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2.12.13

O último suspiro

Se há uma lenda que me incomoda é a lenda da luta eterna entre a fé e a razão, a ciência e a espiritualidade. Não acho que seja assim, não creio em tal lenda, acho que foi inventada e têm sido constantemente anunciada exatamente por aqueles que beberam somente das águas paradas no charco em torno do córrego do Cosmos. Era preciso encharcar as galochas, era preciso avançar sobre o matagal, era preciso ter a água até a cintura e, só então, ter coragem para mergulhar.

Mas não mergulharam, e acharam que a ciência era somente uma descrição mecanicista da natureza, um mero conjunto de equações; E acharam, isto também, que a espiritualidade era somente o que este ou aquele deus dizia que fosse, um mísero conjunto de orações para se decorar, e anedotas para se contar na mesa de jantar pouco antes da ceia de Natal.

Ah, os eclesiásticos, eles querem nos convencer de que há algum Deus que pode ser enclausurado nas paredes de seus templos, e ser obrigado a escutar, agachado e sem poder dançar, a toda a sua lenga lenga escrita em tomos de capas douradas e encenada com mantos de pura seda. Mas foi exatamente um de seus filhos que orou nos desertos, e que nos falou que ele estava espalhado por tudo o que há, e que os ventos traziam seu perfume.

E os acadêmicos? Eles querem passar em seus vestibulares e publicar suas pesquisas minuciosas nas revistas mais badaladas. Eles querem provar suas teorias do tudo, e as esfregar na cara de todos aqueles que ainda ousam acender uma vela para um santo ou orixá. O que ganham com isso? Melhor seria se eles mesmos acendessem suas velas para os deuses – o deus da Gravidade, o deus da Eletricidade, o deus da Energia Escura. Há muitos e muitos deuses pelo Infinito!

Mas quem, como Feynman, apenas se deleita em conhecer um pouco mais acerca da inefável natureza da Natureza? Quem, como Feynman, já compreendeu que, ao final da vida, não haverá nenhum Professor para lhes fazer um questionário final, nenhuma média que precise ser alcançada e nenhuma teoria que precise ser comprovada. E, da mesma forma, tampouco haverá algum Juiz para lhes decretar o caminho do Céu ou do Inferno.

O Inferno já existe na mente daqueles que o temem, ou que já desistiram deste mundo. No Céu, afinal, entraremos todos de mãos dadas. E, de fato, já estamos caminhando de mãos dadas. Só que, quando os da frente tropeçam, nem sempre os que lhes davam a mão se mantém firmes e o seguram onde estava. É por isso que todos tropeçam nas mesmas pedras e vagueiam em zigue-zague pela existência, cada qual procurando ser o Super-homem capaz de vencer todos os erros do ser humano.

Ah Nietzsche! Quão pouco faltou para compreender... O Super-homem não era um homem só acima dos demais, mas uma comunidade que se torna maior por pensar na mesma vibração e amar o mesmo horizonte. Esqueçamos também o que disseram o primeiro e o segundo zaratustras, eles também ficaram velhos, e o rio que corre hoje não é mais o mesmo que correu há mais de um século.

E se Deus está morto, que o façamos ressuscitar, ou reencarnar nalgum outro deus – contanto que tenha espaço para dançar, pois nisso o bigodudo estava certo!

Deus e Natureza, afinal, são apenas palavras, e as palavras deveriam servir para o entendimento dos homens e mulheres, jamais para o seu afastamento. Se os cientistas observam as estrelas mais distantes em seus aglomerados galácticos, se valendo de suas lunetas tão modernas, também os espiritualistas observam a fundo, e cada vez mais fundo, o abismo de suas próprias almas.

E o que falta, senão mergulharem? Senão construírem naves espaciais e barcos mitológicos para navegarem para dentro e para fora de si mesmos? “Deus ao mar o abismo e o perigo deu, mas nele é que espelhou o Céu”, disse o poeta que também foi navegante...

Os tempos já são chegados e a Natureza já dá os seus sinais. Extraímos metade do petróleo existente na Terra, e em poucas gerações iremos nos digladiar por água doce. Não há mais tanto tempo assim. Não é que o mundo esteja ameaçado, somos apenas nós, os seres humanos, que temos cada vez menos tempo para ajustar as coisas.

E, se não vamos mais ao Coliseu ver feras devorando escravos, disso não podemos nos abster de comemorar... Mas, como sabemos, ainda é cedo para que tenhamos a batalha por ganha. O animal ainda se esgueira pelos charcos da alma humana, e sem o fogo, sem a morte e o renascimento, estaremos fadados a continuar repetindo os caminhos em círculo de nossos ancestrais.

Se existe Deus ou o neutrino, quem vai saber? O desconhecido inexistente é idêntico ao existente. Quem já deu alguns passos neste Caminho, no entanto, sabe. Como Agostinho sabia: “Amanhã, amanhã? E porque não hoje?”.

Demoramos tantas eras, tantas gerações e vidas, para chegar até aqui. E quanto mais sabemos, mas há por saber. Mas sabemos! Sabemos que o Infinito fica ali, logo adiante, logo após o horizonte.

Até quando ficaremos separados, nos digladiando em nossas caixas de areia, enquanto há tantos bosques, prados e montanhas tão maiores? Muito maiores...

E quem já deu alguns passos neste Caminho, quem já subiu na beirada do monte, quem já viu de relance o serpentear do córrego do Ser pelas escarpas longínquas do verdadeiro Paraíso sabe.

E dá um último suspiro, e este suspiro é tudo o que os demais precisam experimentar.

Para viver na imensidão, é preciso antes morrer em si e para si.

***

Crédito da foto: Oleg Oprisco

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2 comentários:

Anonymous Peterson disse...

Magnífico como sempre! Não é necessário falar nada além disso.

Gratidão pelas palavras de inspiração e reflexão.

2/12/13 21:08  
Blogger raph disse...

Obrigado Danda!

2/12/13 21:14  

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