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10.3.12

Sem Deus, tudo é permitido?

Parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre esses dois distintos participantes, não deixe de ler sobre a premissa da série.

[Raph] O jainismo é uma das mais antigas e rigorosas doutrinas religiosas de nossa história. As histórias que falam em monges jainistas retirando pequenas larvas do solo antes de cavá-lo para plantar, de modo a não causar dano sequer aos menores seres visíveis da natureza, são, acreditem, bem mais reais do que anedóticas. Apesar de seu ascetismo extremo, e sua busca constante pela não violência, é perfeitamente possível ser um jainista sem crer em Deus ou quaisquer deuses.

Alguns defensores da ética religiosa afirmam que sem o devido temor a Deus, e/ou a promessa de um Céu Eterno, não haveria razão para que os homens fossem éticos e amorosos uns com os outros. O humanismo, pelo contrário, em todas as suas vertentes coloca o respeito ao próximo, e a sua liberdade de pensamento e ação, como a ética mais elevada e que, por si só, é sua própria recompensa, já que num sistema onde todos são humanistas, um Céu Eterno talvez nem fosse mais necessário – já estaria instaurado na própria Terra.

Mas, será que o humanismo e o jainismo são quase utopias, sistemas por demais rigorosos para que todos os seres humanos um dia se incluam neles? Ainda há espaço para ser otimista ante um mundo em intenso conflito, ou a intolerância, em todas as suas mais nefastas manifestações, tem vencido a batalha? Em suma: se Deus não existe, tudo é permitido? [1]

[Del Debbio] A ideia da Religião como ferramenta para o domínio dos povos é muito antiga. Os faraós se utilizavam destes artifícios para criar normas de conduta e moral para toda a população do Egito. Os judeus, através de Moisés, reorganizaram estes preceitos nos chamados “dez mandamentos”, que por sua vez, tornaram-se a base canônica para o grande pilar de dominação do ocidente, a Igreja Católica Apostólica Romana.

O medo de um Deus vingativo ou a punição eterna em um Inferno escaldante fazia com que as pessoas andassem na linha. Nem todos os Infernos eram iguais... Para os nórdicos, Hel era uma caverna de gelo onde os condenados passariam a eternidade no frio e com fome. Faz sentido. Se o inferno Nórdico fosse quente, todos iriam querer ir para lá. Assim, a idéia do símbolo do Inferno sempre foi “um lugar onde não gostaríamos de estar”.

Para os ocultistas, a idéia do Inferno nunca passou de um símbolo abstrato, porém, para a população geral, vigora até os dias de hoje a ideia de uma troca no estilo Pavlov, onde as pessoas deveriam ser boas para irem para o céu e se forem contra os preceitos de algum dos livros sagrados, irão para o colo do capeta ou algo parecido.

Mas e quando esta ideia parece cada vez menos coerente com o mundo ao nosso redor? Símbolos podem se dar ao luxo de serem monstruosos, angelicais, fantásticos e impressionantes pois são, afinal de contas, símbolos. Mas quando religiosos fanáticos utilizam-se destes símbolos como se fossem coisas literais, esta visão começa cada vez mais a não fazer sentido em confronto com a realidade.

E quando não existe mais uma cadeia? Observamos recentemente em Salvador-BA o que acontece com a nossa civilização quando a polícia entra em greve por uma semana. O que aconteceria com o mundo se as pessoas, no grau de evolução mental que estão, soubessem que não há inferno ou punição para elas aguardando no final de suas vidas?

Creio que as religiões, mesmo as dogmáticas, servem como um freio enquanto a humanidade evolui lentamente e um dia não precisaremos mais de nenhuma delas. O estudo da espiritualidade em conjunto com o Humanismo e o respeito à natureza, livre de qualquer dogma ou preceito religioso ou materialista, será o caminho evolutivo natural para a espécie humana.

Para o alquimista, não faz a menor diferença se existe um Deus ou não. As ciências herméticas são a busca pelo autoconhecimento – descobrir qual é a própria Verdadeira Vontade e exercê-la em prol da evolução da humanidade como um todo. Vejamos o ateu: se é sincero em seu coração, não há diferença para um alquimista senão a dos símbolos e metáforas utilizados.

O trabalho de um magista é aperfeiçoar-se até o máximo que puder. A interação perfeita da ciência com a religiosidade. Todos já ouvimos diversas destas alegorias: “Transformar o chumbo (do ego) no ouro (da Essência)”, “Desbastar a Pedra Bruta”, “Transformar Carvão em Diamante”, “Encontrar a Pedra Filosofal”, “Tirar as ervas daninhas para que as rosas floresçam no Jardim”, e outras.

Através da Alquimia, uma vez que cada pessoa trabalhe seus Vícios e os transforme em Virtudes, chega-se ao exato mesmo princípio do Humanismo ou do Jainismo (que nada mais são do que vertentes da mesma filosofia do “ama ao próximo como a ti mesmo”). Se existir um céu e um inferno, os alquimistas estarão preparados. Se não existir, fizeram o melhor que puderam dentro do espaço de suas vidas; se existir uma vida após a morte, continuarão da onde pararam aqui...

[Mori] Há alguns anos traduzi um fabuloso ensaio de Eric Raymond sobre “o mito do homem assassino”, que resumo em seguida. É a crença de que os seres humanos são animais unicamente violentos, escassamente contidos de cometer atrocidades uns aos outros pelas restrições da ética, da religião e do estado. Parece estranho questioná-lo, com as trágicas notícias com as quais somos bombardeados, mas basta analisar o animal humano com os olhos um tanto mais distantes de um observador do mundo natural para chegar à constatação de que não somos seres especialmente violentos.

O estilo de luta instintivo que desenvolvemos, por exemplo, nos impede de ferir seriamente uns aos outros, direcionado especialmente a empurrões e socos em áreas duras como cabeça ou tórax. Eles podem deixar o oponente inconsciente, mas as chances de que o matem são muito menores do que se mirássemos em partes moles e vitais, como artistas marciais aprendem a desenvolver mesmo em um único golpe fatal. É preciso treinamento para transformar um homem comum em um assassino, e isto mesmo quando este homem é equipado com uma arma de fogo: ao redor de 70% das tropas em sua primeira situação de combate é incapaz de disparar contra o inimigo. É preciso treinamento e intensa ressocialização para suprimir nossos instintos e criar soldados capazes de matar sob comando.

E comando é justamente o alerta de Raymond. O mito do homem assassino é promovido justamente por aqueles em comando, segundo os quais precisamos ser salvos de nós mesmos através da uma disciplina rígida com punições rigorosas que nos separaria da selvageria, quando a evidência histórica e comportamental indica que as maiores selvagerias são praticadas justamente sob comando e disciplina rígidas de um grupo contra outro. Nosso maior medo não deveria ser nosso suposto instinto assassino latente, aquele que é visto na prática apenas em uma pequena parcela da população, comumente surgida como parte, ainda assim minoritária, de grupos intensamente oprimidos. E que, não por coincidência, criam suas cadeias de comando e controle social próprias, e ainda mais rígidas.

Nosso maior medo deveria ser justamente o controle e manutenção de uma hierarquia e controle social estritos que exploram um instinto que a maioria de nós realmente possui: a obediência cega a figuras de autoridade. Sejam elas presentes na terra, sejam elas aquelas fictícias no céu, que podem ser ainda mais perniciosas. Em nome de deus, a autoridade última, tudo é permitido.

Tememos os perigos errados. Apesar disso, há motivo para otimismo porque a ignorância, a intolerância e a violência não estão vencendo a batalha. Somos hoje sete bilhões de seres humanos. Nunca tantas vidas viveram ao mesmo tempo, tanto tempo, aproveitando tão bem o seu tempo. Em particular no Brasil, e mais especificamente sobre os leitores deste texto, podemos dizer que somos privilegiados com um padrão de vida superior aos dos mais abastados reis e conquistadores, dos mais bárbaros e selvagens, de apenas alguns séculos atrás. E não precisamos oprimir ou assassinar ninguém para tal – bem, ao menos não tão diretamente quanto eles, espero. Por gerações grandes pensadores sonharam com enormes arquivos de conhecimento, e grandes visionários imaginaram fóruns livres para a difusão e discussão de conhecimento. Você está em frente a esse sonho neste exato momento.

Este privilégio não foi alcançado por acidente. Nossos ancestrais não tão distantes talvez achassem que uma mulher, um negro, homossexual ou membro de uma minoria qualquer tendo acesso a esta rede de conhecimento hoje fosse um absurdo. A religião, o Estado, a sociedade, a tradição e os bons costumes ditavam tal. Do contrário, seria a selvageria. Hoje vemos que eles é que viviam em um mundo um tanto mais selvagem que o nosso, e se estudarmos um tanto da história recente descobriremos como essas conquistas valorizando cada vida humana foram resultado de longas batalhas. Muitas destas batalhas foram vencidas e, sim, vivemos em um mundo melhor. O mundo pode ser transformado para melhor, ele foi transformado para melhor, e ele deve ser transformado para muito melhor.

Há muitas outras batalhas a vencer. Não há nada muito rigoroso no humanismo – há vertentes específicas do humanismo com algumas definições mais rigorosas, mas valorizar a vida humana é um instinto natural do animal humano. Se você ri de um bebê gargalhando, se compartilha a dor da mera imagem de alguém se cortando, se em seus momentos mais irados pensa em dar um murro no rosto de um desafeto – e não em planejar como assassiná-lo com crueldade de fato – parabéns, você faz parte da maior parcela da espécie humana. Somos sete bilhões.


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Esta foi a sétima e última pergunta da série. Fica aqui um sincero agradecimento a generosidade e ao entusiasmo dos dois participantes... Espero que essas reflexões possam trazer luz a cientistas e espiritualistas, e a todos nós: humanos.

***

[1] Eu estou, propositadamente, usando esta frase de Fiódor Dostoiévski fora de contexto, pois ela acabou se tornando uma frase relativamente conhecida na cultura popular, exatamente desta forma, e não na forma original, conforme consta em mais de um trecho da obra Os Irmãos Karamazov. Ironicamente, considerando-se o desenvolvimento da questão ao longo do livro, por fim temos uma consideração que tende claramente ao humanismo. Finalmente, é justo lembrar que o Deus em questão seria, muito provavelmente (ou aproximadamente), o Deus do Antigo Testamento da Bíblia.

***

Crédito da foto: moodboard/Corbis

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8 comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Lindo o desfecho do Mori.
Meus parabéns pela sinceridade dos dois pensadores.

Um fraterno abraço,
De um ser humano, de um espírito.

Leandro.

10/3/12 18:57  
Anonymous Anônimo disse...

Há uma coisinha chamada consciência, que é muito mais ampla que a a "consciência moral" e a "consciência sensorial", mas que abarca ambas. Infelizmente, tem sido muito negligenciada. Não vou entrar numa discussão sobre a existencia de Deus. Não faço nada pensando se o agrada ou o desagrada, pois para mim, a manifestação da Vontade Dele é a minha consciencia. Ela é "deus" dentro da minha cabeça...
Se não firo alguém, mesmo com palavras, é porque ela grita que não o faça. Se peço desculpas quando o faço, é porque ela me faz sentir a mesma dor que causei. Infelizmente, ao invés de cultivá-la e expandi-la, alguns tentam silenciá-la, ou matá-la...
Eu quero é que ela cresça em mim e que eu esteja em paz com ela...

Abraços

11/3/12 15:29  
Blogger raph disse...

Não posso deixar de comentar: o que o Anônimo acima acabou de dizer, se parece em muito com o Tao.

Abs
raph

11/3/12 17:55  
Anonymous Anônimo disse...

Anônimo, se a sua consciência te manda matar, isso é certo, é o Diabo ou uma manifestação da justiça divina? Hahuehaeuahuha, funny...

28/3/12 14:50  
Blogger raph disse...

É uma manifestação da vontade.

28/3/12 15:15  
Anonymous Alex disse...

Com Deus, TUDO é permitido, basta pedir perdão, fazer um despacho ou algo do tipo. Toda religião oferece um perdão. Mas sem Deus, sem vida após a morte, uma pena de morte é algo bem mais assustador não é mesmo?

28/3/12 20:53  
Blogger raph disse...

Depende para quem vc pergunta. Para um epicurista, um estóico, e diversos seguidores de doutrinas espiritualistas orientais que focam no hoje, e não tanto no amanhã e nem na morte, não haveria nada do que se temer em não existindo consciência ativa para temer algo. A morte nada mais é que o cessar da consciência: todas as noites morremos, e todos os dias acordamos, até um dia em que nosso corpo não mais acorda, nosso cérebro não mais gera atividade elérica, e não podemos saber se "alguém" acorda em algum outro lugar...

Se acordar, pode até ter medo. Se não acordar, certamente não terá medo, nem sentimento algum.

Abs
Raph

28/3/12 23:28  
Anonymous Eduardo Bellotto disse...

O mais interessante de tudo é que no fundo, no fundo, os dois disseram a mesma coisa com símbolos diferentes.

19/5/12 11:31  

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