O recitador
Numa noite quente, enquanto retornava de seu passeio pelo deserto, Yeshua reencontrou o rabino andarilho, que um dia havia lhe convidado para sua sinagoga. Parecia cintilante em meio aquela noite sem tantas estrelas, uma alma entusiasmada sempre parecia mais com um oásis em meio a tanta secura...
Andarilho – Rabi! Rabi! Finalmente encontrei-o novamente. Estive perdido, com saudades de tua luz, então decidi abandonar as sinagogas e rumar para o deserto, atrás de tuas pegadas!
Mensageiro – Mas porque abandonou sua sinagoga?
Andarilho – Os textos antigos me escravizavam, eu quero uma nova religião, uma nova interpretação. Eu quero ser livre como tu e teus pescadores, me ajude a ser também um pescador de almas.
Mensageiro – Mas rabi, existe um lugar para cada um de nós neste grande deserto, e cada um de nós deve fazer sua parte para que ele um dia se torne um pomar.
Andarilho – Não me chame de rabi, tu que és o Rabi da Alma, e agora eu sei disso... Todos aqueles textos antigos, de nada nos servem mais, tu veio renovar à tudo, tu veio trazer uma nova lei; Tu nos oferta a Verdade, e os livros de minha sinagoga são incapazes de transmiti-la.
Mensageiro – E você acha que eu vim negar a lei antiga, apagar o texto e escrever um outro? Rabi, rabi, eis o que ocorre: a Verdade já está nos textos, e espalhada pelos ventos, pelas pedras e os galhos secos, mas nós temos dificuldade em interpretá-la, em criarmos olhos de enxergar, e compreender... Vou demonstrar o que quero dizer: você conhece a história de como Moshê guiou nosso povo para longe do jugo do Faraó?
Andarilho – Sim, claro... Mas peço encarecidamente que me rememore, pois algo me diz que, saindo de tua boca, será uma nova história, um novo êxodo...
Assim, Yeshua começou a recitar:
Mensageiro – Moshê foi encontrado no Nilo, o rio sagrado, pela filha do Faraó. Admirada pela presença de um filho das águas, decidiu educá-lo como um príncipe dentro da metrópole. Mas, apesar de sábio, Moshê cresceu inquieto, turbulento, como a água que deseja sair da represa...
Diz-se que, ao ver um feitor egípcio açoitando um escravo israelita, foi tomado de imensa compaixão para com o escravizado, e por uma cólera avassaladora contra seu opressor. Matou-o com um pensamento.
Assim, apesar de príncipe do Egito, foi obrigado a fugir da metrópole, para escapar da pena de morte do Faraó. Agradeceu a mãe, e iniciou um longo exílio pelo deserto, levando consigo boa parte dos escravos israelitas. Agora, eram todos livres, e ele era o seu santo pastor pelas areias escaldantes e as noites frias.
Diz-se que o Faraó mudou de ideia, e mandou legiões de soldados em seu encalço, para que os trouxessem de volta a sua metrópole. Moshê pensou que sua mãe poderia estar com saudades dele, mas não poderia retomar uma vida onde houvessem escravos e opressores por toda a parte – e decidiu apertar o passo, embora não soubesse ao certo para onde fugir de tantos soldados.
Numa dessas noites, enquanto caminhava ao redor da aldeia, como eu mesmo costumo fazer, eis que Moshê se depara com um pequeno arbusto em chamas, a iluminar sua noite como a mais bela das estrelas. Seu fogo não findava, pois parecia ser o gerador de si mesmo. Moshê criou olhos de enxergar, e compreendeu a mensagem que Jeová havia lhe transmitido. Alegrou-se: agora, finalmente, sabia para onde lavar seu povo!
Diz-se que, antes que pudesse adentrar aos territórios prometidos por Jeová, foi encontrado e encurralado pelos soldados do Faraó. E lá estava Moshê, com seu povo liberto, e duas opções: arriscar a travessia do Mar Vermelho, ou render-se ao desejo do Faraó.
Moshê decidiu arriscar um milagre. Levantou, com toda convicção e vontade, seu longo cajado; e, quando o pousou ao solo, veio uma ventania, com nuvens esvoaçantes, que dividiu ao próprio mar a sua frente em duas imensas colunas, cada qual com 36 carpas douradas a nadar tranquilamente em direção à outra margem, como que apontando o caminho, e dizendo: “Venha Moshê, traga contigo todo o teu povo liberto, agora basta dar o primeiro passo”...
E ele, inspirando longamente, tomou da coragem final e adentrou, com seu povo, ao mar. Assim, na medida em que caminhavam dentre as colunas, eram abençoados e elevados, de modo que os soldados que vinham atrás, mesmo com suas carruagens e camelos, escorregavam e tropeçavam uns nos outros, até que metade foi levada pelas águas, quando as colunas desceram.
Diz-se que a outra metade retornou e, contando a notícia ao Faraó, fez com que este enlouquecesse ante sua ausência. Mas Moshê havia vencido, e era livre, finalmente livre. Com a ajuda de seu povo, plantou na Terra Prometida um imenso bosque; e diz-se também que, até hoje, todo aquele com a vontade suficiente para atravessar o deserto, e mergulhar ao mar, é recebido por este povo liberto e alegre, na outra margem da Alma do Mundo.
Isto foi o que compreendi da história da fuga de Moshê do Egito...
O outro rabi tinha lágrimas nos olhos, transbordando de luz irradiada:
Andarilho – Deus te ilumine em todos os teus passos, no deserto ou acima do mar, tu és um recitador divino!
Mensageiro – Mas tudo o que fiz foi ler o mesmo texto que você leu, ó rabi. Agora que sabe do mesmo que sei, vai e retorna a sua sinagoga, e trata de os ensinar tudo isso... Pois eu vim trazer a este mundo todo o tipo de luz que tenho visto na casa de meu Pai. Mas algumas luzes são cintilantes demais para que sejam expostas de uma vez ao mundo. Você, que tem olhos para enxergar, e não ficar cego, será aquele que guardará este segredo, até que um dia este deserto esteja suficientemente ungido e umidificado, para que a luz possa ser exposta, a fim de que o povo do futuro também possa, como Moshê, rebelar-se contra seu Faraó, meditar no deserto, atravessar o mar, e atingir sua própria terra de boa aventurança.
Vá em paz, ó rabi!
(escrito com base na interpretação compartilhada por Rafael Chiconeli no III Simpósio de Hermetismo, em São Paulo, Novembro de 2012)
raph’12
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Este conto é uma continuação direta de "O filho da vida". A série se concluí em "O amante".
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Crédito da foto: RelaXimages/Corbis
Marcadores: cabala, contos, contos (71-80), espiritualidade, judaísmo, mitologia, Moisés, O mensageiro dos céus, Rafael Chiconeli, Simpósio de Hermetismo
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