Abrindo portas na mente, parte 1
Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).
Até hoje me lembro de quando finalmente me dei conta do que havia se passado realmente. Estava então no meio da viagem entre Copacabana e a Gávea, onde morava, no Rio de Janeiro, e meditando sobre aquilo tudo. Até aquele momento, tudo o que se passou na minha primeira regressão a vidas passadas, nesta vida, havia sido assimilado como algo corriqueiro – não havia nada para se temer, nem duvidar, ou causar qualquer espanto... Foi ali, naquele ônibus, que minha razão finalmente alcançou e abarcou toda aquela experiência, tentando racionalizar o que talvez estivesse para sempre além da racionalização, e da linguagem.
Regredir, viajar pelos portais do tempo e do espaço, certamente foi minha maior experiência espiritual, e a mais estranha das festas estranhas. Até então, havia relutado em aborda-la aqui, mas acredito que esta série não estaria completa sem este relato [1].
Não é mesmo recomendado regredir sem ter uma excelente razão, e eu talvez tivesse as minhas... Havia finalmente concordado em fazer terapia, pela insistência de meu pai, que sempre me conheceu muito bem. Estava há cerca de um mês gripado, e não me lembro de ter ficado doente por tanto tempo em outra fase desta vida [2]. Alguma coisa, de fato, estava errada comigo, mas nem eu mesmo sabia o que. Aceitei, dessa forma, iniciar uma terapia com a Kátia, uma terapeuta holística e espiritualista, que se não me engano me foi indicada por alguém da minha família. Eu só não imaginava que já iria passar por uma experiência de regressão de memória a vidas passadas já na primeira sessão [3]...
Antes de prosseguir, gostaria de passar brevemente sobre o problema psicológico que eu acreditava estar tratando, e o problema que eu tinha realmente. Não irei entrar em maiores detalhes, pois este relato não é sobre mim, e sim sobre a experiência em si:
Muito bem, em suma, eu tinha um problema que hoje costumo chamar de “complexo de santo”. Acreditava que devia me sacrificar para ser um “menino santinho”, sem namorar, sem muita vida boêmia (em pleno Rio de Janeiro!), e me dedicando com afinco a espiritualidade (foi pouco antes desta época que comecei a escrever sobe o tema [4]). No final das contas, e após as regressões, descobri duas coisas que guardei fundo na memória e na alma, até hoje: (a) Que na verdade meu “problema” com namoros advinha de traumas antigos, de outras vidas, com certas falhas minhas na formação de famílias e cuidado com meus filhos; e (b) Que em realidade toda aquela história de “ser santinho” era somente o meu ego tentando construir para si mesmo um “patamar de santidade” – em outras palavras, estava querendo “ser santinho” por mim, e não pelos outros. Essas lições foram (espero) assimiladas, mas são problemas que, decerto, ainda permearão esta e muitas outras vidas.
Agora podemos voltar à terapia em si. O consultório da Dra. Kátia parecia bastante comum, com um sofá para ela, um sofá maior, ou divã, para o paciente se deitar confortavelmente, um tapete felpudo, e baixa luminosidade. Devo dizer que a experiência em si foi tão impactante, que hoje mal me lembro das feições da Kátia, e por isso nem vou descrevê-las aqui [5].
O procedimento padrão do início da regressão era uma espécie de meditação “guiada” pela terapeuta, que me dava indicações sobre o que procurar imaginar, tentando “destravar” minha mente e alça-la em estados alterados de consciência. Uma das coisas extraordinárias da experiência é que eu permaneci consciente o tempo todo, embora certamente não num estado normal, desses do dia a dia. Somente muitos anos depois dessa experiência que fui chegar a estados similares, quando comecei a desenvolver minha mediunidade. Infelizmente, não tenho mais contato com a Kátia, e não faço ideia de qual “ramo” ou “técnica” terapêutica ela utilizou.
Mas fato é que funcionou muito bem... Após me imaginar voando pelos céus num grande balão, e deixando o solo cada vez mais distante de mim, entrei nalgum estado estranho, onde meu corpo inteiro parecia “ondular”, quase como se fosse feito de luz, e não mais de átomos com massa. Foi então que as lembranças iniciaram. Isto aqui faz parte de algumas anotações que fiz na época, dias depois das regressões:
Assim que ela indicou a idealização de um longo corredor de diversas portas, e me mandou abrir uma delas, eu comecei a regredir... Após um certo clarão de luz, me vi num monte, a grama era bem verde e a frente havia uma depressão que revelava uma extenso rio e algumas árvores. Sempre sendo guiado pelas perguntas da terapeuta, vi perto do rio uma pessoa, provavelmente um guia espiritual, que me esperava. Eu sabia que ele tinha a resposta que eu procurava, mas eu não podia andar até lá porque alguma coisa no meu peito me impedia, uma dor física mesmo, um mal estar tremendo que me fixava onde estava. Mesmo assim pude ver que usava sandálias de couro amarradas até a canela e uma túnica de cinza bem claro. Meu cabelo era castanho e dava até os ombros. Devia ter por volta de 30 anos... De resto não consegui ver mais nada.
O que acho interessante complementar aqui, sobre esta experiência inicial: (a) As lembranças eram lembranças mesmo, e não visões, ou algo como vídeo ou trechos de cinema. O que conseguia observar, era através dos meus próprios olhos (na época, sabe-se lá qual), e isto significa que não podia me ver realmente, ou seja: via apenas parte do meu vestuário, as mechas de cabelo que caiam sobre a face, meus pés e mãos, etc; (b) O registro desse tipo de memória é icônico, simbólico [6], e me parece que as lembranças mais profundas e facilmente acessáveis são aquelas revestidas de alta carga emocional – sejam lembranças boas, felizes, ou traumáticas; (c) Aquele que achei ser meu guia espiritual era, em realidade, eu mesmo, ou melhor, o meu Eu Superior, aquela entidade que parece ser capaz de lembrar perfeitamente de todas as minhas vidas e, portanto, de todas as minhas escolhas, boas ou ruins. Até hoje, se me lembro bem, esta “sensação” que me impedia de me aproximar desta entidade foi, em realidade, o maior medo que já senti nesta vida. Mas só fui compreender isso tudo anos depois, quando consegui me aproximar um pouco mais deste Eu divino [7].
Então “pulei” a uma época em que devia ter uns 8 para 10 anos...
» Na continuação, um escriba na antiga Atenas...
***
[1] Em todo caso, devo revelar muito pouco acerca de minhas vidas passadas, já que devem (ou deveriam) interessar somente a mim. Este relato está totalmente focado na experiência de regressão em si.
[2] E nunca mais fiquei mais do que alguns dias gripado, após a regressão.
[3] Decerto não seria algo indicado, mas talvez a Kátia tenha “sentido” que seria algo seguro naquele momento, e no contexto do meu tipo de problema psicológico (falo dele na sequencia do texto).
[4] Ver o conto O mensageiro dos céus, para ter uma ideia de como tudo começou...
[5] Muito do que experienciei nas regressões foi lembrado perfeitamente por muitos anos, mas nalgum momento comecei a esquecer, aos poucos, de fatos e imagens isoladas. Hoje este relato só é possível por que deixei algumas coisas anotadas na época, em 1999 (alguns trechos do texto acima foram retirados diretamente dessas anotações, geralmente estarão em itálico).
[6] Sir Charles Scott Sherrington traz uma definição muito precisa dessa questão, em seu livro Man on his nature, onde ele imagina a mente como um “tear encantado” a tecer padrões mutáveis porém sempre significativos – tecendo padrões de sentido: “Esses padrões de sentido transcenderiam programas ou padrões puramente formais ou computistas e dariam margem à qualidade essencialmente pessoal que é inerente a reminiscência, inerente a toda mnesis, gnosis e práxis. [...] Padrões pessoais, padrões para o indivíduo, teriam de possuir a forma de scripts ou partituras – assim como padrões abstratos, padrões para computador, têm de estar na forma de esquemas ou programas. Portanto, acima do nível de programas cerebrais, precisamos conceber um nível de scripts e partituras cerebrais. [...] A experiência não é possível antes de ser organizada iconicamente; a ação não é possível se não for organizada iconicamente. ‘O registro cerebral’ de tudo – tudo o que é vivo – tem de ser icônico. Essa é a forma final do registro cerebral, muito embora o feitio preliminar possa ser moldado como cômputo ou programa. A forma final de representação cerebral tem de ser, ou admitir, a ‘arte’ – o cenário e a melodia artística da experiência e da ação.”
[7] Alguns ocultistas chamam a isto de S.A.G.
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Crédito da imagem: Paul Anderson/Images.com/Corbis
Marcadores: contos, contos (71-80), espiritualidade, festa estranha, parapsicologia, psicologia, regressão
2 comentários:
Sempre é muito bom e interessante, obrigado por compartilhar.
Tempos atrás eu acho que eu era mais curioso e como eu queria a experiência de viagem astral, e regressões a vidas passadas.
Mas hoje que até conheço o início de alguns caminhos que podem levar a essas experiências (por exemplo: semana passada apareceu uma pessoa em um circulo de amizades que trabalha com hipnose), já não tenho vontade de ir à elas, pois não conheço o real motivo do meu querer, senão um pouco de curiosidade.
E algumas intuições que sinto em relação a minha vida desde pequeno vem se materializando ao longo dos tempos.
Acho que eu devo me esforçar para viver melhor o momento presente sempre... mas a minha curiosidade sempre existe, e ultimamente estou muito em dúvida se devo fazer uma cirurgia oftalmológica refrativa.
Abraço
Oi Juliano,
É como eu falei: para fazer regressão de verdade, ou é preciso ter um motivo muito bom, algo que lhe incomoda muito no fundo da alma, ou então uma curiosidade genuína e preparada "para o que der e vier", pois regressão de verdade não é bem uma coisa boa ou ruim, mas uma coisa muito boa e muito ruim ao mesmo tempo.
Portanto, é preciso estar preparado para perceber o que é muito bom, e para aceitar o que é muito ruim.
Abs!
raph
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