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18.7.12

O zelote

Na primeira vez que o olhou nos olhos, quando passava pelas aldeias de Ezron, Yehudhah sentiu como se estivesse na presença de um verdadeiro rei. Seu olhar exalava tanta confiança, tanta força e determinação, que teve a certeza de que aquele seria o homem quem uniria os judeus e os libertaria do jugo de Roma... Mas, quando Yeshua falou, tudo que saia de sua boca eram ensinamentos de amor, paz e sabedoria. "Isto será muito bom" - pensou, na época - "mas somente após termos conquistado nosso território de volta".

Não obstante, seu mestre parecia ver nele alguma espécie de sábio, e não um guerreiro. Apesar de ser conhecido por toda Judeia como um artista dos punhais, um exímio assassino de romanos, para Yeshua ele era um amigo próximo, um confidente, um dos poucos há quem ele levava para caminhar a sós pelo deserto, enquanto refletia sobre o que fazer a seguir... Yeshua iria libertar a Judeia, disso ele não tinha dúvidas, mas por vezes se perguntava se levariam décadas para reunir um bom exército, e não apenas alguns poucos anos, como ele ansiava.

Naquele final de tarde, afastados dos outros seguidores, observando os desertos ao longe, ele caminhava junto com seu mestre, que cantarolava em alguma língua ao mesmo tempo estranha e familiar, da qual ele conseguia compreender somente um trecho, algo como: "Vá, vá para o deserto, o vento esconderá a trilha, a noite está para chegar, vá agora, meu irmão, vá para o deserto"... Ele não compreendia, não suportava mais esperar, tomou coragem e o interrompeu no meio do canto:

Yehudhah - Me desculpe mestre, mas eu tenho uma pergunta.

Mestre - Diga, meu amigo.

Yehudhah - Quando me juntei a você, você me disse que estava juntando um exército para libertarmos a Judeia. E eu confiei em você, pois sei quando alguém mente para mim se posso ver seus olhos, e você não mentiu, você nunca mente para mim... Mas eu não entendo, que espécie de exército estamos formando? Até agora temos apenas alguns poucos que sabem manejar um punhal adequadamente, e todos os outros são fracos, e alguns até doentes. Poderiam até se tornar soldados, quem sabe, mas o treinamento deveria ter começado já. Você quer que eu os treine todos os dias ao nascer do sol? É a melhor hora, quando aprendem mais.

Mestre - Meu amigo, eu não preciso de soldados...

Yehudhah - Mas, como assim? E como diabos iremos nos libertar?

Mestre - Yehudhah, e acaso algum soldado poderá nos fazer livres?

Yehudhah - Você me disse que seria o zelote que nos libertaria! Você me prometeu...

Mestre - Meu amigo, eu falei a verdade: eu serei um zelote da alma.

Yehudhah - Da alma? Mas como cuidaremos de nossa alma se Roma nos domina? Primeiro precisamos expulsar os romanos, depois cuidamos da alma!

Mestre - Yehudhah, acaso o deserto não lhe ensinou há essa altura? Acaso o sangue dos inocentes que degolou não lhe fez enxergar? Primeiro a alma, meu amigo, primeiro a alma... Mesmo que reuníssemos o maior exército da Judeia, e ainda que degolássemos cada soldado romano, no fim teríamos apenas substituído César por algum outro imperador opressor, e nada terá realmente sido modificado no mundo.

Yehudhah - Mas você será o imperador da Judeia, o rei dos Judeus! E você não irá oprimir, e sim ensinar tudo isso que nos tem ensinado; E então não serão alguns poucos pobres coitados a lhe ouvir, mas todos os rabinos e sacerdotes, todos os grandes mercadores e generais, todos irão reconhecer sua majestade, como eu reconheci.

Mestre - Você me reconheceu pois, como você mesmo disse: sabe olhar fundo nos olhos da alma. Você sabe que eu falo a verdade, pois então confie em mim, meu amigo... Não haverá luta nem matança. Eu não estou convidando pescadores e marceneiros para serem transpassados pelas lanças romanas. Para vencer esta guerra, apenas uma morte será necessária, e eu conto com você para isso: você é parte essencial do plano.

Yehudhah - Mas como? E que plano é esse, mestre?

Mestre - Dia virá que nossa mensagem, embora pacífica, chegará aos ouvidos daqueles que não compreendem a paz, e temem a união do povo. Você sabe como eles resolvem isso: mandam seus soldados e suas lanças. Mas será mais simples entregar o líder dos agitadores, o zelote da alma...

Yehudhah - Não! Jamais, eu não deixarei que morra na mão dos romanos!

Mestre - Mas se o corpo morre, tampouco fará alguma diferença. O que importa é a guerra da alma, a modificação do pensamento dos homens. Se o pensamento não muda, o que está a volta continuará igual, enquanto alguns corpos caem mortos, e outros se erguem em seu lugar... Se eu morrer, terá sido apenas meu corpo, Yehudhah, pois minha alma e minha mensagem continuarão no mundo por ainda muito tempo, no pensamento daqueles que compreenderam parte do que vim dizer. Contemple, meu amigo, onde está situado o meu exército...

E Yeshua, colocando-se entre ele e o sol poente, pareceu se transfigurar em inúmeras figuras de luz, a carregar belíssimas espadas pontiagudas, e armaduras reluzentes. Eles não estavam ali, não eram homens como ele, disso tinha toda certeza, mas por um momento lhe pareceu que esteve a vida toda a lutar por um mísero pedaço de terra, por um canto da Judeia, enquanto que existiam tantas outras terras por serem exploradas e conquistadas, ali ao lado, do lado de dentro, no vasto reino da própria alma... Yehudhah então disse: "Eu farei o que me pedir" - porém, ao mesmo tempo, também pensou para consigo mesmo - "Mas jamais lhe condenarei a morte, e cuidarei para que ainda viva deste lado, e ainda cantarole no deserto, por longos anos...".


raph’12

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Este conto é uma continuação direta de "O traçador de círculos", e continua em "O filho da vida".

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Crédito da foto: John and Lisa Merrill/Corbis

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2 comentários:

Anonymous HiroNakamura disse...

Inspirado em?:

http://www.deldebbio.com.br/2009/03/26/judas-o-melhor-amigo-de-jesus/

19/7/12 14:59  
Blogger raph disse...

Todos os contos desta série são baseados no Jesus conforme retratado nos evangelhos ditos "apócrifos", que na verdade nada mais são do que alguns dos evangelhos dos gnósticos, principalmente o Ev. de Tomé (que inclusive está hospedado neste blog, ver os links da coluna direita, na Página Inicial).

Neste conto em especial, realmente há uma inspiração clara no Ev. de Judas, exatamente este que a National Geographic nos trouxe em 2006.

Além disso, o diálogo entre Judas e Jesus é fortemente inspirado num diálogo bem parecido que ocorre no filme "A Última Tentação de Cristo", obra que, por sua vez, também é bastante inspirada nas versões gnósticas de Jesus.

Abs
raph

19/7/12 16:05  

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