um sonho, fizéssemos, de repente, essa descoberta inesperada: que o último resultado tão penosamente adquirido, o conhecimento, estava já implicitamente contido no dado primeiro do sistema, a simples matéria; assim, quando, como no materialismo, nos imaginávamos a pensar a matéria, o que pensávamos na realidade era o sujeito que a representa para si, o olho que a percebe, a mão que a toca, o espírito que a conhece. [1]

Parece um problema e tanto a ser resolvido pela filosofia objetiva!

Não é a toa que os materialistas eliminativos pretendem, como o nome já indica, “eliminar o sujeito”. Não é a toa que eles tendem a ver a vida humana e um “futuro computador com capacidade de processamento suficiente” como uma mesma coisa, uma “coisa que somente computa informações”, pois que toda a interpretação é e sempre foi mera ilusão. Parece uma via radical demais a ser seguida, mas há declarações como esta, do arqueólogo Peter Watson, que indicam que realmente existem aqueles que a seguem a risca:

As ciências sociais, psicológicas e cognitivas permanecem enlatadas em palavras e conceitos pré-científicos. Para muitos de nós, a palavra “alma” é tão obsoleta quanto “flogístico”, mas os cientistas ainda usam palavras imprecisas como “consciência”, “personalidade” e “ego”, para não falar em “mente”. Talvez seja hora de, pelo menos na ciência, remodelar “imaginação” e “introspecção”, ou, de preferência, retirá-las. Os artistas ainda podem divertir-se com esses conceitos, mas os assuntos mundiais sérios já seguiram em frente. [2]

Faz sentido eliminarmos o termo “imaginação” de um dicionário materialista, mas o mero fato do termo haver sido eliminado significa, por si só, que a capacidade humana de imaginar também deixou de existir? Pois bem, é mais ou menos por esta via que Schopenhauer prossegue em seu argumento:

Ora, esta suposta realidade objetiva é um dado puramente indireto e condicionado; ela tem apenas uma existência completamente relativa: a coisa [o objeto], com efeito, deve passar primeiro pelo mecanismo do cérebro e ser transmitida por ele, entrar em seguida nas formas do entendimento – tempo, espaço, causalidade – antes de aparecer, graças a esta última elaboração, como extensa no espaço e ativa no tempo.

[...] A esta afirmação, de que o pensamento é uma modificação da matéria, será sempre permitido opor a afirmação contrária: de que a matéria é um simples modo do sujeito pensante. Em outras palavras, uma pura representação. [1]

Assim podemos representar esta busca pela explicação definitiva do mundo que parte da matéria, do objeto externo, com uma alegoria:

Havia um ornitólogo, isto é, um biólogo que estuda espécies de pássaros, que ouviu falar de uma ave muito rara, de uma beleza tão impactante que muitos que a comtemplaram mal a souberam descrever em palavras. Como cético em relação a meros boatos, porém extremamente curioso em relação à Natureza, o ornitólogo decidiu sair numa busca para descobrir se, afinal, tal ave existia realmente.

Colocou seu longo chapéu de caçador, buscou sua maleta cheia de apetrechos científicos, vestiu suas galochas e seguiu em sua jornada investigativa. Por dias, meses, anos, encontrou apenas restos de ninhos abandonados, pegadas suspeitas e boatos, muitos boatos!

Porém, quando estava quase desistindo e dada por encerrada a busca, achou no quintal de sua casa uma pena de ave longa, quase perfeitamente simétrica, de cores indescritíveis, algo que nunca havia visto antes... Pensou, “Só pode ser ela, a ave rara! Será que era ela quem estava me observando todo este tempo?”.

E foi então que, assim tão confuso, o ornitólogo entrou em casa e viu, pelo reflexo fugidio do espelho em seu escritório, uma ave que reduzia a beleza de todos os demais animais a uma nota de rodapé. E, assim que eles se encararam, face a face, por um momento tão breve quanto eterno, ela voou pela janela e desapareceu.

Neste momento o ornitólogo compreendeu que o que ele buscava estava, todo o tempo, bem ao seu lado. E dali em diante ele passou a pesquisar aves ainda mais raras, desta vez no único campo onde todas elas existem sempre lá dentro...

***

[1] Trechos das págs. 34 a 36 de O mundo como vontade e representação (Ed. Contraponto), na tradução de M. F. Sá Correia.

[2] Peter Watson: Not Written in Stone, New Scientist, 29/08/2005.

» Leia também: A singularidade filosófica

Foto encontrada em : Google Image Search (Arthur Schopenhauer)

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2.9.12

Monismos e dualismos

Assim como no caso dos teísmos e ateísmos, referentes a crença ou descrença numa divindade, e também ao que compreendemos pelo próprio conceito de “divindade”, há muitas confusões desnecessárias criadas em torno do mal entendimento do que cada um compreende pelo que quer que seja a mente, e da sua relação com o cérebro. Seria a mente gerada pelo cérebro, ou aquela quem tecla as teclas cerebrais, comandando o corpo? O que seria exatamente a subjetividade, algo real, ou uma ilusão persistente?

Tais questões residem no âmago da filosofia da mente e, apesar dos esforços de alguns dos maiores filósofos e cientistas do mundo, continuam sendo profundamente desconcertantes. Em geral os filósofos da mente não buscam fatos cientificamente investigáveis sobre ela [1], mas o que o conceito de mente em si envolve. Seu método inclui a exploração de conexões lógicas e conceituais existentes entre mente, comportamento e nossas várias capacidades mentais.

Para tentar auxiliar em classificar as definições e/ou visões distintas acerca da mente, os monismos, dualismos e suas variações conceituais, elaborei um pequeno glossário de termos abaixo, que é propositadamente curto – e, obviamente, não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas apenas de ajudar a resolver melhor alguns debates:

Monismo
Há várias doutrinas filosóficas que defendem o monismo. Embora elas tenham inúmeras diferenças entre si, o que nos interessa aqui é que todas elas concordam que existe apenas uma única substância responsável tanto pelo corpo quanto pela mente.
Seria muito simples dizer que todo monista crê que a mente e o corpo são inseparáveis, e não podem existir dissociados – no caso, a mente não existiria dissociada de um corpo. Poderíamos complementar a tese afirmando que todos os monistas são materialistas. Mas mesmo tais classificações poderiam ser apressadas...
Por exemplo, embora o grande Benedito Espinosa seja um monista, que crê que todas as substâncias do Cosmos derivam de uma única substância incriada, seu pensamento possuí alguns aspectos do dualismo de propriedade (que veremos abaixo), e pode se enquadrar mais definitivamente naquele caso. Além disso, por incrível que pareça, existe um polêmico cientista chamado Amit Goswami que consegue ser um monista materialista e ao mesmo tempo crer na possibilidade da mente sobreviver mesmo após a morte do corpo.
Para evitar maiores confusões, bastará aqui concluirmos que o monista crê que só existe uma substância no Cosmos, e que tanto a mente quanto o corpo são formados por ela.

Acreditam na existência da mente? Quase sempre sim.
Acreditam que a mente possa existir independente do cérebro? Algumas vezes sim (ver dualismo de propriedade).
Acreditam que a mente possa existir sem um corpo físico? Não, exceto no caso do “monismo quântico”.

“Monismo quântico”
Embora esta definição se refira exclusivamente as teorias do cientista indiano Amit Goswami, devo dizer que certos autores a classificariam dentro do chamado monismo idealista. Eu preferi falar do monismo idealista no dualismo de propriedade (que veremos abaixo), por achar que se enquadraria melhor naquela outra definição mais ampla.
Pois bem, como cientista a materialista, Goswami crê que a mente e o corpo são formados pela mesma substância, com a mesma propriedade material. Para Goswami, no entanto, nossa capacidade consciente de escolha, e a interferência fundamental que a consciência exerce nos processos da mecânica quântica, denotam que é a consciência quem “molda” o cérebro (e não o contrário). Além disso, suas teorias também abarcam a possibilidade da reencarnação e da imortalidade da consciência (alma), ao postularem que após a morte do corpo a consciência não é perdida, mas tampouco “vaga pelo ar”, e sim dá um “salto quântico” pelo espaço-tempo até a próxima possibilidade que seja criada para que uma consciência habite um cérebro – ou seja, a concepção de outro ser humano.
Esta teoria é obviamente muito controversa no meio acadêmico, e nem sequer podemos dizer aqui que o próprio Goswami a compreende inteiramente. Para maiores detalhes, recomendamos a leitura de seu livro A física da alma (publicado no Brasil pela Editora Aleph).

Acreditam na existência da mente? Sim.
Acreditam que a mente possa existir independente do cérebro? Não, porém a consciência molda o cérebro.
Acreditam que a mente possa existir sem um corpo físico? De certa forma sim, embora ela só se “manifeste” a partir do momento que encontra uma nova possibilidade para “habitar um corpo”.

Monismo eliminativo
Um materialista crê que tudo é formado por substância material, muito embora, caso seja bem informado, saberá que atualmente a ciência postula que apenas cerca de 4% da matéria do universo foi detectada, pois interage com a luz – enquanto os outros 96% são Matéria Escura e Energia Escura, e até hoje não foram detectadas em experimentos, nem uma partícula sequer.
Já os materialistas eliminativos, que sempre serão monistas por definição, são um tanto mais radicais que os materialistas: eles negam que sequer exista uma mente! Eles dizem que a mente poderia parecer óbvia para nós, mas, segundo o eliminativista, à medida que a ciência avança, pode-se revelar que mentes “não são mais reais do que seres mitológicos” [2].
Segundo eles, a explicação apropriada para o comportamento humano não envolve nada semelhante a mentes ou ao que supostamente se passa nelas, como pensamentos e sentimentos. A explicação correta de nossas “vontades” envolve apenas referências a eventos naturais, sem nenhuma relação ao que chamamos de mente – que pode ser nada mais do que uma ilusão persistente do cérebro.
Os monistas eliminativistas resolveram o problema difícil da consciência, que envolve a questão da subjetividade e do “eu” (por exemplo, a interpretação subjetiva da “vermelhidão” do vermelho; ou da “profundidade” com a qual um filho ama sua mãe), da forma mais simples e reducionista: negando que exista uma consciência subjetiva... Talvez o maior representante do monismo eliminativo seja o filósofo americano Daniel Dennet.

Acreditam na existência da mente? Não. Ou seja, não existe o que chamamos de subjetividade, e nossas escolhas são eventos naturais, das quais somos em realidade apenas “espectadores”, ou nem isso.
Acreditam que a mente possa existir independente do cérebro? Não.
Acreditam que a mente possa existir sem um corpo físico? Não.

Dualismo (de substância)
O dualismo é uma concepção filosófica ou teológica do mundo baseada na presença de dois princípios ou duas substâncias ou duas realidades opostas e inconciliáveis, irredutíveis entre si e incapazes de uma síntese final ou de recíproca subordinação. É dualista por excelência qualquer explicação metafísica do universo que suponha a existência de dois princípios ou realidades não subordináveis e irredutíveis entre si.
A ideia aparece na filosofia ocidental já nos escritos de Platão e Aristóteles, que afirmam, por diferentes razões, que a inteligência do homem (uma faculdade do espírito ou da alma) não pode ser assimilada ao seu corpo, nem entendida como uma realidade física.
Descartes foi o primeiro a assimilar claramente o espírito (substância imaterial) à consciência e distingui-lo do cérebro, que seria o suporte da inteligência. Chamou a mente de res cogitans ("coisa pensante") e o corpo de res extensa ("coisa extensa", isto é, que ocupa lugar no espaço). A ligação entre a mente e o corpo, segundo ele, seria feita através do tálamo, uma pequenina parte do cérebro [3]. Foi Descartes, portanto, quem primeiro formulou o problema do corpo-espírito do modo como se apresenta modernamente.
A maior parte dos dualistas é dualista de substância, o que se opõe em parte ao dualismo de propriedade, do qual falaremos na sequência.

Acreditam na existência da mente? Sim.
Acreditam que a mente possa existir independente do cérebro? Sim.
Acreditam que a mente possa existir sem um corpo físico? Quase sempre sim, particularmente entre os religiosos.

Dualismo de propriedade
Uma das posições mais sutis sobre a relação entre a mente consciente e o mundo material é o dualismo de propriedade, que também englobaria o chamado monismo idealista. Ele admite que os materialistas estão corretos ao supor que há apenas um tipo de substância – a substância física. Mas, a seu ver, as substâncias materiais podem ter propriedades físicas e mentais. Estas últimas seriam distintas das primeiras e não poderiam ser reduzidas a elas.
Sir John Eccles, neurologista vencedor do prêmio Nobel de medicina de 1963, foi talvez o mais ilustre cientista a argumentar em favor da separação entre a mente, a consciência (no caso, um processo da mente) e o cérebro. Ele dizia: "Nós, como pessoas que experienciam, não aceitamos tudo o que nos é fornecido por nosso instrumento, a máquina neuronal de nosso sistema sensorial e o cérebro, nós selecionamos tudo o que nos é fornecido de acordo com o interesse e a atenção, e modificamos as ações do cérebro, através do 'eu'".
Os dualistas de propriedade crêem que a matéria possa explicar o problema difícil da consciência, porém também acreditam que o mecanismo da subjetividade não possa ser explicado apenas com a matéria detectada no cérebro. Ou seja, na sua opinião, o entendimento atual da neurociência parece ser incapaz de nos descrever como seres que interpretam informações, e não somente como máquinas que se limitam a computar informações – neste sentido, eles se opõe diretamente a explicação do materialismo eliminativo, que basicamente compreende a mente como “a ilusão de uma máquina biológica”.
Até anos atrás poderiam ser chamados de lunáticos pelos acadêmicos, porém desde a descoberta científica de que provavelmente 96% da matéria do universo não foi detectada, pois não interage com a luz, fica um tanto complicado afirmar que “estão delirando”.
Conforme dissemos, mesmo Espinosa e os demais monistas idealistas podem se enquadrar nesta classificação, pois embora acreditem que exista somente uma substância, sua concepção leva a crer que ela tenha ao menos duas propriedades muito distintas – as propriedades físicas, e as mentais.
Note que o dualista de propriedade, embora concorde com o materialista que há apenas um tipo de substância (a material, o que faz dele também um materialista, porém não um materialista eliminativo), concorda com o dualista substancial que os fatos relativos às nossas mentes estão além da compreensão atual que temos dos fatos meramente físicos.

Acreditam na existência da mente? Sim.
Acreditam que a mente possa existir independente do cérebro? Sim.
Acreditam que a mente possa existir sem um corpo físico? Muitas vezes sim, particularmente entre os espiritualistas e ocultistas. Mas Espinosa, por exemplo, não acreditava nisso.

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Bibliografia recomendada
Wikipedia; Guia Zahar de Filosofia (Stephen Law); A física da alma (Amit Goswami); Ética (Espinosa); 25 Grandes Ideias (Robert Matthews – há um capítulo sobre a consciência); O cérebro espiritual (Dr. Mario Beauregard e Denyse O’Leary); O erro de Descartes (Antônio Damásio).

Observação (1): É preciso sempre lembrar que a ciência não é ideologia ou doutrina, não é materialista nem espiritualista, monista ou dualista, teísta ou ateísta. A ciência é tão somente o conhecimento da natureza detectável, e o estudo de seus mecanismos. Há muitos grandes cientistas da história que eram monistas ou dualistas.

Observação (2): Embora nem sempre fique claro em meus textos, como um dualista de propriedade, costumo defender este tipo de visão aqui no blog. Me coloco, portanto, em oposição total ao monismo (ou materialismo) eliminativo, embora isso não signifique que deixe de admirar a paixão com que alguns filósofos defendem tal visão, particularmente Daniel Dennet. Finalmente, embora sempre afirme ser um espiritualista, em realidade também não deixo de ser um materialista – se me entenderam bem até aqui, verão que tais conceitos não necessariamente se opõe entre si.

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[1] Embora a neurociência esteja avançando a passos largos na compreensão do processo de consciência, ao ponto de já sermos capazes de “decodificar” os comandos motores do cérebro, abrindo a possibilidade para que tetraplégicos voltem a caminhar (comandando exoesqueletos robóticos apenas por ondas celebrais), ainda estamos muito distantes de resolver o chamado problema difícil da consciência, que envolve a questão em torno da própria subjetividade e do “eu”.

[2] Notem que, ainda que seres mitológicos “existam apenas na mente”, isso nada tem a ver com a ideia de que a própria mente seja um mito!

[3] Hoje este conceito foi desacreditado, com os avanços da neurociência. Porém, é possível que o tálamo também seja, na realidade, uma espécie de “sensor” de ondas eletromagnéticas, o que supostamente explicaria a mediunidade.

Crédito da foto: Oliver Killig/dpa/Corbis (My Soul, Escultura de Katharine Dowson)

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18.1.12

A singularidade filosófica

Há um conto zen muito conhecido, mesmo que indiretamente, em que um monge é acordado abruptamente em meio a um maravilhoso sonho onde ele era uma borboleta voando pelo campo, e ao acordar ele fica momentaneamente confuso: Seria ele quem sempre achou que fora, ou uma borboleta? Seria o sonho com a borboleta irreal, ou seria a realidade ela própria uma ilusão? Seria ele quem sonhara com a borboleta, ou seria ele parte do sonho de outro alguém, talvez até uma borboleta? [1]

Muitos ocidentais não veem nada de muito profundo nesse conto, mas é interessante como a própria história do ceticismo filosófico no Ocidente se alinha bastante com ele... O ceticismo filosófico é a ideia que, embora possamos ter um grande número de crenças, de fato sabemos muito pouco, ou nada – certamente bem menos do que supomos que sabemos. Uma dúvida razoável é sempre bem vinda, mas alguns céticos entraram em verdadeiros extremos de sua própria lógica cética.

A conclusão mais radical do ceticismo afirma que “não podemos ter certeza de nossos juízos cotidianos, de modo que não temos nenhuma boa razão para supor que existe uma chance consideravelmente maior de nosso mundo ser real, do que dele ser mera ilusão sensorial”. Se formos nos aprofundar nessa reflexão, chegaremos a um ponto onde poderemos mesmo afirmar que o mundo pode ser uma grande ilusão, e que tudo o que nos chega à mente através dos sentidos pode ser uma encenação teatral persistente orquestrada por algum deus, demônio, ou mesmo uma simulação virtual de um supercomputador – o que foi tema do aclamado filme Matrix.

O filósofo britânico Gilbert Ryle tentou resolver tal situação bizarra. Segundo ele, a própria ideia de “erro” levantada pelo ceticismo pressupõe que por vezes “acertamos”. Por exemplo: sem cédulas de dinheiro reais, as cédulas falsas não poderiam existir – temos de ter algum conhecimento da verdade e da realidade para que estar errado ou iludido faça algum sentido. Porém, os céticos podem derrubar facilmente tal alegação, afirmando que não sabemos exatamente o que é “perfeito”, e que, portanto, não podemos dizer o que é “imperfeito” – dessa forma não temos nunca certeza nem de estar certos nem errados, e o mundo pode ser mesmo uma ilusão, tanto quanto pode ser real.

Já outros pensadores podem afirmar que a única visão de realidade absolutamente irrefutável é a solipsista. O solipsismo é a ideia de que a única realidade é o próprio “eu”, e que tudo o mais não tem existência em si própria, ou não se pode comprovar tal existência. A ilusão do mundo então, incluindo as outras pessoas, seria uma projeção da mente. Um ser humano pode duvidar de tudo, mesmo das impressões que lhe chegam aos sentidos. Pode supor que tudo o que ouve, vê, sente e etc. seja uma ilusão, um sonho. Talvez o mundo não exista e ele nem sequer tenha corpo, talvez nem mesmo cérebro, mas com certeza há pelo menos uma "substância" que sente e pensa. Seria muito estranho alguém duvidar de que é um ser pensante e sensível, ele pode até achar que num dado momento deixará de existir e logo de pensar ou de sentir, ou que num certo momento do passado não existisse. Mas é fato, me parece inquestionável, que no momento presente ele existe... O grande contribuidor para esse pensamento foi o matemático e filósofo francês, René Descartes, que o resumiu no já lendário “penso, logo existo”.

Supreendentemente, mesmo a conclusão solipsista foi negada de forma absoluta pelos materialistas eliminativos. Esta é uma corrente radical da filosofia da mente que simplesmente nega que existam mentes. Segundo tais materialistas, à medida que a ciência avança, pode-se revelar que mentes nada mais são que ilusões subjetivas. A explicação mais apropriada, “científica”, do comportamento humano, não precisa fazer referência a pensamentos, sentimentos, ou nada do que corriqueiramente associamos a alguma mente – apenas o tilintar neuronal pode explicar tudo. A ideia do “eu”, a consciência de si, seriam ilusões do cérebro. Não haveria mente, nem livre-arbítrio, nem vontade, nem tampouco liberdade alguma.

O arqueólogo Peter Watson resumiu bem o “sentimento” dos materialistas eliminativos em uma “queixa” publicada na revista New Scientist: “As ciências sociais, psicológicas e cognitivas permanecem enlatadas em palavras e conceitos pré-científicos. Para muitos de nós, a palavra “alma” é tão obsoleta quanto “flogístico”, mas os cientistas ainda usam palavras imprecisas como “consciência”, “personalidade” e “ego”, para não falar em “mente”. Talvez seja hora de, pelo menos na ciência, remodelar “imaginação” e “introspecção”, ou, de preferência, retirá-las. Os artistas ainda podem divertir-se com esses conceitos, mas os assuntos mundiais sérios já seguiram em frente” [2].

Caso exista um demônio de Laplace, um intelecto capaz de conhecer exatamente a posição e movimento de todas as partículas do Cosmos, o futuro lhe seria totalmente determinado, pois ele saberia do movimento futuro de todos os objetos inanimados do universo e, igualmente, do pensamento de todos os seres vivos, pelo menos segundo a visão estritamente materialista, que reduz os “seres” a nada mais que “máquinas complexas”, e os “pensamentos” a nada mais que “reações de partículas dentro do cérebro” [3].

Tais ideias nos levam a um estado de determinismo total, onde não há realmente nenhuma opção de mudarmos o futuro – inclusive porque sequer temos vontade, somos apenas fantoches de um turbilhão de partículas universal, que ocorreu sabe-se lá como ou por que... O fim da estrada do materialismo eliminativo em realidade nos coloca na mesma posição em que fundamentalistas religiosos nos colocam quando afirmam que “tudo é determinado por Deus”. Sim, acreditem, eu já debati com um fundamentalista que me disse assim a certa altura: “eu não concordo contigo, mas te perdoo, porque você é apenas a forma com que Deus me mostra o que é errado, para que eu compreenda melhor o que é certo”... Eu tive de lhe perguntar se ele realmente acreditava que não era eu quem digitava o meu teclado, mas Deus que me fazia digitar, e ele me respondeu que era “exatamente isso”. Aparentemente, ele se esqueceu que ele mesmo era somente mais um fantoche nas mãos de tal deus – não tinha fé nele por si próprio, mas porque deus assim determinava.

Numa abordagem puramente lógica e filosófica, tais ramos de pensamento expostos acima são muito mais próximos do que a “rixa” entre céticos e crentes pode nos dar a entender: seja crendo num deus todo-poderoso sobrenatural, seja crendo no tilintar aleatório de partículas, seja crendo no demônio de Laplace, estão todos em realidade crendo num determinismo absoluto.

Uma singularidade matemática é definida como o ponto onde uma função matemática assume valores infinitos ou, de certa maneira, tem um comportamento não definido. É quando a matemática deixa de fazer sentido, em suma...

Ora, eu penso que o determinismo absoluto é uma espécie de singularidade filosófica, ou singularidade lógica: de que adianta debatermos sobre o assunto filosoficamente, se em realidade não somos nós a debater coisa alguma, apenas o “filme do universo” a rodar, do passado ao futuro, passando por nosso presente de fantoches a encenar alguma espécie bizarra de existência? E se você não concorda com isso, me desculpe, pois não sou eu quem discorda de você, eu na verdade sequer existo – sou apenas fruto da encenação orquestrada de algum deus, demônio, ou de partículas “soltas por aí”... Mas saiba que você mesmo não deveria se incomodar com isso, já que você também não existe enquanto “você”, assim como eu não existo enquanto “eu”.

Para nossa sorte, coube a um matemático nos tirar dessa singularidade bizarra. Podemos criticar diversos aspectos da filosofia de Descartes, ou do solipsismo, podemos inclusive exercer nossa liberdade, nossa vontade, de não concordar com quase nada do que dizem – mas pelo menos quanto ao fato de existir alguma liberdade, alguma vontade, algum “eu”, haveremos de concordar. Pois não somos, afinal, máquinas a computar informações, mas sim seres a interpretar um Cosmos infinito, vencendo uma singularidade inefável de cada vez, sem jamais desistir!

***

[1] Uma interpretação mais aprofundada desse tipo de conto provavelmente nos levará a conclusão de que a realidade está em constante mutação, e que embora não sejamos os mesmos de 15 anos atrás, talvez nem os mesmos de ontem à noite, certamente existimos.
Obs: há muitos sites (como este do link acima) que falam sobre este conto sem determinar ao certo sua origem. Embora ele certamente possa ter sido passado adiante (oralmente) pelos zen-budistas, tudo indica que sua origem remete ao sábio taoista Chuang Tzu.

[2] Peter Watson: “Not Written in Stone”, New Scientist, 29/08/2005.

[3] Desde as descobertas científicas que descrevem a Mecânica Quântica e a existência de Buracos Negros, este experimento mental caiu por terra: não temos como saber ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma única partícula, como um elétron; já os buracos negros teoricamente “sugam informação”, incluindo a própria luz, para “sabe-se lá onde”, de modo que não há como ter certeza que a informação “permanece neste universo”.

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Crédito das imagens: [topo] Silke Weinsheimer/Corbis; [ao longo] Bettmann/Corbis

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10.1.12

Neuroteologia, parte 1

Experiências místicas e religiosas (EMeRs) são experiências subjetivas em que um indivíduo diz ter tido um encontro ou uma união com uma entidade divina, ou ter tido contato com uma realidade transcendental.

O incrível caso do capacete de deus

Em 2003, o celebrado biólogo e ativista Richard Dawkins concordou em participar de uma experiência pretensamente científica na qual ele teoricamente teria finalmente contato com uma “realidade transcendente”. Não faltaram chamadas “de efeito” nos intervalos da BBC, anunciando o programa Horizon, onde esta experiência seria registrada: “Será que Dr. Parsinger terá êxito onde o papa, o arcebispo de Cantuária e o Dalai Lama fracassaram?”.

O Dr. Michael Parsinger é um neurocientista cognitivo com “um pé na parapsicologia”. O experimento em questão consistia em expor Dawkins a fraquíssimos estímulos de campos magnéticos direcionados aos seus lobos temporais por um “artefato” que foi chamado de capacete de deus. A sessão duraria exatos 40 minutos, em uma câmara (quarto) fechada com luz fraca, totalmente silenciosa... Muitos outros “pacientes” já haviam se submetido a tal sessão, com alguns resultados surpreendentes, pelo menos se formos considerar alguns relatos subjetivos e as manchetes da “mídia especializada”:

“Coisas espantosas aconteceram nesta câmara. Uma mulher acreditou que sua mãe morta se materializara ao lado dela. Outra sentiu uma presença tão forte e benigna que chorou quando ela desapareceu.” – Robert Hercz, Saturday Night [1].

“Minha mente iniciou toda uma nova excursão, dessa vez com um visível toque oriental, tibetano. [...] Vi-me de fato em um templo, numa fila de solenes monges tibetanos. [...] Tive a certeza de que era um deles.” – Ian Cotton [2].

Até mesmo a parapsicóloga Susan Blackmore, membro do CSICOP e celebrada entre muitos céticos, além de grande contribuidora da teoria dos memes de Dawkins (autora de The Meme Machine), se rendeu a extraordinária experiência do capacete de deus:

“De modo inesperado, mas intensa e vividamente, senti-me de repente furiosa, só que não havia nada nem ninguém sobre o que agir. [...] Depois [a sensação] foi substituída por um igual ataque de medo. Fiquei subitamente aterrorizada – com nada em particular. Jamais em minha vida tivera sensações tão fortes” [3].

Há muitos espiritualistas que julgam o ceticismo e/ou o materialismo científicos barreiras para as experiências místicas. Talvez pelo fato de o capacete de deus prometer uma explicação reducionista e totalmente materialista para tal fenômeno, os céticos “baixariam as barreiras de suas mentes para novas possibilidades”, e poderiam efetivamente vivenciar uma EMeR.

Para muitos simpatizantes do materialismo científico, reduzir as EMeRs a estímulos de um capacete não era somente algo perfeitamente plausível, como quase inevitável – um confirmação de sua crença [4]. Vejamos o que Jack Hitt, jornalista da revista Wired, teve a dizer sobre o assunto:

“Talvez pareça sacrilégio e presunção reduzir Deus a algumas sinapses vulgares, mas a neurociência moderna não se inibe em definir nossas mais sagradas ideias – amor, alegria, altruísmo, piedade – como nada mais que estática de nosso cérebro impressionante e grandioso.

Persinger vai um passo além. Sua obra quase constitui uma Grande Teoria Unificada do Outro Mundo: ele acredita que o emperramento de nosso cérebro é responsável por qualquer coisa que se pode descrever como paranormal – alienígenas, aparições celestiais, sensações de vidas passadas, experiências de quase morte, consciência da alma, é só especificar” [5].

Parece simples não? Toda a aparentemente insondável complexidade da mente humana, todas as nossas crenças, sensações, sentimentos, experiências, nosso próprio senso de um “eu”, sendo finalmente explicadas pelo mero tilintar neuronal, estimulado aqui e ali em nosso cérebro por um quase miraculoso capacete... Seria o sonho de muitos materialistas e jornalistas “especializados” sedentos por “furos de reportagem” finalmente realizado... Seria?

Claro, ninguém esperava convencer todos os religiosos e espiritualistas do mundo do dia para a noite, passando por cima de “milênios de lendas e devaneios místicos”... Mas provavelmente seria um belo começo se o ícone dos ativistas antiteístas relatasse que finalmente experimentou o mundo transcendental, e que ele nada mais era do que outro delírio do cérebro, como Deus. Faltava o próprio Dawkins passar os 40 minutos com o capacete bem afivelado na cabeça. A transcrição de “Deus no Cérebro” diz [6]:

[Dawkins] Se eu me tornasse um religioso e crente devoto, minha esposa ameaçaria me deixar. Sempre tive curiosidade de saber como seria ter uma experiência mística. Estou ansioso para tentar essa tarde [...]

[Dawkins] Eu me sinto meio tonto.

[Narrador] Inicialmente, o Dr. Parsinger aplicou um campo [magnético] ao lado direito da cabeça de Richard Dawkins.

[Dawkins] Muito estranho.

[Narrador] Depois, para aumentar as chances da sensação de uma presença sentida, o Dr. Persinger começou a aplicar o campo magnético nos dois lados da cabeça.

[Dawkins] É uma espécie de torção em minha respiração. Não sei o que é. Sinto a perna esquerda se mexendo e a direita, se contraindo [...]

[Narrador] Assim, após 40 minutos, Richard Dawkins havia chegado mais perto de Deus?

Ao que parece, não. Ele nada sentiu de extraordinariamente incomum, e descreveu-se como “bastante decepcionado”. Na realidade, Dawkins gostaria de sentir o que os religiosos dizem sentir. Persinger deu uma explicação para a insensibilidade de Dawkins ao capacete de deus. Segundo ele, o biólogo britânico estava “muito abaixo da média” em sensibilidade lobo-temporal a campos magnéticos – Isto é, segundo um “questionário” chamado sensibilidade ao lobo temporal, desenvolvido pelo próprio Persinger e utilizado apenas por ele mesmo...

Ao que parece, como espiritualistas podemos ser antipáticos a Richard Dawkins e todo o seu ativismo antiteísta, mas pelo menos nesse episódio em específico devemos parabeniza-lo por seu ceticismo... Talvez Dawkins também estivesse muito interessado em poder se convencer de que as EMeRs se resumem a “estados neuronais alterados”, e que toda a religiosidade e espiritualidade humanas poderiam ser explicadas pela “neuroteologia” da qual o Dr. Parsinger era um dos maiores entusiastas. Mas no fim o seu bom senso, o seu ceticismo, falaram mais alto.

» Na continuação, o ceticismo unidirecional e o duplo-cego no caminho do Dr. Parsinger.

***

Leitura recomendada: O cérebro espiritual, por Mario Beauregard (Ph. D.) e Denyse O’Leary. Editora Bestseller. Particularmente o Cap.4.

[1] O artigo foi intitulado God Helmet.

[2] Ian Cotton descreveu suas experiências no livro Hallelujah Revolution.

[3] Relatado por Susan no artigo Alien Abduction da revista New Scientist, em 19/11/94.

[4] O materialismo, o materialismo científico (ver minha série de artigos sobre o tema), assim como o espiritualismo, o monismo, o dualismo, etc., são todos apenas teorias, sem a devida comprovação científica em experimentos objetivos e replicáveis.

[5] O artigo de Hitt se chama This is Your Brain on God, publicado na revista Wired em Novembro/99.

[6] God on the Brain, episódio de Horizon, foi transmitido pela BBC em 17/04/03.

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Crédito das imagens: [topo] Corbis (gravura em cobre ilustrando o pensamento humano, sec. XVII. Sudhoff-Institut/Alemanha); [ao longo] BBC/Divulgação (God on the Brain).

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17.10.11

Diálogo zen

(Discípulo) Mestre, acabei de ler sobre uma pesquisa que fizeram no Ocidente - Perguntaram o que as pessoas tem de indispensável para o seu dia a dia, e a maioria respondeu que era o seu celular!

(Mestre) Que curioso...

(D.) Um absurdo, todo esse materialismo...

(M.) Mas o que deveria ser indispensável em sua vida?

(D.) Ora, penso que meus amigos, minha família, minha mulher...

(M.) Mas como? As pessoas não nos pertencem... Essa resposta não nos serve.

O discípulo pensou por um longo momento e acrescentou:

(D.) Muito bem, agora entendi: tudo o que temos é a sabedoria! Ela sim é indispensável.

(M.) Concordo... Mas me diga: como saberemos com certeza se temos mesmo alguma sabedoria?

(D.) Ora, pela opinião dos outros, mestre - Eu mesmo afirmo: você é um sábio!

(M.) Fico imensamente grato... Mas, e se estiver enganado? Outros podem aparecer por aqui e afirmar exatamente o oposto: que sou apenas algum louco... Ou pior, um charlatão...

(D.) Mas mestre, todos que conviverem um dia que seja contigo hão de concordar que é mesmo um sábio...

(M.) Como?

(D.) Ora, porque passarão a amá-lo como todos os outros discípulos tem lhe amado.

(M.) Mas... Amar assim tão depressa? Será que primeiramente não amariam o saber?

O discípulo acenou com a cabeça, concordando.

(M.) Então, não seria esse amor ao saber o que inicia todo esse caminho espiritual que temos percorrido juntos?

(D.) Sim mestre! Agora percebo que foi assim: primeiro me interessei por seu conhecimento, e só após nosso convívio foi que passei a amá-lo como a um pai...

(M.) E já que agora somos tão amigos, será que quando viajamos para longe um do outro o telefone não passa a ser indispensável para mantermos contato?

(D.) Bem, pode ser... Mas o telefone é apenas um objeto material...

(M.) Meu amigo, o problema não é o objeto, mas o uso que fazemos dele... De fato, não temos um telefone, não temos nossa casa e nem mesmo nossa roupa, o que temos é essa vontade tão antiga de nos conectarmos um ao outro - Eis o indispensável em nossa vida.


raph'11 (em homenagem ao blog de Aoi Kuwan: Magia Oriental)

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Crédito da imagem: budgetplaces

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8.12.10

Reflexões sobre o materialismo, parte 4

Continuando da parte 3

Substância – Princípio do ser, que é permanente, em oposição aos acidentes que mudam; A essência de algo; Qualquer espécie de matéria.

Há somente uma Substância

Um dos dogmas principais do cristianismo afirma que Jesus Cristo ressuscitou após três dias. O Novo Testamento nos conta que Maria Madalena foi o primeiro discípulo a ver Jesus ressuscitado. Conta também que tanto ela quanto outros discípulos a princípio se assustaram com sua aparição e somente após alguns momentos o reconheceram. Após algum tempo a notícia já se espalhava, mas um dos seguidores de Jesus, Tomé, não parecia crer nela – ele afirmou “que precisava ver para crer”.

A Bíblia diz que Jesus apareceu para Tomé e ainda permitiu que ele tocasse suas chagas... Carl Sagan admirava o ceticismo de Tomé, segundo ele este tipo de experiência – de ver, e tocar, para crer – deveria ser incentivada entre todos os religiosos. Já para os cristãos, Tomé sofria de falta de fé, e não havia nenhum mérito em seu ceticismo. Jesus chega a afirmar que “felizes são aqueles que creram sem ver” – de acordo com o Novo Testamento, é claro.

Ao contrário do que muitos céticos imaginam, há muitos religiosos que são extremamente materialistas. E não estou falando do materialismo no sentido do apego a bens materiais ou consumismo (este é um assunto para outro artigo), mas da necessidade básica que muitos deles têm de reafirmar a ressurreição da carne de Jesus, e jamais apenas de seu espírito.

Há muitos deles que tem verdadeiro asco de coisas fluidas e “imateriais”. Para eles, espíritos nada mais são que assombrações e/ou alucinações causadas por loucuras ou pela influência do próprio Diabo (e eles costumeiramente confundem as duas coisas). Poderíamos questionar o porque de apenas o Diabo ter tantos “poderes” de afetar diretamente nossa realidade, enquanto Deus “gastou” todos os seus milagres nos milênios anteriores – mas isso também seria assunto para outro artigo.

O que eu acho irônico é essa crença dogmática em corpos incorruptíveis, em seres que só podem retornar a vida ou se comunicar com aqueles ainda vivos na posse de um novo corpo, como num grande passe de mágica... Não pela crença em si, mas pelo fato de a grande maioria dos que creem nisso ignoram o fato de que a matéria é em todo caso intangível e invisível. Ora, Tomé não tocou nas chagas de Jesus e nem o viu a sua frente, ele apenas – supondo que o relato é real – sentiu a pressão dos elétrons se repelindo mutuamente (de sua mão e do corpo de Jesus) e percebeu os quantas de luz refletidos por seu corpo.

Tivessem eles conhecimento dos avanços da ciência moderna, se questionariam se existe assim tanta diferença entre um corpo e um espírito, ou por assim dizer entre um espírito encarnado em um corpo, e outro desencarnado. Sim, pois se eles já creem em tantas coisas jamais detectadas, o que custaria crer em seres não imateriais, mas compostos por matéria ainda desconhecida, conforme postulou Bahram Elahi?

Os espíritas, por exemplo, também são materialistas, apenas não compartilham dos mesmos dogmas de alguns cristãos. Vejamos a pergunta #82 do Livro dos Espíritos de Allan Kardec: “É certo dizer que os espíritos são imateriais?” – Para surpresa de muitos, os próprios espíritos que ditavam as respostas para as jovens médiuns que auxiliavam o cientista francês trouxeram a seguinte resposta: “Imaterial não é o termo apropriado; incorpóreo, seria mais exato; pois deves compreender que, sendo uma criação, o espírito deve ser alguma coisa. É uma matéria quintessenciada, para a qual não dispondes de analogias, e tão eterizada que não pode ser percebida pelos vossos sentidos.” Ora, hoje em dia talvez fosse possível fazer analogias mais próximas – “Matéria Escura” seria uma delas.

Entretanto, sé é muito custoso para os céticos e materialistas anti-subjetivos acreditarem que consciências possam existir longe de cérebros feitos da matéria que já conhecemos, que isso não seja uma barreira intransponível entre nós, espiritualistas, e eles...

Carl Sagan resume muito bem a questão em seu livro “O mundo assombrado pelos demônios” – para alguns “a bíblia do ceticismo”:

“Espírito” vem da palavra latina que significa “respirar”. O que respiramos é o ar, que é certamente matéria, por mais fina que seja. Apesar do uso em contrário, não há na palavra “espiritual” nenhuma inferência necessária de que estamos falando de algo que não seja matéria (inclusive aquela de que é feito o cérebro), ou de algo que esteja fora do domínio da ciência. De vez em quando, sinto-me livre para empregar a palavra. A ciência não é só compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade. Quando reconhecemos nosso lugar na imensidão de anos-luz e no transcorrer das eras, quando compreendemos a complexidade, a beleza e a sutileza da vida, então o sentimento sublime, misto de júbilo e humildade, é certamente espiritual. Como também são espirituais as nossas emoções diante da grande arte, música ou literatura, ou de atos de coragem altruísta exemplar como os de Mahatma Gandhi ou Martin Luther King. A noção de que a ciência e a espiritualidade são de alguma maneira mutuamente exclusivas presta um desserviço a ambas.

Existam espíritos ou não, o primeiro espírito que precisamos conhecer é o nosso próprio, ainda que não passe de um efeito de nosso processo de consciência. Os primeiros cientistas na Grécia antiga, na Sicília e na ilha de Samos, já buscavam a Substância que dava origem a todas as outras – o fogo, a terra, o ar, a água? – tanto faz se estavam equivocados; Assim como Demócrito equivocou-se em sua abordagem dos átomos mas estava fundamentalmente correto em suas analogias, eles da mesma forma estavam... Todos chegaram a resultados errôneos, mas acertaram profundamente em sua busca.

Inspirado por tais sábios de outrora, o grande Benedito Espinosa chegou à conclusão definitiva em sua “Ética”: “uma substância não pode criar a si mesma” – Sim, tudo, tudo o que há, há de advir de uma única Substância, incriada, eterna, a que se opõe ao nada...

E ainda que tudo o que exista sejam “átomos e vazio” e que nossas vidas não passem de um breve lampejar de vela em noite de ventania, há espiritualidade suficiente na ideia de que estamos sim todos conectados, todos feitos das mesmas substâncias, filhos de fusões nucleares em sóis catapultados em uma imensidão que nem mesmo a luz pode dizer onde acaba.

Nós somos os filhos do horizonte, e nosso único e derradeiro pecado é ignorar tal necessidade de vislumbrar nossa essência uma vez mais – não como Tomé a apalpar as chagas do messias, mas como aqueles que perceberam tanto o mundo material quanto o espiritual, e não souberam dizer ao certo qual é o mais bonito.


Disse Jesus: se vocês disserem qual a vossa origem, dizei-lhes: viemos da Luz, de onde a Luz se originou dela mesma. Ela permaneceu e revelou-se a si mesma em sua imagem. Se vos disserem quem sois vós, dizei-lhes: somos seus filhos e somos eleitos do Pai Vivo. Se vos perguntarem qual é o sinal do vosso Pai em vós, respondei-lhes: é o movimento e o repouso. (O Evangelho de Tomé [o Dídimo] – v.50)

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Crédito das imagens: [topo] Aidan McHae Thomson; [ao longo] Holger Spiering/Westend61/Corbis

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6.12.10

Reflexões sobre o materialismo, parte 3

Continuando da parte 2

A subjetividade é o mundo interno de todo e qualquer ser humano. Este mundo interno é composto por emoções, sentimentos e pensamentos. Através da nossa subjetividade construímos um espaço relacional, ou seja, nos relacionamos com o "outro".

O limite do subjetivo

Há uma outra espécie de materialismo, definida por alguns como materialismo científico ou eliminativo, mas que eu opto por definir aqui como materialismo anti-subjetivo [1] – pois se trata de uma teoria que afirma que somente a matéria já conhecida explica o funcionamento da consciência humana. Trata-se de uma aposta e de um enorme paradoxo:

A aposta
Hoje se sabe que a consciência se parece mais com um processo que coordena decisões de acordo com o fluxo de informação sensorial recebido, ela é como o regente de uma “orquestra mental”. Porém, a análise qualitativa dos fenômenos conscientes complexos, como o amor e as decisões morais, ainda passam ao largo da explicação científica. Este é o famoso “problema difícil”: identificar o que exatamente interpreta informações e elabora respostas morais, em oposto a mera computação das informações.

Richard Feynman gostava de comparar a forma como os físicos modernos trabalham com a detecção das ondas de uma piscina: acaso não fosse possível ver quem mergulhou na piscina há pouco tempo, podemos ter uma boa noção de onde e quando ocorreu o mergulho, assim como o peso de quem mergulhou, apenas analisando a frequência e a amplitude das ondas na superfície da água. A ciência lida somente com o que pode detectar – se ela não detecta o amor ou a moral, ao menos pode detectar o efeito elétrico no cérebro que ocasiona as demonstrações de sentimentos complexos. O que a ciência não pode pretender, entretanto, é que tais sentimentos se resumam ao efeito, ignorando a causa... Ou postulando que a causa está além de nosso controle, que é fruto do mero agitar químico do cérebro, o que em todo caso é basicamente o mesmo que ignorar a causa.

Bahram Elahi, especialista em cirurgia e anatomia, dizia que embora a mente e o cérebro sejam separados, a mente (ou consciência) não é algo imaterial. Ao contrário, é composta de um tipo de matéria muito sutil que, embora ainda não-descoberta, é conceituamente semelhante às ondas eletromagnéticas, que são capazes de carregar sons e figuras (e mesmo videos - figuras em movimento), e são governadas por leis, axiomas e teoremas precisos. Ele teoriza que tudo relacionado a esta "entidade" deve ser considerado como uma disciplina científica não-descoberta, e estudada da mesma maneira objetiva que outras disciplinas (como química ou biologia, por exemplo). A consciência pode, portanto, ser formada por algum tipo de substância material sutil demais para ser medida ou detectada utilizando as ferramentas científicas disponíveis hoje.

Eis a aposta dos materialistas anti-subjetivos: a de que a consciência e seus fenômenos complexos, que exigem não apenas a computação de informações, mas, sobretudo, a interpretação das mesmas, pode ser compreendida apenas levando-se em consideração a matéria já detectada pela ciência.

O paradoxo
Primeiro a ciência moderna, através da neurologia, foi obrigada a aceitar o conceito e a existência da mente subjetiva, para só então tentar reduzi-la a atividades elétricas, efeitos bioquímicos, um mero agitar de partículas no cérebro... Em suma, tentar negar a existência dos qualia.

Qualia são tratados na Filosofia da Mente como sinônimos de subjetividade. Eles significam uma barreira intransponível entre objetivo e subjetivo, entre vivo e não vivo, entre humanos e máquinas. Não sabemos como o cérebro gera a subjetividade, nem se ela pode ser replicada artificialmente. Tentamos padronizar as sensações usando a linguagem, mas as características subjetivas, únicas, de cada sensação, parecem sempre escapar. Quando falamos de algo “amarelo”, por exemplo, não sabemos se essa cor é mais ou menos intensa para nós ou para o “outro”.

Essa inconveniência dos qualia levou filósofos como Daniel Dennet a tentarem negar sua importância ou até mesmo sua existência... Segundo Dennet, a subjetividade é uma ilusão persistente gerada por nosso cérebro, e não existem escolhas, nem morais nem imorais, apenas o resultado do fluxo de partículas no cérebro, de átomos dançando conforme alguma música aleatória definida por nosso meio-ambiente.

Eis o paradoxo: Dennet, ao contrário do que possam pensar, não é alguém que eu condene. De fato, ele é um dos poucos materialistas anti-subjetivos que realmente assumem sua posição enquanto materialistas – a grande maioria simplesmente ignora tal questão, e continuam a viver como se existisse a subjetividade, como se existissem escolhas, como se realmente fizesse algum sentido condenar criminosos ou condecorar heróis de guerra.

Até onde a luz pode chegar
Não há nada de errado com a ciência objetiva, o problema é quando cientistas creem que podem utilizar ciência para adentrar no campo da subjetividade... Da mesma forma que a psicologia não poderá provar que “esta pessoa está sentindo duas vezes mais dor do que aquela outra”, ou que “aquela pessoa ama aquela outra cinco vezes mais do que você ama seu cachorro”, dificilmente a ciência moderna terá sucesso nessa tentativa de equacionar a mente humana, e tratá-la como uma espécie de máquina que programou a si própria.

Já dissemos que toda a matéria é intangível, mas faltou dizer que ela é igualmente invisível em sua maior parte – pois tudo o que vemos com os olhos ou detectamos com instrumentos avançados são frequências de ondas eletromagnéticas, quantas de luz a refletir pelos átomos a dançar no vazio. Nós não vemos a lua, nem a árvore do outro lado da rua, nem mesmo nossas mãos ou as bactérias no microscópio, vemos apenas os quantas de luz, vindos da luz do Sol ou de alguma fonte de luz (tal qual lâmpadas ou vagalumes), a refletir os átomos que constituem as coisas vistas ou detectadas.

Mas mesmo esta matéria que reflete e interage com a luz é apenas uma ínfima minoria – cerca de 4% – de toda a matéria existente em nosso horizonte observável do Cosmos. Todo os resto – 96% – é composto por Matéria Escura e Energia Escura, e só pôde ser descoberto pelos cientistas através de seu efeito gravitacional no movimento das galáxias (assim como nas interações com a força eletrofraca, mas isso já daria outro artigo).

Aí está o limite do subjetivo, segundo os materialistas: 4% da matéria existente no pedaço do universo onde nossa observação alcança. É uma tremenda aposta esta que afirma que o problema difícil da consciência, que o próprio conceito de subjetividade, pode ser explicado e compreendido apenas com o tilintar dos átomos conhecidos. Para sermos materialistas anti-subjetivos, temos de ter muita fé no ínfimo que conseguimos desvelar objetivamente deste Cosmos infinito. Há que se reconhecer sua convicção.

Em breve, o materialismo religioso e a espiritualidade materialista...

***

[1] Por muito tempo o termo utilizado nesta série foi "materalismo subjetivo", somente meses depois da publicação inicial eu achei melhor usar o termo "materalismo anti-subjetivo" no lugar. No blog em geral, passei a usar o termo "materialismo eliminativo", não porque goste mais dele, mas porque tem sido o termo mais utilizado na linguagem comum.

Crédito da imagem: neurollero

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3.12.10

Reflexões sobre o materialismo, parte 2

Continuando da parte 1

Fusão Nuclear - é o processo no qual dois ou mais núcleos atômicos se juntam e formam um outro núcleo de maior número atômico. A fusão nuclear requer muita energia para acontecer, e geralmente liberta muito mais energia que consome. Até o início do século XXI, o ser humano ainda não conseguiu encontrar uma forma de controlar a fusão nuclear como acontece com a fissão.

A maçã atômica

Conforme vínhamos dizendo, a filosofia de Demócrito não despertou tanto interesse, na época, quanto as de Pitágoras, Sócrates ou Platão. Mas coube a Aristóteles resgatar suas ideias décadas após sua morte.

Aristóteles dizia que o raciocínio que guiou Demócrito para afirmar a existência dos átomos foi o seguinte: o movimento pressupõe o vazio no qual a matéria se desloca, mas se a matéria se dividisse em partes sempre menores infinitamente no vazio, ela não teria consistência, nada poderia se formar porque nada poderia surgir da diluição sempre cada vez mais infinitamente profunda da matéria no vazio. Daí concluiu que, para explicar a existência do mundo tal como o conhecemos, a divisão da matéria não pode ser infinita, isto é, que há um limite indivisível, o átomo. "Há apenas átomos e vazio", disse ele. Observando um raio de sol que penetrou numa fresta de um recinto escuro, Demócrito viu partículas de poeira num movimento de turbilhão, levando-o à ideia de que os átomos (os indivisíveis da matéria) se comportariam da mesma maneira, colidindo aleatoriamente, alguns se aglomerando, outros se dispersando, outros ainda nunca se juntando com outro átomo.

Talvez seja mais conveniente ilustrar o pensamento de Demócrito por seu experimento mental onde imaginamos cortar uma maçã com uma faca (claro, o experimento não necessariamente precisa ser apenas mental, mas em sua época só era possível visualizar aos átomos através da imaginação pura – guardem isso):

“Quando cortamos a maçã” – afirmou Demócrito – “a faca deve passar pelos espaços vazios entre os átomos. Se não houvessem tais lacunas, então a faca iria encontrar algum átomo impenetrável, e a maçã não seria cortada. Em uma escala muito pequena, a matéria exibe uma aspereza irredutível – o mundo dos átomos.” Segundo Carl Sagan, os argumentos de Demócrito não são os mesmos que usamos hoje, mas são elegantes, sutis, e derivados da experiência do dia a dia, a observação da natureza – suas conclusões estavam fundamentalmente certas.

Para Demócrito, nada ocorria aleatoriamente, tudo advinha de alguma causa material. Ele sabiamente afirmava “que preferia conhecer uma causa do que ser o rei da Pérsia.” Ele acreditava que a pobreza em uma democracia era muito melhor do que a riqueza em uma tirania. Foi essencialmente um livre-pensador, um observador meticuloso da natureza.

O atomismo foi essencial para o desenvolvimento da física ao longo da história da ciência, mas hoje se sabe que os átomos são muito, muito menores do que poeira flutuando num facho de luz, ou pequeníssimas lascas de poupa de maçã... Os átomos são constituídos por um núcleo de prótons e nêutrons com elétrons girando ao redor, porém mesmo estas partículas ainda são constituídas de grupamentos de partículas ainda menores, os quarks. Atualmente os quarks são o limite do “muito pequeno” observável por instrumentos, mas através de elegantes teorias matemáticas os físicos postulam que as menores unidades materiais podem ser cordas cuja vibração produziria partículas de maior ou menor massa – mas isso já é uma outra história.

Demócrito estava fundamentalmente correto quando postulava sobre a quantidade de vazio que existe entre os átomos, mas certamente não pôde vislumbrá-la em toda sua magnitude... Para se ter uma ideia básica, consideremos o hidrogênio, o elemento mais abundante do universo. A maior parte dos átomos de hidrogênio é bem simples: um único próton com um único elétron girando ao redor (é também o único elemento que não necessariamente possuí nêutrons). Caso o núcleo do hidrogênio fosse do tamanho aproximado de uma maçã, o elétron a orbitá-lo estaria vagando a cerca de 3Km de distância... Isso demonstra um universo bastante vazio!

Mas não para por aí: felizmente os elétrons jamais se chocam na natureza, a não ser em condições extremas como no núcleo das estrelas... Graças a força de repulsão eletroestática, os elétrons não se chocam (como quando aproximamos dois imãs de mesma carga). Não fosse por isso, ao cortarmos maçãs ou apertarmos a mão uns dos outros, causaríamos verdadeiros incidentes nucleares com a fusão nuclear de nossos átomos...

Se tudo que existe é, de fato, átomos e vazio, consideremos quão bizarro é este mundo onde seres constituídos de átomos deslizam para cá e para lá, e julgam estar caminhando, tocando o solo; e julgam estar realmente tocando a água ao mergulharem no mar; e julgam realmente estar tocando uns aos outros nas relações sexuais... Não, toda a matéria é intangível, e tudo o que há são átomos a deslizar em turbilhão pelo vazio infinito.

Mas e o que isso tudo tem a ver com nossa questão em relação ao materialismo? Ora, é muito comum vermos seres ignorantes responderem abruptamente quando afirmamos, enquanto espiritualistas, que não somos materialistas – eles dizem mais ou menos assim:

“Ora, então você não crê na matéria? Então vá chutar uma parede para ver se a sua perna não te convence!” – Como se o mero ato de caminhar contra o vento já não provasse algo semelhante... Ou ainda, de fato, o mero fato de estarmos aqui inteiros, sem termos explodido em uma reação nuclear, levando conosco boa parte de nossa cidade (a bomba de Hiroshima tinha apenas 0,6g de urânio enriquecido).

O que ocorre é essencialmente uma confusão de nomenclaturas e conceitos, o que, aliás, parece ser a principal razão das discussões inúteis no ramo da filosofia, da ciência ou mesmo da religião... De fato, todos somos materialistas, no sentido de crer em átomos, ah não ser talvez os mais alienados ou alucinados. Há mesmo muitos religiosos que são extremamente materialistas. Mas, então, que espécie de materialismo se opõe ao espiritualismo?

Para responder essa pergunta, primeiro teremos de analisar a grande aposta do materialismo científico...

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Crédito da imagem: Igor Kostin/Sygma/Corbis (maçãs contaminadas por radiação em Chernobyl)

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