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15.5.09

Sócrates nas Nuvens

Texto de Jean-joël Duhot no "Sócrates ou o despertar da consciência" (Edições Loyola)

Vejamos como se faz o encontro de Estrepsíades com o mestre (Sócrates como caricatura [1] em As nuvens de Aristófanes, o texto mais antigo a seu respeito). Um discípulo introduziu no "pensadeiro" (novamente, caricatura de uma "escola" socrática [2], na peça de Aristófanes) um novo aluno: Sócrates está no ar, num barquinho suspenso:

Ando nos ares e olho o sol. Nunca, com efeito, teria deslindado exatamente as coisas celestes se não tivesse elevado meu espírito e confundido meu pensamento sutil com o ar semelhante. Se tivesse ficado na terra para observar de baixo as regiões superiores, nunca teria descoberto nada; não, porque a terra forçosamente atrai para ela a seiva do pensamento. É exatamente o que acontece com o agrião. [As nuvens, 225-243]

Por trás da paródia, pode-se compreender, parece que Sócrates se arranca da terra e pratica uma ascensão do espírito que lhe permite o acesso às realidades superiores. Esse acesso supõe uma iniciação comparada à dos Mistérios [As nuvens, 258, 303] [3]. E, depois de ter ouvido as Nuvens, a alma de Estrepsíades [As nuvens, 319] começa a alçar seu vôo. Contudo, o conhecimento supõe aptidões, trabalho e uma verdadeira ascese: precisa-se de memória, de concentração e de resistência, de saber aguentar de pé as caminhadas, o frio e a fome [As nuvens, 412-416]. Quando chega o momento da iniciação, Estrepsíades, trêmulo, evoca a consulta do oráculo de Trofônios [As nuvens, 50]. Depois de uma lição de mestre de escola, em que Estrepsíades exibe claramente seus limites intelectuais, Sócrates o convida a passar para uma sessão de meditação, alongando-se sobre um catre, coberto de percevejos para a circunstância. O coro traz ao novo discípulo alguns conselhos:

Medita agora e examina a fundo, gira teu pensamento em todas as direções, recolhido sobre ti mesmo. Depressa, se cais em um impasse, salta para outra idéia de teu espírito; e que o sono doce ao coração esteja ausente de teus olhos. [As nuvens, 700-705]

Conselhos que parecem bastante técnicos, notadamente sobre o risco de pegar no sono, ao qual Sócrates está atento um pouco mais adiante [As nuvens, 732], quando vem perguntar a Estrepsíades sobre o resultado de sua meditação. A isso acrescenta uma indicação sugestiva: é preciso relaxar o espírito para que ele alce o vôo [As nuvens, 762].

A encenação e o conteúdo de paródia dos diálogos não devem iludir-nos: eliminando tudo que tem a ver com a intenção cômica, parecem desenhar-se certas características. Sócrates concebe o ensinamento como uma iniciação aos Mistérios, o conhecimento adquire-se no termo de um trabalho e de uma verdadeira ascese, que necessitam e qualidades naturais: além disso, é necessário praticar a meditação. Tudo isso permite destacar-se da terra, o que abre o caminho para o conhecimento.

Assim, abstraindo do tom e do conteúdo da paródia, Aristófanes confirma amplamente os aspectos de Sócrates que Platão evocava com a metáfora do xamanismo (em Cármides). A iniciação dos Mistérios resultava em uma visão, a epoptia, que aparece frequentemente no Sócrates de Platão, de modo que também nesse ponto Aristófanes traz uma preciosa caução ao testemunho de Platão.

Parece, pois, que o êxtase esteja no coração do pensamento de Sócrates. É nesse vôo da alma que ele pode contemplar a realidade, libertado da terra, e tenta, por uma combinação de disciplina intelectual, de ascese e de meditação, provocá-la em seus discípulos [4].

***

[1] O autor, Duhot, postula exatamente que a caricatura não é completa, e que por detrás dela se revela o Sócrates "iniciado" que Platão procurou ocultar.

[2] Mais adiante o autor postula sobre a possibilidade de ter existido, e conclui que era apenas uma alusão a escola pitagórica, além de um lugar ficctício necessário ao roteiro da peça em si.

[3] Trata-se dos Mistérios de Elêusis: os sacerdotes de Elêusis ensinaram sempre a grande doutrina esotérica que lhes veio do Egito. Esses sacerdotes, porém, no decorrer do tempo, revestiram essa doutrina com o encanto de uma mitologia plástica, repleta de beleza.

[4] Dirigindo-se a Sócrates, o Alcibíades de O Banquete compara-o ao sátiro Mársias:

Mas, tu dirás, não és tocador de aulos (instrumento musical parecido com oboé). Sim, e bem mais extraordinário do que Mársias. Ele de fato servia-se de um instrumento para encantar os seres humanos com a ajuda do poder de seu sopro, e é o que se faz hoje em dia quando se tocam suas músicas no aulos. E as músicas de Mársias, se interpretadas por um bom tocador de aulos, são as únicas capazes de nos pôr em um estado de possessão, e porque são músicas divinas, capazes de fazer ver quais são os que têm necessidade dos deuses e de iniciações. Mas tu te distingues de Mársias em um só ponto: Não tens necessidade de instrumentos, e é proferindo simples palavras que produzes o mesmo efeito (...) Cada vez que a ti se ouve, ou se escuta uma pessoa que está transmitindo tuas falas (...) ficamos perturbados e possessos. (...) Quando lhe escuto meu coração bate muito mais forte do que o de Coribantes e suas palavras me tiram lágrimas. [O Banquete, 215 b-e]

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Crédito da foto: Wikipedia (tríade eleusiana)

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2 comentários:

Anonymous Renato disse...

Curti o Blog. Você conhece o filósofo Ken Wilber? Acho que vai completar seus estudos. []'s
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ken_Wilber

18/5/09 13:13  
Blogger raph disse...

"Em seus novos trabalhos, Wilber dedica-se à prospecção de uma "Teoria de Tudo", um metamodelo do conhecimento já produzido que possa unificar e estruturar a visão do que chama de Kosmos: físico, vida, mente, alma e espírito."

Legal, entrou na minha lista de livros a ler. Obrigado.

20/5/09 16:56  

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