Caixas quebradas
» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...
Há quase dez anos atrás eu vivenciei um instant karma, ou um carma instantâneo.
Somente quem passou por isso, e crê em carma, pode saber como é. Em todo caso, outro dia tentei descrever nas redes sociais, comentando uma notícia que tinha a ver com o tema:
Um dia eu fiquei muito revoltado com a minha mulher. Acabei dando um soco na lateral do armário, e toda a minha coleção de CDs de música caiu junto com uma prateleira que se deslocou da parte superior. Naquele momento eu pensei comigo mesmo: instant karma! Até hoje, quando vejo as caixas quebradas dos meus CDs ao abrir o armário, lembro da importante lição que aprendi da Natureza naquele dia...
A notícia em questão era uma notícia do blog do psiquiatra Jairo Bauer, onde ele trazia dados de um estudo realizado nos EUA que chegou a aterradora conclusão de que um em cada cinco americanos agredia a sua parceira.
Como era um canto das redes sociais frequentado por feministas, elas logo tratarem de me alertar:
Pesquisas indicam que o soco no armário é só o começo, depois você poderá estar dando um soco na cara da sua mulher, o que provavelmente é o que gostaria de ter feito!
Posso lhe garantir que o trauma que sua mulher passou não se compara as caixas quebradas dos seus CDs de música!
Vocês podem pensar que eu fiquei chateado com esse tipo de reação... Muito pelo contrário, é o tipo de reação que deveria se esperar de mulheres feministas que estão bem informadas sobre o quadro da violência doméstica no Brasil e no mundo. Melhor pecar pelo exagero do julgamento apressado do que pela leniência da maioria, que costuma dizer que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Mas talvez tivesse ajudado se eu houvesse explicado melhor o que eu senti exatamente naquele dia, há quase dez anos atrás...
Como eu estava com uma raiva muito súbita da minha mulher, achei por bem sair do quarto onde estávamos discutindo e ir para outro, e foi assim que entrei no quarto em que soquei a lateral do armário. Ora, é óbvio que eu soquei o armário por estar com raiva, é óbvio que se esta raiva não fosse tratada, compreendida e, quem sabe, domesticada, nalgum dia o alvo do meu soco poderia realmente ser o rosto da minha mulher – e isto é muito grave!
Mas não foi sem a ajuda do instant karma que eu consegui chegar a tal conclusão. Na verdade, eu não dou a mínima para as caixas quebradas dos CDs. De fato, se quisesse eu poderia ter comprado outros CDs. O que me interessa nas caixas quebradas é o símbolo que elas representam, e que me trazem a lembrança daquela vivência:
Quando vi toda a minha coleção de CDs no chão, foi como se ouvisse uma mensagem da Natureza: “Você tem certeza de que quer prosseguir neste caminho? Daqui para frente será só amor corrompido, e cada vez mais corrompido”.
Até hoje, toda vez que abro meu armário e troco de roupa, me lembro daquela mensagem da Natureza.
Um estudo do Ipea estima que, entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios, ou seja, “mortes de mulheres por conflito de gênero”, especialmente em casos de agressão realizadas por parceiros íntimos. Esse número indica uma taxa de 5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres. Neste país, a cada uma hora e meia, em média, morre uma mulher vítima da violência do seu companheiro.
Nos EUA, recentemente, imagens do circuito interno de um hotel flagraram um astro do futebol americano agredindo a sua esposa dentro do elevador. As imagens mostram que ela desmaiou com um único soco, que a fez bater com a cabeça no corrimão de aço do elevador. Alguns andares depois, o jogador a arrasta para fora do elevador e espera ela acordar, enquanto um funcionário do hotel tem o cuidado de segurar a porta para que não se fechasse nas pernas dela.
Devido a enorme pressão popular por conta da divulgação das imagens na web, o Baltimore Ravens, time pelo qual jogava, decidiu demiti-lo, enquanto a liga de futebol americano, a NFL, o suspendeu indefinidamente. Agressões de jogadores as suas esposas ocorrem há anos nos EUA, dificilmente tal caso teria esse desfecho não fosse pela divulgação das imagens.
Mesmo assim, esta foi a mensagem que a esposa agredida divulgou na web, no dia seguinte a agressão:
Tirar algo do homem que amo e que ele se dedicou por toda a vida apenas para ganhar audiência é horrível. Essa é nossa vida! Por que vocês não entendem? Se a intenção era nos machucar, nos envergonhar, nos fazer sentir solitários, tirar toda nossa felicidade, vocês tiverem sucesso.
Esses foram apenas alguns dados estatísticos que refletem o atual estágio de nossa sociedade. Aqui, nos EUA e em boa parte do dito mundo civilizado.
Já foi muito pior, é claro. Não muitos anos atrás a alegação de “legítima defesa da honra” ainda salvava muitos maridos homicidas da condenação pelos seus crimes. Após o caso Doca Street isso mudou. Mas ainda precisamos mudar muito, muito mais!
A própria Lei Maria da Penha, um marco na legislação brasileira, só conseguiu reduzir ligeiramente a mortalidade das mulheres nos primeiros anos após a sua implementação. Hoje a curva da violência doméstica letal já retornou aos mesmos patamares do período anterior a Lei.
Mas ao menos hoje em dia tal assunto não é mais varrido para debaixo do tapete. Ao menos hoje em dia muitos homens e mulheres, feministas ou não, já têm plena compreensão da devastação que a violência doméstica causa em nossa sociedade e em nossas relações, na maioria das vezes, silenciosamente.
O macho é educado para ser viril, para não chorar, para sustentar a casa, etc. Mas o macho também é educado para proteger suas famílias, seus filhos e, sobretudo, para nunca, em hipótese alguma, agredir uma mulher ou uma criança. Como podemos ver, a visão dos machos sobre a própria educação é um tanto quanto seletiva. Muitos provavelmente ainda achariam uma tragédia muito maior chorar em público do que ser visto agredindo a mulher... A educação dos machos falhou, é o que milhares de estatísticas demonstram.
Eu gostaria muito que todo o “homem macho” pudesse um dia sentir, vivenciar, o instant karma que eu passei. Eu gostaria de fazê-los compreender que este tal caminho de “ser muito macho” é uma dos caminhos mais nocivos e corruptores que o ser humano já inventou. Corruptor de almas, nocivo a própria vida.
Eu gostaria, enfim, que todos pudessem um dia ver a si mesmos como eu me vi naquelas caixas quebradas, que em realidade também eram o reflexo de uma alma que vinha se rachando...
Mas eu me consertei a tempo. Espero que outros tenham a mesma sorte. Mas, enquanto a sorte não vem, espero também que as suas companheiras compreendam, cada vez mais, que o amor não tem nada, absolutamente nada, a ver com qualquer tipo de violência.
Segundo a falsa ideia de que não é possível reformar a sua própria natureza, o homem se julga dispensado de empregar esforços para se corrigir dos defeitos em que de boa-vontade se compraz, ou que exigiriam muita perseverança para serem extirpados. É assim, por exemplo, que o indivíduo, propenso a raiva, quase sempre se desculpa com o seu temperamento. Em vez de se confessar culpado, culpa seu organismo, acusando a Deus por suas próprias faltas. (Hahnemann)
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Crédito da imagem: Google Image Search/Conversation
Marcadores: contos, contos (101-110), Cotidianos, espiritualidade, esportes, existência, feminismo, violência, violência doméstica
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