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26.9.12

A roda dos deuses, parte 1

Há uma lenda bastante difundida entre as religiões ocidentais que afirma, basicamente, que o monoteísmo, a “descoberta” do Deus Único, foi uma concepção originária do judaísmo. Segundo esta lenda, existem no mundo algumas poucas religiões monoteístas, derivadas da crença hebraica, e outras tantas que creem na existência de vários deuses de origem paralela – o chamado politeísmo.

A verdade, no entanto, pode ser mais profunda... Joseph Campbell foi um estudioso de mitos e religiões em todo o globo, e em O poder do mito ele deixa muito claro o que acredita ser a principal diferença entre as grandes religiões ocidentais, e as orientais: Enquanto a oeste do canal de Suez, a maioria das pessoas identifica Deus com a fonte da Alma do Mundo, a leste de Suez, a associação que se faz é a da divindade como o veículo desta energia transcendente.

Por isso as religiões ocidentais tendem a identificar a Deus como um Grande Senhor que, sabe-se lá de onde, mantém a fonte da vida em constante afluência, enquanto que as religiões orientais tendem a ver esta divindade por toda a volta – ela seria o próprio fluido em movimento, a habitar a essência de todos os seres e de todas as coisas.

O curioso é que ambas as visões são complementares, e parecem ser apenas formas diferentes de se observar este grande mistério: “porque existe algo, e não nada?” Para resolver tal questão ancestral, a mente humana tem se aventurado a observar os recônditos mais distantes do Cosmos, e a mergulhar cada vez mais profundamente dentro de si mesma... Este grande conjunto de dualidades, de opostos, emanados de uma única fonte, mas que preenchem a tudo o que há, é precisamente isto a roda dos deuses. Reflitamos:

O Uno
Conta-nos o estudioso de mitologia e religiões, Mircea Eliade [1], que os poetas criadores do Rig Veda hindu já se questionavam, provavelmente muito tempo antes dos hebreus, acerca do problema do ser, ou do incrível fato de, afinal, algo existir: “O Uno respirava por impulso próprio, sem que houvesse inspiração ou expiração (...) Afora isso, nada mais existia”. Depois, segundo eles, através de um ato de desejo e vontade, a “semente primeira” dividiu-se em “alto” e em “baixo”, num princípio masculino e noutro feminino, e depois irradiou ou emanou de si mesma, como um pensamento, tudo o que há.
Desta forma, os milhares de deuses hindus são, eles mesmos, uma “criação secundária”. Daí nasce o grande questionamento de um desses poetas hindus anônimos e ancestrais: “Será que aquele que zela por este (mundo) no lugar mais alto do firmamento é o único a saber (da origem da “criação secundária”) – ou nem mesmo ele sabe?”.
Se é verdade que nem todas as interpretações dos Vedas chegaram a tal profundidade, não é verdade que nenhum sábio hindu tenha chegado a conclusões muito próximas dos hebreus – tudo o que há haveria de ter sido criado ou irradiado de uma só fonte, de um só Deus. Dessa forma, a ideia básica do monoteísmo está longe de ser uma criação do judaísmo, ou pelo menos, apenas do judaísmo.
Esta mesma conclusão está presente no Antigo Egito (particularmente no hermetismo), na filosofia de Parmênides (e alguns filósofos pré-socráticos que não a desenvolveram com a mesma profundidade), no estoicismo, no pensamento de Plotino e, mais recentemente, na monumental obra de Espinosa, a Ética.
Mas, e seria este Uno um ser pessoal, ou alguma espécie de energia inefável, de força ou lei oculta da Natureza? Disto não podemos saber, apenas apostar... Mas, ainda que apostemos na hipótese da energia inefável, ainda aqui teremos sido precedidos por Lao Tsé em muitos séculos: “O Caminho é vazio e inesgotável, profundo como um abismo. Não sei de quem possa ser filho, pois parece ser anterior ao Soberano do Céu” (Tao Te Ching, verso 4).

A Deusa Mãe
A adoração do aspecto feminino, fértil e vivificador da divindade data da pré-história (o que pode ser comprovado pelas inúmeras estatuetas de uma “grande mãe” encontradas pelos arqueólogos em vários pontos do mundo).
Quase 3 mil anos antes de Cristo, na grandiosa cidade de Uruk, na Suméria, o templo de Ishtar dominava a civilização da primeira grande cidade. Ishtar, entretanto, era apenas mais um nome dado a Grande Deusa, que era adorada então por muitas outras culturas na Terra. Nada se comparava ao poder da mulher. Toda a vida provinha dela e sem seu alimento nenhuma vida sobreviveria. A Mãe era a vida. A Terra era a Mãe. Deus era Mulher. O matriarcado dominou grande parte do período em que se cultuou a Deusa Mãe.
Certamente o advento da agricultura contribuiu ainda mais para que o mistério do nascimento ocupasse um ponto central das religiões antigas. A Terra era associada ao ventre e, como os vegetais, os homens nasciam do solo, e voltavam ao solo durante a morte. Provavelmente tais mitos tenham sido a fonte primária dos mitos de criação do homem a partir do solo, presentes não somente na mitologia hebraica como em alguns mitos africanos bastante similares.
Mas com o tempo, e o advento das primeiras cidades (com estoques de grãos), dos saqueadores de cidades, e dos exércitos que guardavam as cidades dos saqueadores, o mundo tornou-se mais bruto e violento, e o matriarcado foi sendo suprimido pelo patriarcado. A Deusa Mãe saía de cena...

O “deus do pai”
Ainda nos conta Mircea Eliade que a religião dos patriarcas hebreus, já desde Abraão, era muito próxima ao culto dos antepassados, prática comum tanto do paganismo como de doutrinas orientais, como o budismo e o xintoísmo. O “deus do pai” é primitivamente o deus do antepassado imediato, que os filhos reconhecem. É um deus dos nômades e pastores, que não está ligado a santuários fixos, mas acompanha e protege um grupo de homens. Ele “se compromete diante de seus fiéis por meio de promessas” – o que fica muito claro nas barganhas relatadas no Antigo Testamento (“faça isto por mim, que farei isto por você”) [2].
Mas ao penetrarem em Canaã, os patriarcas são confrontados com o culto do deus El (o Deus Criador nas culturas suméria e babilônica), e o “deus do pai” acaba por lhe ser identificado [3]. Dessa forma, obtém a dimensão cósmica que não podia ter como uma divindade de famílias e clãs.
O “deus do pai”, o deus dos patriarcas hebreus, torna-se o Deus Criador e, dessa forma, é também associado ao Uno, ao “único Deus”. Mas isto não foi “a origem do monoteísmo”, como dizem as lendas, mas tão somente um dentre muitos sincretismos religiosos similares, que ocorreram não somente em Canaã, como em diversas outras partes do mundo...

» Em seguida, a roda continua a girar com as entidades divinas e os avatares...

***

[1] Alguns dos trechos de livros sagrados nesta série de artigos foram retirados de seu livro, História das crenças e das ideias religiosas, vol I (Zahar).

[2] As barganhas religiosas, onde "se cobra a Deus por sua parte do trato", existem até os dias de hoje. É surpreendente que certas igrejas, que teoricamente são protestantes, ainda hoje colaborem para esta prática de uma espiritualidade tão superficial.

[3] É por isso que o Deus hebreu ora é chamado de Javé, ora de Elohim. Javé seria o “deus do pai”, e Elohim seria sua associação a El.

Crédito da foto: Frederic Soltan/Corbis (O Templo do Sol de Konark, Orissa/Índia)

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7 comentários:

Anonymous Franco-Atirador disse...

Nada mais "pirante" do que divagar sobre o Todo. Entendo-o como a energia infinita que anima e que é tudo, esse sistema fractal multi-dimensional infinito. Diane disso, é compreensível as contemplações e adorações à esta maravilhosa e misteriosa Coisa que sempre esteve aí; no entanto, tenho dificuldade de imaginá-lo como Algo que te ouça, que lhe apoie, ame, enfim. Acredito que isso se deve à bagagem cultural e trauma de um ex evangélico sobre o Deus pessoal ridículo e superficial das massas, e acabo o vendo como uma Superestrutura 'cega', um simples campo de acontecimentos. Tenho dificuldade de imaginá-lo como um ser consciente de si mesmo, como se seu corpo fosse tudo o que existe, ou mesmo 'separado'. Sei lá...

1/10/12 07:27  
Blogger raph disse...

É interessante pois seus questionamentos caem exatamente no "problema da fonte vs. veículo" citado acima (de Joseph Campbell).

Para ser bem direto ao ponto, e considerando o que falou: Talvez Deus não ame, talvez Deus seja o próprio Amor :)

Abs
raph

1/10/12 12:13  
Anonymous Franco-Atirador disse...

Uau, profundo! Profundo mesmo.
Bem diz o ditado: "Deus é amor":O

Vlw pela reflexão :)

1/10/12 17:05  
Blogger raph disse...

Oi Franco, o interessante é que nesta conclusão, tanto eu quanto um ateu concordamos (note que ele a princípio discorda, mas eu depois explico melhor o que quero dizer por "amor")...

Raph – Se Deus for o nosso amor, não será preciso esperar a morte para chegar ao céu, nem temer inferno algum.

Wolf – O amor a Deus é um amor platônico. O amor completo, além dos aspectos agape e philia, também envolve o eros, que, em geral, não se devota a Deus. Além disso, o amor a Deus não é sensivelmente correspondido. Você pode ter a intelecção de que Deus o ama, mas você não tem essa sensação, como você pode ter do amor de outra pessoa. Assim, o céu que o amor de Deus pode propiciar é um céu intelectual. O céu que uma paixão amorosa humana propicia, além de intelectual, é também sensorial.

Raph – Pois é eu quis dizer literalmente isso: se Deus for o nosso amor, se tudo o que associamos ao amor, ao amor puro, mesmo que sexual, seja Deus. É mais um jogo de palavras, cada um entende a palavra "Deus" do seu modo, para o bem ou para o mal (poderia dizer, talvez, "se o Sagrado for nosso amor")... Mas eu toquei nisso porque achei bonito o que disse: "Você já está no céu sem ter morrido".

Wolf – Sim, se considerarmos que Deus significa, simplesmente, "amor", então quem está apaixonado está com Deus no coração. Nesse caso, Deus não é um ser. Essa é uma concepção que me agrada. Quando alguém diz "fica com Deus" ou "vai com Deus", está dizendo "fica com amor" ou "vai com amor". Realmente, é disso que a humanidade precisa. Para tal vale ler o "Tao Te Ching" de Lao Tsé.

Raph – Exato, quem sabe o Tao não seja o Amor: Deus em movimento... Mas vamos aprofundar um pouco mais: quem sabe se o motivo de tantos terem medo de se apaixonar não tenha algo a ver com esse entendimento de Deus como agente de barganha: "eu Te amo, Pai, e em troca ganho isto ou aquilo" (por ex: "a salvação").

Nas relações amorosas, às vezes as pessoas parecem pensar assim, só que quando percebem que nem sempre recebem "amor de volta", ficam com medo de amar. Mas, se o amor for sua própria recompensa, não deveriam se preocupar com barganhas, mas simplesmente com o exercício do amor.

Lao Tsé não espera nada em troca, o simples fato de refletir sobre o Tao o faz feliz. É como contemplar as estrelas: ninguém espera uma estrela cadente de presente, para guardar em casa - apenas as admira.

Wolf – Gosto dessa linha. A questão é a seguinte: o esquema da natureza fez com que a vida tenha surgido e, para que ela continue, desenvolveu-se o sexo, do qual o amor, qualquer amor, é uma sublimação. Então o amor é, assim considerando, o supremo objetivo da natureza. Ele é o caminho para que o esquema funcione e a evolução progrida, pois não há evolução sem reprodução. Note que não falo "projeto" e sim "esquema", pois não há plano nenhum nisso, por parte de ninguém. É o que aconteceu de acontecer. E se o que podemos chamar de "Deus" seja, simplesmente, uma personalização abstrata desse esquema, como o concebia Einstein e Espinosa, que não viam em Deus uma pessoa, e, nem mesmo, um ser, então crer em Deus e amá-lo nada mais é do que se amoldar a esse esquema. Como portadores do livre arbítrio, que nos retirou, em parte, do esquema cego e nos concedeu a liberdade de escolha, podemos escolher a salvação, que é, justamente, aderir ao amor, ou a perdição, que é negá-lo. Esse tipo de exegese eu aceito.

***

Estas reflexões vieram de conversas no Facebook, hehe.. Trecho deste meu comentário nas Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência:

Comentário: sem Deus, tudo é permitido?

Abs!
raph


1/10/12 17:55  
Anonymous Franco-Atirador disse...

Muito legal, mesmo!

Eu sinto por as pessoas perderem essas verdades. É algo tangível, inteligível, maravilhoso; e ficam com conceitos vazios, sem sentidos e cheios de medo. Dá vontade de sair evangelizando (verdadeiramente) as pessoas.

Mostrá-las que foram enganadas por pessoas que almejam o poder e a satisfação de seus egos mimados, lobos em peles de cordeiro, vestidos com uma filosofia belíssima, que guarda a chave para o enigma da humanidade. Esses, ganham em duas vertentes: ganham sobre os que aceitam seus dogmas idiotizadores e sem sentido, e ganham sobre aqueles que a rejeitam (pois possuem alguma inteligência) após tomar consciência de sua incoerência, da hipocrisia de seus líderes... Enfim, pegaram uma coisa maravilhosa e se esconderam nela mesma, deturpando-a, assim asseguraram de nunca a encontrarem (o povo). Uma grande tacada, devemos admitir, porém lamentável para com aqueles sedentos da Verdade.

É desconfortável estar bem mais próximo da Verdade e um indivíduo vir lhe julgar, lhe "ensinar" seus dogmas débeis. Há tanto pra dizer para essas pessoas... A divulgação do problema da linguagem e dos aspectos metafóricos/poéticos da religião é de extrema urgência!

2/10/12 07:40  
Blogger raph disse...

Pois é, o maior inimigo da religião nunca foi o ateu, mas sim o eclesiástico. Embora certos eclesiásticos sejam religiosos, na essência do termo, talvez a maioria deles tenha se perdido na "defesa do dogma da Eclésia" - e digo, se perdido de si mesmo.

Dessa forma, entre os ditos "religiosos", a maioria é do tipo "vou a missa aos domingos ouvir o padre", ao menos no Ocidente. A experiência religiosa foi esvaziada, e nos tornamos especialistas em natação que jamais mergulharam no mar. Mas isto tem mudado :)

2/10/12 14:08  
Blogger raph disse...

Comentário adicional:

A agricultura foi matriarcal apenas no seu início. Tão logo uma aldeia estabelecida começou a juntar grãos para "os invernos", começou a haver razões para saques de tribos nômades e, por sua vez, razões para que a aldeia saqueada procurasse formar uma "força policial", que no final das contas foi o primeiro exército do mundo. O patriarcado iniciou com o primeiro exército do mundo (*).

(*) Algumas grandes cidades, como Uruk na Suméria, podem ter existido por séculos, quem sabe, ainda dentro de um sistema matriarcal, mas estas foram grandes exceções a regra, e em todo caso não sobreviveram ao patriarcado.

14/11/12 12:25  

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