A idade do ser, parte 1
Personalidade é o conjunto de características psicológicas que determinam os padrões de pensar, sentir e agir, ou seja, nossa individualidade pessoal e social.
Bem vindo ao baile
Numa sala há três crianças e dois adultos a observá-las. Duas dessas crianças, Sally e Ann, são atrizes mirins, contratadas para o experimento. A outra criança se chama Sarah, e é o objeto do experimento em si – ou, mais precisamente, sua mente.
Na sala, a frente de onde Sarah está sentada (apenas observando, conforme instruída pelos cientistas), há três objetos: uma bola de plástico, um cesto e uma caixa de papelão... Inicia-se o experimento: Sally caminha até a bola, a pega e coloca dentro do cesto. Enquanto a outra garota, Ann, apenas observa, Sally sai da sala. Neste momento, Ann se levanta rapidamente e vai até o cesto, pega a bola e a coloca dentro da caixa, logo voltando para a mesma posição onde estava. Então, cerca de um minuto após, Sally retorna a sala. Ela diz em voz alta: “Quero brincar com a bola!”; e então uma voz de desenho animado ressoa nos alto falantes da sala: “Sarah, onde Sally vai procurar pela bola, no cesto ou na caixa?”. Os cientistas anotam a resposta.
O que este experimento aparentemente bobo (chamado “Teste Sally-Ann”) pode demonstrar é algo extraordinariamente importante para o convívio do ser humano no mundo: a capacidade de compreender o outro como um ente em separado, uma mente que pensa por si mesma.
Caso Sarah responda que Sally vai procurar pela bola na caixa (onde Ann a colocou), ela não demonstrará a capacidade de formular uma teoria da mente, ou seja, de considerar que a mente de Sally está dissociada da sua, e opera por si mesma, portanto não teria como saber que a bola havia sido retirada do cesto no minuto em que se ausentou da sala. No entanto, quando crianças como Sarah respondem que Sally vai procurar pela bola no cesto, e que não irá encontrá-la, demonstram que sua mente já é suficientemente desenvolvida para compreender duas coisas: (a) Que cada mente opera por si mesma, e tem sua própria personalidade; (b) Que exatamente por isso, uma mente pode enganar a outra, mentir.
Estudos recentes [1] mostraram que crianças tão jovens quanto 10 meses de idade já conseguem “passar” neste teste. Algumas crianças autistas terão muito mais dificuldades para chegar a este estado de compreensão “do outro”... Ao que tudo indica, esta capacidade de conviver com outras mentes, e as compreender como dissociadas de nós mesmos, está no cerne de nossas potencialidades sociais, estas que vêm se desenvolvendo desde os primórdios dos hominídeos.
Não é a toa que a mentira e a falsidade são amplamente repudiadas em qualquer grupo ou sociedade: desde a época em que convivíamos em pequenas tribos espalhadas por ermos inóspitos e desconhecidos, precisávamos confiar um no outro – esta era a essência da sobrevivência em grupo. Por mais paradoxal que seja, no entanto, sempre houveram aqueles dentre nós que souberam usar da falsidade para obter vantagens pessoais. Afinal, se podemos enganar as pessoas sem sermos pegos, ou acreditando que não seremos pegos, porque não ir em frente?
Mas ainda assim é preciso tomar muito cuidado. Não muito tempo atrás, quando um marido era traído por sua esposa, estava em seu direito puni-la, às vezes até com a morte. Esta “defesa da honra” pode hoje parecer barbárie (e, de fato, o era [2]), mas diz muito sobre o quanto o ser humano odeia ser passado para trás, principalmente quando acredita estar num certo patamar social, quando crê piamente ser “o dono da situação”.
O que muitos não sabem, no entanto, é que foi o próprio ato mental de reconhecer uma “vontade alheia” no outro que fez com que criássemos nossa própria personalidade. O termo vem do latim persona ou personare, que significa “máscara”, mas há alguns que também o ligam etimologicamente ao latim per se esse, “ser por si”... E, como num baile de máscaras, só entram aqueles que trazem a sua.
Não houvessem outros seres humanos no mundo, ninguém com quem pudéssemos conversar, confiar ou enganar, amar ou odiar, provavelmente não estaríamos aqui pois não teríamos nascido. Mas, se por alguma razão algum deus estranho nos houvesse criado já humanos, a partir do nada, e estivéssemos por aqui sós, não teríamos personalidade alguma: seríamos a mais pura e inocente das pessoas e, provavelmente, a mais ignorante. Talvez por isso os mitos sempre afirmem que fomos criados aos pares: é preciso conviver, é preciso enganar e ser enganado, confiar e ser confiado, odiar e ser odiado, amar e ser amado.
Mas, será que teremos apenas uma única personalidade? E, mesmo que seja apenas uma, será que ela tem se mantido a mesma, exatamente a mesma, ao longo dos anos?
» Em seguida, 15 anos depois...
***
[1] Ver O livro do cérebro (Ed. Duetto).
[2] Inclusive porque, quando ocorria o contrário – o marido trair a esposa –, a esposa traída não tinha, na prática, nenhum direito legal a uma “defesa da honra”.
Crédito da foto: Heide Benser/Corbis
Marcadores: antropologia, artigos, artigos (191-200), filosofia, personalidade, psicologia
2 comentários:
A série está interessantíssima. :)
Muito bem escrito, parabéns.
Obrigado, foi a série de textos mais improváveis que já escrevi aqui no blog, terminei hoje :)
Abs
raph
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